“Saros 136”: uma conversa com Alexey Dodsworth sobre a HQ brasileira de ficção científica

 “Saros 136”: uma conversa com Alexey Dodsworth sobre a HQ brasileira de ficção científica

Alexey Dodsworth. Foto: Leonardo Chioda

 

“Saros 136” retrata personagens de épocas e locais diferentes, inclusive do Brasil, cujos caminhos acabam por se interconectarem

 

Por AD Luna

Com roteiro de Alexey Dodsworth e desenhos de Ioannis Fiore, “Saros 136” é um romance gráfico de ficção científica sobre a constante luta de nossa espécie para se reinventar e sobreviver.

A história apresenta a trajetória de personagens de épocas e origens diferentes, que se interconectam. A obra foi selecionada pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo em 2020.

“Saros 136” é a primeira obra nacional de ficção científica a ser aprovada pela coordenadoria pedagógica da Fundação Casa, também de São Paulo – que é responsável por menores infratores, e agora figura em todas as 116 bibliotecas da entidade. A obra é finalista do prêmio Odisseia de Literatura Fantástica.

Alexey participou da edição, desta quarta (10), do programa InterD – música e conhecimento, veiculado sempre às 20h, na Universitária FM do Recife. Além da HQ “Saros 136”, ele também falou sobre a importância da arte, para a ciência, e da ficção para nós, humanos.

Ouça a entrevista no player abaixo e leia a transcrição da conversa.

Ouça “Ficção científica, arte e ciência numa conversa com Alexey Dodsworth, autor da HQ “Saros 136″ #30” no Spreaker.

Fale um pouco sobre a HQ “Saros 136”, como surgiu a ideia, em que você se inspirou?

A história de Saros 136 me veio à mente na época em que eu cursava o bacharelado em Astrofísica e me deparei com o conceito do ciclo Saros de eclipse. Para quem não conhece, todo eclipse, seja ele solar ou lunar, se insere em um ciclo chamado “Saros”. O que é? 

É um intervalo entre dois eclipses de mesma natureza, ou seja, muito semelhantes, em que ocorrem com uma diferença temporal de 18 anos, 11 dias e 8 horas. 

Quer dizer, se acontece hoje um eclipse, seja ele solar ou lunar, isso significa que daqui há 18 anos, 11 dias e 8 horas – pode olhar no calendário! – vai ter um outro eclipse da mesma natureza; e, que, 18 anos, 11 dias e 8 horas no passado, aconteceu, também, um outro eclipse da mesma natureza.

Então, quando os eclipses são da mesma natureza, ou seja, são muito semelhantes e tal, o que ocorre, também, é uma diferença de localidade. Quer dizer, o eclipse acontece agora e daqui há 18 anos, 11 dias e 8 horas acontece um outro, muito parecido, mas em um outro canto do mundo. 

A gente diz que eles pertencem ao mesmo ciclo Saros; quer dizer, todo eclipse, seja ele solar ou lunar, é um eclipse que faz parte de algum ciclo Saros.

No caso, escolhi o ciclo de número 136 pelo seguinte: eu queria contar, queria que fizesse parte da história uma passagem importante da história da ciência, que ocorreu em Sobral, no Ceará, no ano de 1919, quando uma equipe de cientistas britânicos e estadunidenses veio ao Brasil para poder testar uma hipótese de Albert Einstein.

E eles vieram em 1919 e essa foi uma das etapas da história da ciência mais significativas. Einstein chegou a escrever que a tese dele foi comprovada pelo luminoso céu do Brasil e tal.

Então, eu queria contar uma história de ficção científica de personagens separados no tempo; a única coisa que os une, o único ponto em comum entre eles – porque eles são de culturas diferentes, eles estão em séculos diferentes – é o fato de que eles estão prestes a testemunhar um eclipse do ciclo Saros 136. Que séculos são esses?

O século 19, com um personagem chamado Antônio, que é um homem escravizado, ele é um negro da Guiné que é escravizado e arrastado pra Angola; ele é um sacerdote, um curandeiro. 

O século 20, na figura de um astrofísico chamado Heinrich, que faz parte da equipe britânica. No século 21, nós temos uma astronauta chamada Julia Rivera, que é uma personagem que aparece em vários de meus livros. É praticamente de um universo que eu gosto de trabalhar. 

E, no século 22, a gente tem Radha, que é uma geneticista que, junto com uma inteligência artificial chamada Ravi – que também aparece em vários de meus livros –, está tentando salvar o que sobrou da humanidade.

Cada um deles está vivendo um drama completamente diferente um do outro. A história de um não tem aparentemente nada a ver com a história do outro, mas todos eles têm em comum o fato de que estão prestes a testemunhar um eclipse solar do ciclo Saros 136. 

E, inicialmente, confesso que eu pensei em escrever um livro. Eu cheguei a começar a escrever, só que, quanto mais eu escrevia o romance, mais eu via a história se desdobrando através de imagens. E é aquela história: o autor, é bom que ele saiba quando uma história é mais imagética do que textual porque aí ele pode fazer quadrinhos. 

