“Existe uma falha grave de comunicação entre os cientistas e a sociedade”, diz Mariana Guenther

 “Existe uma falha grave de comunicação entre os cientistas e a sociedade”, diz Mariana Guenther

A cientista, professora e divulgadora científica Mariana Guenther. Foto: arquivo pessoal

 

 

Enquanto nós estamos fechados, nos nossos castelos de saberes, construindo conhecimento que acabam ficando mesmo restritos aos papers e aos congressos, a sociedade está se informando através de fake news, de correntes do WhatsApp

 

Por AD Luna
@adluna1

Para Mariana Guenther, existe uma falha grave de comunicação entre os cientistas e a sociedade. A cientista, professora e divulgadora científica é a convidada do InterD – música e conhecimento #86, programa veiculado todas as quartas, às 20h, na rádio Universitária do Recife (vinculada à UFPE), e nas principais plataformas digitais.

Nesta edição, a professora da Universidade de Pernambuco fala sobre como se iniciou no mundo da ciência, dos podcasts Prosa com Ciência e Ciência no Dia a Dia, da necessidade de cientistas se comunicarem melhor com a sociedade e do papel da mulher no universo científico.

Ouça a entrevista com Mariana Guenther

Ouça ““Existe uma falha grave de comunicação entre os cientistas e a sociedade”, diz Mariana Guenther – #02” no Spreaker.

Abaixo, transcrição na íntegra da entrevista com Mariana Guenther.

O que te fez se interessar pela ciência, que influências você acredita que teve para navegar nesse grande oceano do conhecimento?

Eu me lembro de gostar de ciência desde a infância. Sempre foi minha matéria preferida da escola. Mas, mais para o fim do ensino fundamental, início do ensino médio, comecei a me encantar mais pela biologia marinha.

Sempre tive uma relação bem forte com o mar. Morava perto da praia, no Rio de Janeiro, e sempre tive muita curiosidade sobre o mar, sobre as ondas e, principalmente, o que tinha ali dentro. O mundo submarino. Isso sempre me encantou.

Lembro que fiz um curso de biologia marinha, ainda na época do colégio, e a gente teve uma aula prática de mergulho em Arraial do Cabo – que é um lugar fantástico, tem uma diversidade marinha incrível -, que fica no Litoral Norte do Rio de Janeiro. Muitas pessoas vão lá para mergulhar.

Eu tinha uns 14 anos na época. Foi a primeira vez que mergulhei em apneia. E eu fiquei totalmente apaixonada! Acho que, naquele momento, resolvi que era aquilo que eu queria para minha vida: eu ia estudar o oceano.

Minha família sempre me deu o maior apoio para seguir a carreira de cientista, minha mãe também é cientista. Então, não tive muita resistência em casa. Muito pelo contrário, tive muito incentivo e isso, infelizmente, ainda não é muito comum para as meninas. A gente ainda sofre muito com os estereótipos, com essa ideia de que ciência não é uma área para as mulheres.

Mas, bom, eu entrei no curso de biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, já no primeiro período, fui procurar um estágio de iniciação científica, na área de biologia marinha – a qual sempre foi minha paixão. De lá, fui trabalhar com água doce, fui fazer um estágio com ecologia de água doce – que a gente chama de limnologia – e segui no mestrado nessa área, ainda na UFRJ.

Fui para a Amazônia, trabalhei num lago impactado por resíduos de mineração e, no doutorado, resolvi voltar para o mar. Fiz meu doutorado em oceanografia no Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) e estudei a Baía de Guanabara e a região de Cabo Frio, no Rio de Janeiro. Também focando em poluição e impactos ambientais.

De lá vim para Recife e sigo estudando o mar. Sempre focando na polução e na recuperação dos ambientes aquáticos então eu comecei na água e continuo na água às vezes um pouquinho mais tal às vezes um pouquinho menos mas sempre na água e nunca mais deixei a ciência.

