“Walking dead folia”: solidão pandêmica e política influenciaram Mundo Livre S/A

 “Walking dead folia”: solidão pandêmica e política influenciaram Mundo Livre S/A

Mundo Livre S/A. Foto: Tiago Calazans

 

 

Capa do novo disco da Mundo Livre S/A, “Walking dead folia”, transportou Zeroquatro a episódio no qual ele escapou de virar defunto alegórico em um bloco carnavalesco de Olinda

 

Por AD Luna

A Mundo Livre S/A está com novo trabalho na praça virtual, “Walking dead folia”. Em tempos de “viralizações” nas redes sociais, a banda pernambucana com quase quatro décadas de existência (criada em 1984), teve uma sacada de mestre ao divulgar a capa do seu nono álbum, dias antes de lançá-lo nas plataformas de streaming.

Criada pelo artista Wendell Araújo – também filho do país Pernambuco -, a ilustração transporta o observador para cena inspirada em um bizarro bloco carnavalesco de Olinda. O grupo de foliões que dele participava tinha por hábito acolher em caixões pessoas aleatórias que, exauridas pelos passos de frevo e aditivos químicos, dormiam nas ruas a fim de recobrar as energias.

Ao fundo, observa-se um boneco de Olinda que lembra um certo governante brasileiro. Ele está ali, abaixo do título do disco, o qual nos remete à famosa série norte-americana de zumbis. Ao centro, o palhaço defunto é cercado por pessoas que fazem arminhas com as mãos.

De acordo com Zeroquatro, o processo de escolha da capa foi semelhante à do disco “Por pouco” (2000). Na época, inicialmente ele quis usar uma foto de Sebastião Salgado que remetia aos muros que dividem os Estados Unidos e o México, para impedir a entrada de imigrantes. Vencida pela burocracia, optou-se por uma ilustração feita por Jorge Du Peixe, vocalista da Nação Zumbi.

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Para o novo álbum, a ideia era estampar a imagem fotográfica de um cadáver, com maquiagem do Coringa, vestido com uma camiseta amarela acompanhada pela legenda “Sorria, você teve alta!” e velório com alusões ao carnaval.

Por razões econômicas e conceituais, a gravadora Estelita, que lançou o disco, descartou a ideia. Além de não caber no orçamento, a visão de uma foto com tal temática poderia ser interpretada como de muito mau gosto, tendo em vista as milhares de vidas perdidas durante a pandemia da covid-19.

“Aí, mais uma vez, lembrei dessa alternativa de usar ilustração para amenizar. Compartilhei pelo WhatsApp várias capas que eu achava maravilhosas, de temas pesados, mas tratados de forma humorada, digamos assim. Principalmente capas de psychobilly, rockabilly, punk”, relembra Zeroquatro.

Com a nova diretriz, aventou-se a ideia de buscar os serviços do ilustrador Cristiano Suarez, criador do poster da turnê que a banda punk Dead Kennedys faria no Brasil, em 2019 (veja abaixo). Em virtude dos vários signos contidos no desenho, a obra criou uma celeuma tão gigante que acabou culminando no cancelamento dos shows agendados no País.

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Suarez ficou bastante interessado, pois se considera fã da Mundo Livre S/A. Porém, o grande número de trabalhos aos quais ele precisava se dedicar antes ou ao mesmo tempo em que se debruçaria sobre a capa de “Walking dead folia”, impediram-no de assinar mais essa ilustração.

Pensou-se então em outras pessoas, de preferência locais. E, como a gravadora já havia tido boas experiências com Wendell Araújo o nome dele foi sugerido.

Um quase defunto alegórico

“Logo eu me encantei quando vi o traço do cara. Fiquei impressionado com a agilidade, o primeiro rascunho [saiu] em coisas de minutos. E, para minha surpresa, ele transpôs o velório para o Carnaval de Olinda”, conta Fred.

A máquina do tempo mental o teletransportou para o longínquo tempo em que ele frequentava a folia de Momo na cidade vizinha ao Recife. Entretanto, não com o intuito de curtir (ou brincar, como se fala por aqui), mas de expor seu desagrado com aquela festa “alienante”, por meio de mensagens estampadas em sua vestimenta punk.