A gente tem uma dificuldade no Brasil de fazer cinema, os efeitos especiais são muito caros, cinema não é algo muito estimulado no Brasil. Seria o ideal que fosse cinema, mas não podendo fazer um filme, fui e fiz uma história em quadrinhos. E achei mais interessante do que seria se eu tivesse feito um livro.

Ilustração da HQ “Saros 136”. Por Ioannis Fiore

"Saros 136"
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“Saros 136” vem com um prefácio de Renato Janine muito interessante, sobre a importância da imaginação e da arte para a ciência. Poderia comentar a respeito. (NOTA: Renato Janine é o atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, professor, escritor e ex-ministro da Educação do governo Dilma)

 Ah, pois é! O Renato foi um querido em fazer esse prefácio. Ele toca num ponto que eu acho muito fundamental quando a gente fala de ciência. Existe uma ideia equivocada de que a ciência se pauta em pura lógica. Na verdade, não é assim. Na verdade, a gente parte, também, de suposições completamente imaginárias. 

Quer dizer, a gente dá asas à imaginação. Imagina modelos. E aí, o que a gente faz com esses modelos que a gente imagina, que a gente fantasia? A gente testa. E aí, quando a gente testa – e esse é o método científico, você testa as coisas –, ou você estava certo ou você estava errado.

Quer dizer, houve muitas ideias ao longo da história da ciência que foram consideradas como sendo certas, que foram imaginadas como adequadas, como corretas, e, depois, se revelaram como incorretas. A pessoa não tinha como saber se a ideia dela estava certa ou não, mas ela exerceu a imaginação. 

Aí você pega, por exemplo, a Física de Aristóteles, da época dele. Aristóteles foi um gênio! Não importa que Aristóteles estivesse completamente errado sobre a Física, sobre a natureza dos planetas, sobre a natureza do nosso próprio mundo, quando ele fala dos quatro elementos e tal. 

Não importa que ele estivesse enganado. Para a época dele, aquela imaginação, aquilo que ele elaborou como sendo uma ideia de verdade pro mundo foi genial. Isso depois foi testado e foi refutado, mas assim é com uma série de outras coisas ao longo da história da ciência. A gente progride imaginando coisas e às vezes a gente está certo, às vezes não está.

O problema não é imaginar, o problema não é fantasiar… o problema é quando a gente toma nossa fantasia como uma verdade irrefutável. Eu acho que a diferença de um bom cientista para uma pessoa que rejeita o método científico é que a pessoa que rejeita o método científico transforma a fantasia dela num dogma. E esse dogma não pode ser contradito por evidências. 

Quer dizer, a pessoa fica tão apegada à ideia que ela tem de mundo, à fantasia que ela tem – e não é nenhum problema ter essa fantasia –; o problema é quando você tem evidências que mostram que as coisas, na verdade, funcionam de uma outra maneira e você continua apegado ao velho modelo.

A diferença para o cientista – eu falo aqui do cientista, mas acho que seria melhor dizer “a pessoa que abraça o método científico” – é que ela não tem nenhum problema de abandonar a fantasia anterior que ela tinha e abraçar um novo modelo de realidade. 

Mas praticamente todos os modelos de realidade começam lastreados em imaginação, não é a pura lógica que entra. Entra a aposta, entra o palpite, entra a fantasia, e, com o tempo, e não só com o tempo, mas com o método científico, com as mensurações, com as avaliações, a gente consegue avaliar se a ideia que a gente tinha era ou não correta.

Qual a importância da ficção para nós humanos, de que forma ela mexe com nossas vidas nos sentidos positivo e negativo? 

Eu diria que a ficção é um dos aspectos mais importantes na existência humana. E, quando eu digo isso, não me refiro especialmente à literatura de ficção científica, ficção fantástica, filmes, quadrinhos, não. Eu falo da ficção no sentido mais amplo.

Para explicar melhor, eu vou evocar aqui algo que o Yuval Harari fala sempre, que é o seguinte. Ele não é o primeiro a falar isso, mas eu gosto da maneira em que ele fala porque é muito clara, é muito pedagógica.

É assim: todos os animais, sejam eles humanos ou não-humanos, vivem em dois mundos. Um deles é o mundo objetivo; o mundo objetivo é o mundo das coisas, que existem independentemente da gente e dos nossos desejos, dos nossos quereres. 

Então, no mundo objetivo, existe calor, existe frio, existem montanhas, existem rios, existem lagos, chuvas, calor. Ou seja, são coisas que existem e a gente tem que lidar com elas. Elas são fatos. Uma montanha existe independente de eu gostar disso ou não, eu tenho que lidar com ela. Um deserto existe, independente de eu achar isso bom ou não, e eu tenho que lidar com a existência de um deserto. 

Todos os animais têm que lidar com questões objetivas. Dentro do universo das coisas objetivas, a gente tem a fome, a sede; são coisas que todos os animais têm que lidar.

Só que, além do mundo objetivo, nós, animais, humanos e não-humanos, vivemos também num mundo subjetivo, que é um mundo de sentimentos. O mundo subjetivo é o mundo do medo, o mundo do amor, o mundo da saudade. 