Como e quando surgiu a ideia de enveredar pela divulgação científica? 

Acho que a sementinha dessa ideia de trabalhar com divulgação científica, com comunicação mais popular da ciência, vem desde antes da minha entrada na universidade. Na nossa época, para entrar na universidade, a gente precisava fazer a prova para o curso e para a universidade a qual a gente queria cursar. Cada universidade tinha uma prova específica e a gente tinha que definir o curso antes de fazer a prova, não tinha como mudar depois.

Eu me lembro que, apesar dessa paixão pela biologia marinha, a comunicação também me encantava.  E fiquei na maior dúvida entre biologia e comunicação na época do vestibular. Não sabia se eu queria ser jornalista ou cientista. Optei pela ciência. Mas, aquele desejo de ser jornalista continuou, de certa forma, latente, durante todos esses anos.

Acho que por isso, hoje, quase 30 anos depois de me iniciar na ciência, ando mergulhando cada vez mais nessa a área do jornalismo, da comunicação voltada para a divulgação da ciência.

Mas além desse desejo, que eu nutria desde a adolescência pela comunicação, comecei a perceber ao longo desses anos como cientista, que na verdade muito pouco adiantava as pesquisas que eu desenvolvia no meu laboratório, os artigos que eu escrevi, os congressos que frequentava, até os alunos que eu orientava, se tudo isso que eu e tantos colegas estamos produzindo não chegava à sociedade.

De que adianta eu pesquisar sobre os impactos da poluição nos ecossistemas aquáticos, sobre as possíveis soluções, as estratégias de recuperação desses ambientes degradados, se todas essas informações que eu gerava, não chegavam à sociedade? Que continua consumindo cada vez mais plástico, jogando lixo no chão, óleo na pia, esgoto nos rios.

Então, a gente começa a perceber que existe realmente uma falha grave de comunicação entre nós cientistas e a sociedade. Isso começou a me incomodar muito. Eu queria me sentir mais útil, sabe? Eu queria, de alguma forma, fazer com que o conhecimento que nós estamos gerando nas universidades chegasse à sociedade.

Vejo que muitos colegas cientistas observam essa onda obscurantista e negacionista com tanto espanto, sem perceber que nós temos uma parcela imensa de responsabilidade na ignorância da sociedade em relação à ciência.

Enquanto nós estamos fechados, nos nossos castelos de saberes, construindo conhecimento que acabam ficando mesmo restritos aos papers e aos congressos, a sociedade está se informando através de fake news, de correntes do WhatsApp.

Foi por isso que comecei a trabalhar mais ativamente nessa área. Tanto pesquisando sobre divulgação científica, que é uma área de pesquisa bastante sólida dentro da área da comunicação, quanto tentando trazer um pouco da ciência para o público geral. E isso através das mídias sonoras, que acho um veículo bárbaro para divulgação científica!

Fala um pouco pra gente sobre os programas de divulgação científica que você produz

Um desses projetos é o Prosa com Ciência, que é um programa de podcast onde entrevisto cientistas das mais variadas áreas do conhecimento.

A ideia desse programa é trazer um pouco da história de cada cientista, do seu dia a dia de trabalho, das pesquisas, das descobertas que cada um anda fazendo. Enfim, falar um pouco do que é ser cientista e do que que é fazer ciência, de uma forma leve e solta, um bate-papo.

Por isso o nome prosa, é uma prosa mesmo. E, com isso, a gente também vai desmistificando um pouco aquela figura do cientista, aquela pessoa estranha, que fala difícil, e que faz coisas hiper complicadas. Ele está disponível nos principais agregadores de podcast e está no ar, desde junho de 2020.

