Selva Varotto do Espectro Cinza fala sobre feminismo, culpa cristã e como abandonou a religião

 Selva Varotto do Espectro Cinza fala sobre feminismo, culpa cristã e como abandonou a religião

Selva Varotto. Reprodução Facebook

Selva Varotto do Espectro Cinza, “A religião é nada mais que um instrumento de poder pra justificar as hierarquias numa sociedade”

Por AD Luna

[Entrevista veiculada originalmente em 17 de março de 2018]

[Atualizado em 29/9/2023]

“O canal feminista mais antifeminista que tu vai conhecer!”  Assim a publicitária Selva Varotto define o Espectro Cinza, o canal de vídeos dela, hospedado no YouTube. De acordo com a gaúcha de Passo Fundo, inicialmente o seu trabalho estava focado em criticar o movimento de defesa das mulheres atual e o ativismo pós-moderno de esquerda. Ainda assim, ela se considera feminista.

Porém, uma que não abre mão de expor suas discordâncias com ideias e comportamentos defendidos por outras mulheres. “Apesar de existir um princípio básico do feminismo em relação a oportunidades e igualdades relativa aos sexos, independente de ser homem, mulher, existem ainda muitas divergências ideológicas. Então, meu canal está sempre bem disposto a argumentar e discutir sobre essas divergências”.

Selva Varotto foi uma das convidadas da edição #35 do programa de rádio Interdependente – música e conhecimento, que foi veiculada na 99,9 FM Universitária do Recife, no dia 17 de março de 2018. Além da conversa, ela sugeriu músicas de Kendrick Lamar, Post Malone, Thiago Pettit, Jaloo e Rihanna. A outra entrevistada foi a historiadora Naymme Moraes, do Recife. [Nota da Redação: naquele tempo, Selva se apresentava como Glenda Varotto]

Ouça o programa com as duas, na íntegra. A participação de Selva Varotto começa a partir do minuto 32:18

Listen to “Feminismo com Selva Varotto e Naymme Moraes #35” on Spreaker.

Você chegou a ser cristã, não é isso? Como foi essa passagem da sua vida, o que te fez mudar?

Selva Varotto do Espectro Cinza – Comecei a frequentar a igreja a partir de uns quatro anos de idade, junto com a minha mãe. E a denominação era metodista. Aí depois nós trocamos pra Batista Independente e lá permaneci até os 20 anos de idade, mais ou menos.

Frequentávamos a igreja praticamente a semana inteira: era domingo, terça-feira, quarta-feira de tarde, quinta tinha ensino bíblico, sábado, culto de jovens. E domingo começava tudo de novo, que era um culto mais comum pra todo mundo.

Grande parte dos meus anos foram passados ali, com autoenganação. Eu tentava me convencer de que estava ali porque queria, porque minha não me chantageava nem me forçava – o que era mentira. E que eu estava feliz lá – então, eu tentava racionalizar as minhas motivações, como se realmente eu quisesse estar lá. E era mentira, evidentemente mentira. Me sentia muito pressionada e oprimida.

A maior parte do meu abuso veio do ambiente doméstico, porque minha mãe sempre foi uma mulher muito religiosa. Ela cresceu numa das denominações mais rígidas do Brasil. Hoje em dia, ela já se atualizou, se modernizou, mas no passado era muito rígida. Então ela passou tudo isso pra mim.

Algumas pessoas, por exemplo, podem achar que eu mudei rapidamente, como se eu não tivesse tido um longo processo de descrença, de desconversão. Mas, na verdade, isso até não faz muito sentido. Não apenas em relação a mim, mas em qualquer pessoa que passou durante tanto tempo dentro de uma igreja.

Querendo ou não, a pessoa passar por um longo processo porque, inicialmente, ela se sente muito mal, se sente culpada por estar questionando, duvidando da própria fé ou do que está escrito nos princípios divinos. Depois ela não apenas aceita a própria dúvida, mas ela começa a se questionar de fato se aquela dúvida dela tem fundamento. Pra depois, ela acreditar e aceitar, reconhecer que, de fato, o pensamento do passado dela poderia ou está realmente errado.

Então, existe um longo processo de desconversão. Porque, no início, existe toda uma sensação de autojulgamento, autorrepressão. Porque está associado com a heresia, com aquilo que não deve ser questionado. Você não pode questionar a autoridade de Deus e os princípios daquilo que ele deixou para os seres humanos. Sempre tive também um questionamento muito inerente a mim que foi relativo ao papel da mulher na sociedade e na família.

E na igreja se aprende que a mulher precisa ser submissa ao marido. (Rindo) E eu sempre achei aquilo um absurdo, não conseguia entender e processar aquilo como certo apenas por conta da minha condição de nascimento, por conta da minha genitália.

Curiosamente, os pastores da minha igreja, outras pessoas que eram responsáveis pelas pregações da palavra e tudo mais, me achavam inteligente, me admiravam, até mesmo me incentivavam a participar dos estudos porque gostavam também dos meus questionamentos e das minhas perguntas.