Qualquer pessoa que tenha um cachorro, gato, ave, coelho, sabe muito bem que os animais, assim como nós, tem sentimentos. Eles têm saudade, eles têm raiva, eles têm ciúmes. A diferença é uma diferença de autoconsciência, uma diferença intelectual, mas, praticamente, os animais não-humanos também vivem no mundo subjetivo.

Ora, se nós vivemos em um mundo objetivo e subjetivo tanto quanto qualquer outro animal, o que nos diferencia deles? A diferença é que, até onde se sabe, o ser humano é o único que existe dentro de um mundo intersubjetivo. 

E o que é um mundo intersubjetivo? É um mundo de coisas que não existem a priori, elas foram criadas por nós, ou seja, elas foram inventadas, elas são ficções. 

Mas são ficções que assumiram um valor de verdade tão grande que são mais poderosas, muitas vezes, do que o mundo objetivo, do que o mundo das coisas que existem a priori.

Vou dar um exemplo de como o mundo intersubjetivo, que é o mundo da ficção, é o mundo das coisas inventadas, pode ser mais poderoso do que o mundo objetivo. Vamos fazer um exercício imaginativo.

Imagine que não existisse fronteira Estados Unidos-México, a fronteira que foi criada por nós. Você conseguiria passar por aquela fronteira, que, na verdade, só existe porque a gente criou, tranquilamente andando.

Não existe nenhum problema no mundo objetivo. Não existe nenhum obstáculo objetivo que te impeça de atravessar a fronteira Estados Unidos-México antes da gente inventar essa fronteira. A gente tem o que? A gente tem um grande campo que você tem que atravessar, pode atravessar a pé. 

Agora, tente atravessar a fronteira criada. Ou seja, a fronteira política que a gente inventou, não a fronteira natural, a fronteira política. Você só vai conseguir atravessar a fronteira política Estados Unidos-México se você estiver munido de um passaporte válido que é, convenhamos, outra ficção, é outra invenção. Você precisa de uma ficção para atravessar outra ficção. 

Ou, por exemplo, quem tem dupla cidadania sabe muito bem. Se eu vou para a Europa com o passaporte brasileiro, eu vou ser tratado de uma maneira. Vão perguntar quanto tempo eu vou ficar, vão perguntar o que eu vou fazer lá, quanto dinheiro eu tenho, etc. 

Se eu for com o passaporte italiano, ninguém vai nem olhar a minha cara. Pode entrar, a casa é sua. Mas eu sou a mesma pessoa, objetivamente. O que diferencia? O que muda? Muda o fato de que uma ficção vai me dar direitos que a outra ficção não dá.

Quer dizer, nós, humanos, estamos o tempo inteiro criando ficção, o tempo todo a gente está criando ficção.

Na política, por exemplo, quase sempre vence não quem tem as melhores ideias e quem defende as causas mais corretas, mas quem tem a melhor narrativa. Isso é mais evidente em algumas culturas do que em outras. 

Uma coisa que eu observo muito claramente é que, em países latinoamericanos, vence muito mais a retórica, vence muito mais a narrativa, principalmente se ela for uma narrativa sustentada por um macho muito forte, que fala muito alto e com muita veemência, do que necessariamente o indivíduo que tem a ideia mais racional.

Quer dizer, a gente está o tempo inteiro se deixando levar por ficções. E isso não é um problema, isso é a natureza humana. Acho que o problema é quando a gente não tem consciência de que a gente está se deixando levar por isso, e quando a gente sustenta que as nossas ficções tem valor de verdade.

Então veja, por exemplo, a questão das religiões. As religiões não existem por si, elas existem porque a gente as inventou. E não é um problema que as religiões existam, não é um problema. 

O problema é quando eu acho que a minha história, quando eu pego a minha história como sendo a verdade e quando eu digo que ela tem que ser a história única. Inclusive, muita gente entende errado Nietzsche. Por exemplo, Nietzsche criticava as religiões, principalmente o Cristianismo, mas ele tem algumas passagens muito interessantes, em que ele diz, por exemplo, que ele não teria nada contra religiões, o Cristianismo especificamente, se elas não tivessem tanto ódio da carne, do mundo material. 

E ele também, em outras passagens da sua vasta obra, diz que não adianta a gente querer um mundo sem religiões porque nós somos animais que ritualizam, nós somos animais que ficcionam. A gente tem uma necessidade de ritual. Agora, claro que a gente pode encarar esse universo das religiões… a gente poderia encarar com mais maturidade. 

A gente poderia encarar e entender o fato de que, se eu gosto especificamente de uma religião, se eu aprecio uma religião, se eu sigo uma religião, isso não significa necessariamente que todo mundo tem que seguir. 

Quer dizer, é o erro de tentar impor um mito… ou melhor dizendo, porque a pessoa que acredita em uma religião vai se sentir ofendida se eu chamar de mito. O grande problema é se eu tento impor a minha crença – de uma coisa que existe porque os humanos inventaram – para todos os outros.

Então é isso, eu diria que ficção é um dos aspectos mais importantes da vida humana, justamente porque nós nos norteamos por ela praticamente o tempo inteiro.

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Capa da HQ “Saros 136”

Saros 136
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