“Pinóquio” de Guillermo del Toro: mentir é ficcionar, é criar uma realidade alternativa

 “Pinóquio” de Guillermo del Toro: mentir é ficcionar, é criar uma realidade alternativa

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Quando o Pinóquio de del Toro mente, não é apenas o nariz de madeira que cresce. O nariz cresce e frutifica! Cria galhos, folhas, frutos. Afinal, mentir não é só trair a verdade. Mentir é ficcionar, é criar uma realidade alternativa

 

Por Alexey Dodsworth* 
@dodsworth.magnavita 

Em “Pinóquio”, de Guillermo del Toro, há uma passagem específica que pode passar despercebida, mas que rende ótimos debates. É uma questão antiga, já abordada na famosa discussão entre Benjamin Constant e Immanuel Kant.

Originalmente, a história de Pinóquio tem uma leitura moral sobre como mentir é feio. A mentira faz o nariz crescer, desfigura o personagem. Se ele quiser ser um menino de verdade, precisa aprender a ser bom, mas ele começa a aventura sendo bastante malcriado. Na versão de del Toro, há uma sutil diferença em relação à obra original de Collodi, no que tange ao “mal da mentira”.

Sabemos o que Kant pensava a respeito do ato de mentir. Se eu minto, valido que todos façam o mesmo. Logo, falar a verdade é um imperativo. A verdade é sempre boa, até se for ruim. Benjamin Constant discorda. Em apertadíssima síntese, há o exemplo do assassino à caça de sua vítima. Você vê onde a vítima se escondeu. O assassino lhe pergunta: ”você viu essa pessoa?”. Responder a verdade desencadeará um grande mal. Mentir salvará a pessoa.

O exemplo é extremo, mas posso dar outro bem prosaico. Quando meu bisavô faleceu, minha bisavó demenciou quase imediatamente. Passou uns quinze anos demente e de cama. Eu era pré-adolescente quando ela me perguntou pela primeira vez: ”onde está Pasquale?”. Eu respondi a verdade, e isso não trouxe bem algum. Ela chorou pavorosamente por um bom tempo. A partir daí, sempre que me perguntava onde estava o marido, eu mentia sem o menor pudor: está na fazenda, viajou, volta daqui a pouco. Ela se aquietava.
Constant concordaria comigo.

Kant tem boas tréplicas para o “direito de mentir” de Constant. Mas o que eu quero chamar a atenção aqui é para uma passagem específica do ”Pinóquio” de del Toro. É quando o boneco vivo, após ser muito repreendido por mentir, SALVA todo mundo ao dizer não uma, mas diversas mentiras repetidas. Ele precisa mentir, e várias vezes, caso contrário todos morrerão.

Um detalhe curioso: quando o Pinóquio de del Toro mente, não é apenas o nariz de madeira que cresce. O nariz cresce e frutifica! Cria galhos, folhas, frutos. Afinal, mentir não é só trair a verdade. Mentir é ficcionar, é criar uma realidade alternativa. E isso, às vezes, traz conforto (vide minha bisavó), salva vidas (conforme explica Constant) e dá sentido à existência (que é o que um espectador de ficção experimenta ao mergulhar numa boa história inventada).

Em seu mais delicado momento, não é Pinóquio quem aprende uma lição, mas todos os que o rodeiam: mentir, às vezes, é o remédio.

 

*Alexey Dodsworth é escritor, doutor em Filosofia pela USP e Universidade Ca Fóscari (Veneza, Itália)

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