Contudo, sempre fui muito honesta, tentava não ser cínica nas minhas ações e na minha conduta. Então, quando era crente, eu era crente de verdade. Não bebia, não transava, não beijava, não fumava, não fazia absolutamente nada.

Só que, com o tempo, fui percebendo que de acordo com meu estilo de vida já não tinha mais nada a ver com aquelas pessoas. Também passei pelo processo de autodescobrimento de bissexualidade e, de fato, as minhas ideologias, a maneira como me portava na minha vida já não convergia mais pra aquele local que eu frequentava. Então queria ser uma pessoa, de fato, não hipócrita ou dissimulada.

E é muito complicado porque tu vive num constante conflito, num dilema, em que uma parte tua corresponde aquela fé e a outra parte tua sabe que aquilo não corresponde a quem tu é. De fato, com algumas pessoas corresponde, mas não foi o meu caso.

Então, ao mesmo tempo que acreditava que determinados princípios eram certos, eu sabia que aquilo de mais natural, intrínseco e primal da minha personalidade não correspondia com aquilo. Dentro desses princípios, que eu deveria seguir, o meu propósito deveria suprimir absolutamente qualquer característica da minha personaliade que divergisse desses princípios.

“A culpa cristã é, de fato, uma coisa emocionalmente muito desgastante. Aquilo consome a tua energia”

A partir do momento em que aceitei, em que eu saí dessa denominação, que assumi pra minha mãe que realmente não fazia mais parte daquilo nem queria fazer parte, a minha vida mudou completamente. Me tornei, de fato, uma pessoa mais autoconfiante, feliz, ousada, que arriscava mais e também muito mais autônoma nas minhas ações.

Eu não vivi mais sob o peso da culpa. E a culpa cristã é, de fato, uma coisa emocionalmente muito desgastante. Aquilo consome a tua energia. Faz com que todas as tuas ações, quaisquer que elas sejam, da mais ínfima a mais grave, [te levem] a ficar matutando e te pressionando mentalmente. Tu não se perdoa.

E se tu faz algo de errado ou tem vontade de fazer algo que é sistematicamente parte de quem você é, é muito mais difícil de conviver com essa realidade. Porque tu sabe que aquilo não vai passar. Então, ao mesmo tempo, que tu convive com a culpa de ser quem é, tu tem que conviver com o peso de negar isso de fato na tua vida. Tu não pode mais fazer parte disso. Nunca pôde fazer parte, assumir isso na própria vida.

O pontapé definitivo pra eu de fato sair da vida religiosa, foi por ter convivido com o público LGBT aqui de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. A partir do momento em que comecei a conhecer essas pessoas, na sua intimidade, na sua personalidade, o que eles representavam na sociedade, o preconceito que eles sofriam, percebi que de fato eu não tinha mais nada a ver com tudo aquilo que representava o que eu discordava.

E foi num período em que o Silas Malafaia ficou reconhecido no Brasil inteiro como um grande combatente do movimento LGBT. Através de discursos intelectualmente honestos [Nota: na verdade, desonestos], argumentos não embasados, anticientíficos, então percebi que já era o momento de dar um basta naquilo, na minha vida. Tanto quanto em relação a meus posicionamentos no feminismo.

É até interessante porque uma das razões que isso ficou mais evidente foi por eu ter participado, anos atrás, da Marcha das Vadias. E eu mostrei os seios e tal. E na época (risos), minha mãe acabou descobrindo porque o pastor da igreja viu uma foto no jornal de falou pra ela (risos). Nossa, ela passou o dia inteiro chorando… Isso aconteceu em Porto Alegre. E percebi que, realmente, não ia me submeter ou moldar minha vida de acordo com as expectativas de feminilidade ou de religião e moral que ela tinha pra mim. Então, aí foi o ponto final na minha vida [religiosa].

Você acredita que o cristianismo, a religião de uma maneira geral, contribui para o pensamento machista e como um dos agentes de opressão a mulheres? De que forma?

Selva Varotto do Espectro Cinza – Com certeza. E a religião é nada mais que um instrumento de poder pra justificar as hierarquias numas sociedade. Porque se não há Deus sobre nós, de fato quem nós deveríamos obedecer e por quê? A religião que faz esse papel. Ela tem o papel de hierarquia, de superioridade moral, advinda de uma natureza misteriosa, espiritual e que, por isso, está acima dos reles mortais, nós, seres humanos.

A figura da mulher é justificada numa condição de inferioridade na religião, não apenas como se fosse interpretada de fato como algo menor. Mas que tem uma interpretação enviesada e que enfeita e até mesmo sacraliza essa condição.

Então não se trata de uma visão que apenas diminui e inferioriza a mulher, mas que faz com que aquilo se torne muito mais bonito e justificado através do viés da religião do que de fato é. E se engana quem pensa que a religião não brinca com a auto-noção de importância do status na mulher também. Porque não é como se a mulher não gostasse de não ser nada, dentro da religião, dentro do cristianismo. Mas que ela é muito mais sendo nada.

Então, a mulher é exaltada por não falar muito ou por ser mais submissa, recatada, modesta, virginal e que, a partir disso, que ela conquista esse status. E, querendo ou não, todos nós seres humanos almejamos uma maior noção de status. Tanto pra si mesmo quanto para os outros.