Um outro programa que eu tenho é o Ciência no Dia a Dia, que é um programa semanal, com drops mais curtinhos, de mais ou menos cinco minutos, onde falo da ciência por trás das coisas que fazem parte do nosso dia a dia. Porque, se a gente parar pra pensar, a ciência está super presente no nosso dia a dia e em tudo que a gente está fazendo, comendo, até pensando. Mas a gente não se dá conta.

Então, a ideia desse programa é mostrar como a ciência faz parte do nosso dia a dia. Mas, principalmente, convidar o ouvinte a pensar cientificamente. Acho que quando conseguimos explicar, de uma forma simples, uma coisa que parece super complexa, a gente consegue fazer com que as pessoas entendam qualquer coisa. E não deixa de ser esse o meu trabalho como professora.

Acredito que a educação científica é o maior antídoto contra a ignorância, o obscurantismo e esse negacionismo da ciência que a gente está vivendo.

Se a gente conseguir fazer com que as pessoas raciocinem de forma lógica e critica, elas terão muito mais autonomia para decidir se aquela informação que estão recebendo faz ou não faz sentido. Então, meu objetivo com esse programa é ir estimulando esse pensar científico.

Como é que funciona tal coisa, por quê? Como é que foi inventado aquele equipamento? E eu tento, na verdade, falar um pouco de tudo: de antibióticos à bronzeamento, de mudanças climáticas a agrotóxicos, de vírus a fermentos – para que o pensar científico também possa, pouco a pouco, ir fazendo parte do dia a dia das pessoas.

Esse programa ele é veiculado pela rádio web da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a rádio UFRJ, desde setembro do ano passado, e ele também está disponível nos principais agregadores de podcast.

Além disso, tem também [meus] projetos de pesquisa, de ensino, de extensão, que eu venho desenvolvendo dentro da universidade, nessa área de divulgação científica. E aí envolvendo também alunos de graduação, de pós-graduação, para tentar incrementar um pouco a formação desses futuros cientistas, nessa área da comunicação.

Acho que a gente precisa urgentemente de cientistas que saibam se comunicar com o público. E, na minha opinião, o futuro da ciência depende muito disso.

Ainda temos casos de jornalistas que abrem espaço para profissionais que emitem falas discordantes do consenso científico. O que você pensa sobre isso e o que é e como se forma o consenso científico?

A ciência não tem lados. Porque não é uma questão de opinião. A ciência é baseada em fatos, em evidências, que são resultado de um rigoroso método de formulação e verificação de hipóteses. O que a gente chama de método científico.

Então, tudo começa com uma pergunta. A partir dela nós propomos hipóteses, que são possíveis respostas a essa pergunta. E aí, nós precisamos testar essas hipóteses para saber se elas respondem ou não àquela nossa pergunta.

E é nesse momento que nós vamos fazer os testes, os experimentos, que vão confirmar ou refutar a nossa hipótese. Daí nós temos então uma evidência, um fato, e a partir dessas evidências nós podemos propor uma teoria.

Então é assim que funciona o método científico. Isso não quer dizer que uma evidência, uma teoria científica, não pode ser falseada, contrariada.

Ela pode e deve e isso que é o mais bacana da ciência. Qualquer um pode chegar e provar –  claro que através de todas as etapas do método científico – que uma teoria é falha, que o que pensávamos ser de um jeito, na verdade, é de outro. A ciência está em constante mudança e evolução.

O consenso científico é o resultado desse processo de verificação de hipóteses. E isso repetido diversas vezes. É claro que a gente vai ter situações em que alguns estudos mostram o resultado e outros mostram resultados diferentes. Então, qual seria a conclusão?

Nesse momento, a conclusão é de que nós ainda não temos estudos suficientes que possam nos responder a essa pergunta. Ou seja, nós ainda não temos um consenso.

E é isso que faz a ciência ser um processo dinâmico, infinito. Com todas essas perguntas e respostas.

