Resgatamos entrevista com o então “ministro da Informação do Mangue”, publicada no site que serviu como TCC de curso de jornalismo da UFPE deste que vos tecla
Por AD Luna
@adluna1
Entrevista que fiz com o então “ministro da Informação do Mangue”, publicada na pré-história da internet, no antigo site www.terra.com.br/manguenius – que é, aliás, meu trabalho de conclusão (TCC) do curso de Jornalismo da UFPE. O MangueNius foi parceiro de conteúdo do portal Terra e continua até hoje no ar!
Naquela época, cometi o imperdoável erro de não registrar a data da matéria. Mas deve ter sido entre o fim de 1990 e início de 2000.
O link direto: http://www.terra.com.br/manguenius/artigos/frme-entrevista-renatol.html
Muita gente reclama que já está com o ouvido cheio de lama de tanto escutar esta palavra: Mangue. No entanto, também são muitas as pessoas que ainda não apreenderam o novo conceito que ela adquiriu depois de processada pelas mentes inquietas dos mangueboys (olha aí de novo…) Chico Science, Fred 04, Jorge Du Peixe, Mabuse e outras figuras não menos importantes.
Nada que uma boa lida no texto “Caranguejos com Cérebro” não desse jeito… Nesta entrevista, o jornalista e DJ Renato L, 37, explica por que o tal rótulo pode agregar desde a ciranda de Lia de Itamaracá ao hardcore do Devotos. Renato também é um criadores do site Manguetronic (www.manguetronic.com.br) e colunista da revista eletrônica A Ponte (www.aponte.com.br).
Renato L – Nunca atuei na grande imprensa, sempre trabalhei em coisas mais ou menos alternativas. Fiz, na década de 80, os programas New Rock, na Transamérica, e o Décadas, na Universitária FM – ambos com a participação de Fred [04]. Do final dos anos 80 até mais ou menos 93, vivi uns quatro anos na mais inteira vagabundagem. Não fiz praticamente nada…
Organizava uma festa aqui outra ali, raros free-lancers, praia… Mas, foi, de certa forma, a época mais mais rica da minha vida, pois naquele período (entre 89 e 90) fiz um monte de amizades, escutei sons novos e foi quando o núcleo base da Cooperativa Cultural Mangue se formou. Fred e eu havíamos voltado a andar juntos (ele tinha ido atrás de uma namorada em São Paulo, mas não deu certo) e, por meio de Mabuse [nota: um dos responsáveis pelo Manguetronic], conhecemos Chico [Science] e Jorge [Du Peixe] num apartamento nas Graças que era o Q.G. da moçada.
Lá também morava Hélder, o DJ Dolores. Todo mundo sempre passava por lá, quase todo dia, pra conversar sobre música, trocar discos… Fred já tocava no mundo livre s/a e Chico – que trabalhava na Emprel, como funcionário público – tinha uma banda de hip hop chamada Orla Orbi.
Renato L – Estávamos reunidos no bar Cantinho das Graças, quando Chico chegou dizendo: “Fiz uma jam session com o Lamento Negro, aquele grupo de samba-reggae, peguei um ritmo de hip hop e joguei no tambor de maracatu… Vou chamar essa mistura de mangue”. Aí todo mundo sugeriu: “Não, cara! Não vamos chamar de mangue só uma batida ou limitar ao som de uma banda. Empresta esse rótulo pra todo mundo, porque todos estão a fim de fazer alguma coisa…” Então foram surgindo idéias de todos os lados. Foi realmente uma viagem coletiva.
Renato L – No começo, chamávamos a história apenas de mangue, não tinha essa de bit ou beat. Depois, Fred 04 fez a música “Mangue Bit” [do disco Samba Esquema Noise] e parte da imprensa começou a se referir ao lance com o acréscimo do bit e daí também era fácil confundir com o beat, de batida.
E a coisa fugiu ao nosso controle. Jamais a gente queria chamar aquilo de movimento, achávamos o termo muito pretensioso. Ainda hoje há uma grande preocupação minha e dos outros (Fred, a galera do Nação Zumbi etc) de preservar, dentro desse rótulo, o sentido da diversidade.
Mostrar que se você identificar o mangue como a vibe [vibração, sentimento] do Recife, dentro desse sentido cabe o hardcore do Devotos: ele é tão legitimamente pernambucano quanto o coco, acredito.
Renato L – Desde o começo, naquela mesa de bar, a gente se preocupou em definir o mangue como um ecossistema cultural tão rico, tão diversificado quanto os manguezais. Mangue não é fusão de coisas eletrônicas com ritmos locais, por exemplo.
O Mundo Livre, que é a banda parceira do Nação Zumbi nessa história, quase não trabalha com sons regionais; a parada deles é música pop com samba.
Hoje em dia, acho que não é mais mangue o chapéu de palha e os óculos escuros, a batida do maracatu com uma guitarra pesada à Lúcio Maia – aliás, isto nunca foi.
O som da Nação sempre foi muito rico, não se resumindo a esse clichê. Mangue, hoje em dia, continua sendo a diversidade, o senso de cooperação entre as bandas que vem se espalhando por outras áreas.