Em seus vídeos e posts em redes sociais, de uma maneira geral, tenho entendido que, em vez de ajudar a disseminar ideias feministas e angariar apoiadores e apoiadoras, militantes mais ligadas à esquerda acabam por alimentar antipatias pelo feminismo, em pessoas de todos os gêneros. Em síntese, quais são os principais problemas apresentados nos discursos e ações dessas pessoas, na sua visão?

Selva Varotto do Espectro Cinza – Quanto aos movimentos sociais, infelizmente existem características determinadas que são gerais em qualquer posicionamento político, religioso, teórico ou ideológico. São pessoas que se movem, pelo menos são direcionadas por mecanismos tribalistas, que são intrínsecos a nosso comportamento primata, que se manifesta por autoritarismo, censura, distorção, desonestidade intelectual, violência justificada, e também distorção de fatos e informações e, até mesmo, negacionismo científico.

E essa violência justificada, a censura, a retaliação e até mesmo a mancha de uma reputação pública ou social é justificada por uma noção de estado da arte, que está acima da oposição. Então aquela pessoa tem uma noção de que o seu posicionamento, de fato, não é apenas o mais eficiente, mas também como o mais correto e que justifica qualquer meio. Esses meios, infelizmente acabam vilanizando justamente aquelas pessoas que são as boazinhas, que são aquelas que têm de fato a razão sobre aquilo que está acontecendo, sobre aquelas atitudes referentes a sua ideologia.

Então, muitas pessoas acreditam que a grosseria, a violência, a censura, o silenciamento é justificado porque a sua ideologia está correta. E é bem comum o politizado, tanto quanto eu já tive essa noção de mim mesma, que tu é um ser iluminado, que tu está acima das pessoas que não têm acesso ao conhecimento, que são pessoas intelectualmente limitadas, que não estudaram o suficiente ou que são apenas pessoas más.

“Partindo dessa noção de que tu está com a razão, independentemente dos argumentos, do que a ciência tem a dizer sobre isso, do que a ética tem a dizer sobre isso, tu acaba se tornando uma pessoa déspota e autoritária. É isso que justifica essas ações enviesadas e tão selecionada”

Isso enviesa muito o julgamento, não apenas de eficiência sobre se de fato aquilo vai funcionar, mas também sobre a moral, sobre o quanto isso potencialmente é prejudicial e nocivo para a maneira que podemos tratar as outras pessoas. Aquela pessoa pode ser maltratada, pode ser retaliada, exposta, humilhada porque é coxinha, porque é petista, petralha, feminista, machista, sexista, racista.

E são todas rotulagens muito arbitrárias, são rotulagens que são relativas ao pensamento dessas pessoas e que, não raramente, são discutíveis. Não é simplesmente o julgamento definitivo como 1+1=2. Não. Geralmente são situações, conceitos que estão sujeitos à discussão, à discordância.

Só que partindo dessa noção de que tu está com a razão, independentemente dos argumentos, do que a ciência tem a dizer sobre isso, do que a ética tem a dizer sobre isso, tu acaba se tornando uma pessoa déspota e autoritária. É isso que justifica essas ações enviesadas e tão selecionadas. Tão seletivas.

“Homens e mulheres estão completamente passíveis de erro, são igualmente enviesados, possuem suas pré-disposições naturais morais. Tanto quanto sendo homem ou sendo mulher e isso deve ser discutido abertamente e é justamente isso que nos impede de nos colocarmos sob o julgo de determinado grupo”.

Qual o papel dos homens no feminismo?

Selva Varotto do Espectro Cinza – Essa é uma questão muito mais semântica que é motivada por uma raiz moral. Semântica porque, de fato, homens se considerarem pró-feministas ou feministas não vai mudar nada, absolutamente nada na sociedade. De um jeito prático, vai dar na mesma. Agora, por que raiz moral?

Porque se trata de uma maneira das mulheres, dessas feministas se entenderem como mais sofredoras e merecerem um privilégio, um status que as coloque seletivamente acima daqueles que não correspondem a sua própria condição.

No caso, ser mulher. Então, me considero uma feminista, enquanto os homens não podem se considerar porque sou mais oprimida, porque eu sofri mais, porque não tenho determinados privilégios. E isso me coloca numa condição, numa situação em que eu mereça mais, em que eu seja vista com destaque e notabilidade partindo dessa noção ideológica.

De fato, implica em absolutamente nada a diferença entre ser feminista ou pró-feminista. E essa minha visão de que homens podem liderar ou ajudar, aconselhar ou discordar das mulheres, é um pensamento que, ao contrário de inúmeros meus que foram mudando ao longo dos anos, permaneceu o mesmo a partir do momento em que me entendi como feminista.

Homens e mulheres estão completamente passíveis de erro, são igualmente enviesados, possuem suas pré-disposições naturais morais. Tanto quanto sendo homem ou sendo mulher e isso deve ser discutido abertamente e é justamente isso que nos impede de nos colocarmos sob o julgo de determinado grupo.

O primeiro vídeo de Selva Varotto do Espectro Cinza

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