“Superhuman”: espiritualidade, instabilidade ou truque?

 “Superhuman”: espiritualidade, instabilidade ou truque?

Superhuman IMAGEM- ARTE IQC

 

Oscilações aleatórias, efeito ideomotor, truques de mágica simples e confusão conceitual são os fenômenos muito humanos que “Superhuman” mostra como se representassem feitos extraordinários, prova de que a mente é uma espécie de divindade menor vestindo um macacão temporário de carne e osso

Por Carlos Orsi*

Realizar feitos aparentemente “impossíveis” com os olhos vendados (incluindo dirigir automóveis) é uma velha família de truques de mágica que, às vezes, se vê cooptada por supostos detentores de poderes paranormais – farsantes que, quando postos à prova, acabam desmascarados (exemplos aqui e aqui). Em sua forma mais primitiva, a façanha é produzida erguendo-se levemente a cabeça (“empinando o nariz”, por assim dizer) e olhando para baixo, pelo vão que se forma entre a venda e o dorso nasal.

Não é uma técnica difícil de dominar, e crianças brincando de cabra-cega tendem a descobri-la e adotá-la espontaneamente. A despeito de estarem usando um truque velho e manjado, crianças que dão um jeito de enxergar com vendas sobre os olhos são tratadas como prodígios paranormais, poços de sabedoria e ocupam boa parte do documentário – talvez informercial ou “desinformentário” sejam descrições melhores – “Superhuman: The Invisible Made Visible” (“Super Humano: O Invisível Feito Visível”), que pode ser encontrado em várias plataformas de streaming e tem seu próprio site oficial.

O vídeo, lançado em 2020 e com quase duas horas de duração, propõe duas teses: uma, que a mente humana tem capacidades extraordinárias que podem ser desenvolvidas com treinamento adequado (fornecido, a preços módicos, por diversos dos entrevistados no programa); outra, que essas capacidades de algum modo provam que “tudo é energia” e a existência de uma realidade espiritual – que nossas vidas na Terra são uma espécie de videogame, e que os verdadeiros jogadores somos nós mesmos, só que num plano superior.

A conexão entre as teses é um claro non-sequitur, o erro lógico em que a “prova” e a “coisa provada” não têm nenhuma ligação entre si: mesmo se os poderes paranormais sugeridos em “Superhuman” fossem reais (não são), eles não representariam, por si sós, evidência de realidade espiritual. Alguém poderia argumentar que os poderes são herança do planeta Krypton, efeito da radiação ou produto de mutação genética, para citar apenas três alternativas populares no cinema e nas histórias em quadrinhos.

A apresentadora, produtora, diretora e roteirista Caroline Cory e seus entrevistados caem no erro, muito comum na cultura “New Age”, de confundir os significados próprio e metafórico das palavras – principalmente, “energia”, que ora é tratada como quantidade física mensurável e detectável por instrumentos, ora como sinônimo de estado emocional e ora como algo vago, um tipo de bem-estar genérico.

Um dos segmentos do programa, envolvendo um homem que se apresenta como ex-agente do FBI e o ator mirim dos anos 1980 Corey Feldman (o vídeo está repleto de aparições breves de ex-celebridades e de celebridades de segundo ou terceiro time), explicitamente confunde a assinatura térmica deixada por um ser humano ao se levantar de uma poltrona – a famosa “almofada quente porque alguém sentou aqui” – com algum tipo de energia mágica do Universo.

O vídeo abre com uma citação atribuída a Albert Einstein e que é provavelmente espúria (não consta do “Quotable Einstein”, o guia oficial de frases famosas do grande físico alemão): “Tudo que existe é energia, é tudo que há”.

Dos cientistas (ou supostos cientistas) entrevistados, o mais famoso provavelmente é o médico Eben Alexander, cujo livro “Prova do Céu” foi best-seller anos atrás. Nele, o autor alega relatar uma viagem do espírito para fora do corpo, incluindo uma visita ao paraíso.

Muitos dos fatos citados por Alexander no livro, que em tese provariam que sua experiência conteve mais do que simples alucinações, foram investigados pelo jornalista Luke Dittrich, da revista Esquire, que descobriu que Alexander mentira a respeito dos eventos mais cruciais. A reportagem da Esquire saiu em 2013, ou seja, há quase dez anos.

Pondo uma frase inventada na boca de Einstein, tratando Alexander, desmascarado uma década atrás, como fonte confiável e caindo no truque primário das crianças que enxergam com os olhos cobertos, “Superhuman” já decola com sua credibilidade seriamente comprometida.

Os demais superpoderes demonstrados ao longo do vídeo ou não são superpoderes (um segmento mostra alterações no eletroencefalograma de uma atriz à medida que ela muda as emoções que simula – raiva, calma etc.) ou envolvem alterações de sistemas extremamente sensíveis em equilíbrio precário, como pequenos quadrados de papel alumínio suspensos no interior de cúpulas vidro, apoiados na ponta de agulhas ou alfinetes ou sustentados por fios de náilon.

A cúpula de vidro pode dar a impressão de que o sistema está isolado de influências materiais externas, mas a condição interna de equilíbrio é tão precária que atribuir os movimentos observados a algum tipo de poder mental – e não, por exemplo, à pressão das mãos apoiadas sobre a mesa onde o instrumento repousa, ou variações de temperatura – é ingênuo, para dizer o mínimo.

O criador de um dos instrumentos usados nas demonstrações que aparecem no vídeo admite que seu equipamento não funcionaria caso houvesse vácuo ao redor da parte sensível do aparato e nenhuma vibração mecânica externa fosse introduzida. A questão de por que a energia pura da mente humana precisaria de ar ou de vibrações pré-existentes para mover o sensor – no caso, uma tira de cartolina apoiada numa agulha – não é apresentada e nem respondida.

Enfim: oscilações aleatórias, efeito ideomotor, truques de mágica simples e confusão conceitual (entre o calor do corpo humano e “energia” no sentido esotérico, por exemplo) são os fenômenos muito humanos que “Superhuman” mostra como se representassem feitos extraordinários, prova de que a mente é uma espécie de divindade menor vestindo um macacão temporário de carne e osso.

Todo o programa é pouco mais do que um veículo para que diversos dos entrevistados façam propaganda dos cursos ou produtos que vendem – com subcelebridades oferecendo endosso – e para o amálgama de ficção científica ruim e religiosidade difusa que estrutura a visão de mundo da produtora-diretora-roteirista-apresentadora.

Mais do que uma obra caleidoscópica de pseudociência, o vídeo busca apresentar uma jornada espiritual. Caroline Cory tem uma teologia própria, em que duas divindades, o Criador Divino (Pai) e a Energia Criadora (Mãe), “formam um maciço corpo de luz e consciência que abrange toda vida evolucionária”, como se lê na introdução de “Visible and Invisible: Worlds of GOD” (Visível e Invisível: Mundos de DEUS”), publicado em 2004.

No site de “Superhuman”, Cory se apresenta como participante regular de séries como “Alienígenas do Passado” e “IneXplicado”. Ela também é autora de livros de autoajuda e esoterismo. Em um deles, escreve que teve contato com inteligências de planos superiores pela primeira vez na infância, e que recebe mensagens mediúnicas de seres intergalácticos frequentemente.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP), “Negacionismo” (Editora de Cultura) e coautor de “Pura Picaretagem” (Leya), “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares)

Publicado originalmente na Revista Questão de Ciência sob o título: “Superhuman”: espiritualidade, instabilidade, truque

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