No caso de algumas polêmicas sobre eficácia de medicamentos, por exemplo, quando a gente fala que não há comprovação científica da eficácia, [significa] que nós não conseguimos mostrar, através de estudos, que utilizam o rigor do método científico, que certo medicamento é eficaz para tal condição. Então, até que alguém consiga comprovar a eficácia, o medicamento não é eficaz.

Agora, sobre a conduta dos jornalistas, eu realmente não me sinto muito à vontade para opinar. Mesmo porque estou entrando nessa área agora. Mas lembrei de uma frase famosa de um jornalista americano, que fala que se uma pessoa diz que está chovendo e a outra diz que não, não é o trabalho do jornalista reproduzir as duas opiniões, e sim olhar pela janela e descobrir qual é a verdade.

No caso mais mais específico do jornalista científico, para que consiga de fato decidir se está chovendo ou, ele precisa de ferramentas para entender o que é a chuva, entender porque uns dizem que está chovendo e outros dizem que não.

Da mesma forma que o cientista precisa ter na sua formação habilidades para se comunicar com o público, o jornalista que cobre essa área de ciências, precisa também ter, na sua formação, disciplinas que falem sobre metodologia científica.

O jornalista precisa ter essa capacidade crítica, para que ele possa decidir se aquela informação dita científica faz sentido. E, assim, ele vai poder com mais propriedade definir o que é verdade, dentro das informações que ele tiver acesso.

Qual o papel da mulher na ciência, hoje, em Pernambuco, Brasil e no mundo? E que cientistas mulheres você destacaria?

Em Pernambuco, no Brasil e no mundo, a mulher ainda enfrenta muitos desafios e não têm as mesmas oportunidades que os homens têm na ciência.

E isso se deve muito aquilo que eu falei antes sobre os estereótipos. A ideia super antiquada de que existem áreas de atuação femininas e masculinas. Que é a mesma de que existem brinquedos e brincadeiras diferentes para meninos e para meninas.

Então, muitas meninas já crescem acreditando que a ciência não é para elas. Ou que elas não são boas o bastante para isso. E aí elas nem tentam. As meninas ainda não são tão estimuladas nas áreas da ciência, quanto os meninos.

E aquelas que mesmo assim insistem na carreira científica, enfrentam ainda muitos preconceitos: desde ter artigos e projetos de financiamento aceitos, aprovações em concursos, convites para palestras.

Tudo é mais difícil na academia para as mulheres. Já conseguimos enormes vitórias, é verdade. Mas ainda há muito para ser conquistado, para conseguirmos chegar a uma condição de igualdade com os homens, dentro da academia. E, dentro dessa desigualdade, a gente tem um fator muito importante que é a maternidade.

Na nossa sociedade, o cuidado com os filhos ainda é, na grande maioria dos casos, uma tarefa exclusivamente materna. Isso faz uma diferença enorme na produtividade e nas oportunidades de trabalho para as mulheres em relação aos homens – que, na sua maioria, apesar de pais, não investem o mesmo tempo na criação e na educação dos filhos.

Então essa desigualdade, na nossa estrutura social, além de todos os preconceitos que eu já tinha falado, vão afetar diretamente o desempenho das mulheres na ciência e agravar ainda mais essa desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres.

Sobre cientistas locais e nacionais que destacaria, eu não saberia listar sem correr o risco de ser injusta com alguém. E nossas métricas de importância na ciência são tão limitadas ainda.

Quem seria uma cientista de destaque? Aquela que publica muitos artigos, aquela que fez uma descoberta importante, que ganhou muitos prêmios? Como vou comparar uma cientista iniciando a carreira, com aquela que está estabelecida, que já tem seu laboratório equipado, grupo de pesquisa funcionando, projetos aprovados?

Como é que eu vou comprar, por exemplo, uma cientista que não tem filhos, àquela que é mãe solo?

Então, para mim, todas as mulheres que escolheram a ciência merecem todo meu respeito e admiração pelo simples fato de enfrentarem o desafio diário de ser cientista no Brasil.

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