Renato L – A morte de Chico foi uma desgraça, uma tragédia, pois aconteceu na hora em que ele estava no ponto de explodir. O último show da Nação com Chico, que aconteceu no Clube Português, me deixou tão de cara quanto o primeiro; e olhe que eu já havia visto muitas apresentações deles. Foi impressionante.
Se você comparar a performance vocal de Chico do primeiro para o segundo disco, vai perceber que o crescimento é de mil por cento.
Me pego ainda hoje, quando escuto uma batida envenenada, pensando em quanta coisa ele não poderia fazer com isso. Por outro lado, acredito que sua morte serviu, paradoxalmente, para um fortalecimento da cena. Aumentou o moral da moçada: todo mundo tomou consciência de que tinha de levar a coisa pra frente, tentar se manter unido.
A elite política, a oligarquia do Estado, só passou a tomar conhecimento do que era o Mangue a partir da morte de Chico: começou a rolar patrocínios, uma aceitação maior. Apesar de eles ainda não terem percebido a real dimensão da coisa.
Renato L – Na verdade, aquilo não era um manifesto, era um release que foi escrito apenas por 04. Muita gente pensa que eu também o escrevi, mas não foi. Naquela época, por coincidência, Fred estava trabalhando, como free-lancer, na TV VIVA, num vídeo sobre os manguezais.
Então, quando Chico veio com essa história do mangue, Fred estava cheio de informações sobre o assunto. Então, como já havíamos realizado vários shows, resolvemos fazer o “book do mangue” e ficou decidido que ele escreveria o texto. Ficou um puta texto e, quando chegou na imprensa, começou a se chamado de manifesto.
Renato L – Cara, aconteceu tanta coisa positiva nesse projeto. Nas oficinas, por exemplo, sempre havia mais gente interessada do que as vagas disponíveis. Tem gente que já está até trabalhando com o que aprendeu nos cursos de moda, de reciclagem e grafiti.
Também deu pra ver como é grande o público da periferia interessado na cena. A integração entre grupos e público era tão forte, que até chegamos a realizar um seis ou sete shows sem nenhum segurança. Só houve alguns problemas com os funkeiros, pois esses só iam apenas pra brigar.
Eles fazem parte de uma cultura baixo-astral… Particularmente, conheci muitos lugares pelos quais nunca tinha andado e foi ótimo passar sete meses junto com a galera das bandas.
Por outro lado, deu pra sacar como a cidade é carente em termos de cultura: há vários logradouros públicos subutilizados, locais que podiam ser movimentados com pouquíssima grana.
Renato L – Discordo num ponto. Acho que o Abril Pro Rock é uma exceção nessa regra: ele vem perdendo qualidade ano após ano… O Abril está passando por uma fase que muitos festivais alternativos passam: começam alternativos, depois vão crescendo e se tornam mais comerciais. Há casos em que se consegue um equilíbrio entre a criatividade e o lado econômico.
Creio que o Abril está se encaixando naquele primeiro aspecto: o comercial. Tudo bem, é preciso dar os méritos a Paulo André por ter realizado o APR durante todo esse período, ninguém tá querendo negar a sua importância para a cidade etc. etc.
Mas, analisando friamente, há problemas de programação, que chega a ser preguiçosa: é o exemplo dessa aposta no rock dos anos oitenta – o qual, já naquela época, não era essas coisas todas.
Renato L – A acústica do Pavilhão do Centro de Convenções é péssima. É como você ir a um festival de cinema e assistir a filmes com a imagem desfocada. É preciso fazer algo: ou muda de lugar ou encontra outra solução. Ainda sobre a programação, soube que já ofereceram a Paulo André boas bandas pop de fora para tocar no Abril Pro Rock e ele não trouxe.
Grupos como o Asian Dub Foundation e Atari Teenage Riot. Seria importante pra cidade que atrações como essas tocassem por aqui; elas dariam um curto-circuito na molecada. De todos os grandes eventos que ocorrem hoje no Estado, pra mim, o festival que tem o maior potencial para se transformar na coisa mais importante desse circuito é o Rec Beat Carnaval.
Ele tem uma base muito legal e Guti [Antônio Gutierrez, produtor do evento] é um cara inteligente; tem seus defeitos, mas vem crescendo como profissional.
Renato L – Não faz bem a imprensa dar um tratamento acrítico à cena e às bandas. No entanto, acho, de maneira geral, o jornalismo musical do Brasil fraco; e não acho que o pernambucano seja uma exceção. Acho que a imprensa pernambucana é muito desinformada em relação a uma série de tendências de música pop que surgiram após o rock dos anos 70.
Também não há nenhum jornalismo com suficiente conhecimento para falar de música eletrônica; no máximo, eles falam sobre Chemical Brothers e Prodigy. E essa parada de música eletrônica é fundamental nessa cena toda, até no próprio conceito do mangue; pois ele apareceu no início das raves, que foi uma coisa que fez com a galera se movimentasse.
Por outro lado, vejo gente reclamando porque algum jornalista falou mal de sua banda… Cara, isso não é motivo pra reclamar, é a opinião dele, que tem de ser respeitada.
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