A revolta anticarnaval do o então jovem ultra antissistema não o impedia de usufruir dos atrativos etílicos da festa. O exagero, porém, o fez desfalecer na sarjeta e quase virar um defunto alegórico, acomodado no caixão festivo, carregado pelos integrantes daquele sinistro bloco olindense.

“Meu então parceiro, naquela visita ao carnaval, foi quem me protegeu e acabou evitando que eu fosse jogado num desses caixões”, rememora Zeroquatro. O amigo em questão era Renato L, jornalista, futuro “ministro da Comunicação” do manguebeat e ex-secretário de Cultura do Recife.

Os rascunhos de Wendell fizeram com que o cantor da Mundo Livre S/A tirasse das entranhas da memória aquele então esquecido episódio e realizasse a conexão entre “a loucura que é o carnaval underground, selvagem de Olinda com o pandemônio que se tornou o Brasil”.

Influências

Quando recebeu o convite do Estelita, a Mundo Livre não tinha a pretensão de gravar um disco. A ideia inicial era produzir um EP com, no máximo, seis músicas. “Não tínhamos material suficiente para um álbum e não podíamos nos encontrar. Estávamos fazendo apenas uma ou outra live, porque não se podia ensaiar, em razão do distanciamento social”.

Ainda assim, Zeroquatro conseguiu se debruçar sobre rascunhos guardados e de ideias do Sonofabit, projeto paralelo que ele mantém com o produtor musical e instrumentista, P3dr0 Diniz.

À medida que o noticiário da pandemia ficava mais impactante, novas inspirações surgiram e se transformavam em música. Mas além da praga que assola a humanidade, outros temas ajudaram a banda a compor.

A canção “Blue gin e os seres (de vidro)”, por exemplo, envolve questões pessoais de Zeroquatro. “No meu caso, houve um duplo desafio: uma quarentena forçada e, ao mesmo tempo solitária, porque eu tinha acabado de me separar, em um casamento de 22 anos”.

O grupo usou composições criadas antes da eclosão da pandemia, a exemplo de “Conselho (do pastor trans para a amante miliciana)”, a qual originalmente entraria para o repertório do Sonofabit. Segunda Zeroquatro, ela tem a ver com o pandemônio que é a “política brasileira neofascista”.

No caso de “Baile infectado”, já existia uma base de cavaquinho composta por ele e cuja letra foi atualizada para a realidade atual.

Todas as participações especiais em “Walking dead folia” são de gente do país Pernambuco. Na faixa “Melô das musas empoderadas da Ilha Grande” o manguebeat e o brega funk se encontram. A faixa, que virou videoclipe, conta a presença da artista Doralyce, que também participou do disco “A dança dos não famosos” (2018). O arranjo e os beats foram criados por WR no Beat.

Em suas redes sociais, Doralyce escreveu:

“O manguebeat que tanto me influenciou, vivo, me chama pra mergulhar no bregafunk do brabo @wrnobeat na releitura de uma de minhas músicas favoritas do @mundolivre_sa #musadeilhagrande Ainda lembro a felicidade que eu senti quando @p3dr0diniz me falou que @zeroquatro62 tinha um convite musical pra mim, eu nem esperava que ele fosse me convidar pra uma das minhas músicas favoritas dele. @zeroquatro62 sempre disposto a ensinar e aprender, generoso, conectado com a juventude, e inspirando muita gente. A nossa língua é a música, e a gente transcende fazendo SOM”.

Jorge Du Peixe, vocalista da banda Nação Zumbi, está na enigmática “Walking dead diranda (A Maldição 2)”, uma das faixas mais longas da história da Mundo Livre S/A, com seus mais de oito minutos de duração.

“Walking dead folia”: ouça entrevista de Zeroquatro no programa InterD

Ouça “Mundo Livre S/A: Zeroquatro fala o disco “Walking dead folia”” no Spreaker.

 

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