Artes

“Paradoxo de Theséus”: leia resenha do livro brasileiro de ficção científica

O mundo onde se passa esta história é um futuro não tão distante do nosso com várias mudanças políticas não tão absurdas à luz do nosso presente

Por Derley Menezes Alves*

Contém leves spoilers do livro

A ideia de alguma coisa além desse mundo, de algum tipo de transcendência, é algo que encontramos desde sempre na história humana. Deuses ou um Deus único, ou mesmo uma transcendência sem Deus algum, como é o caso do budismo (que pode até ser erroneamente entendido como prática sem transcendência), o ser humano tem uma sede pelo incondicionado (Kant). Alguns responderão a esta sede apontando sua natureza eminentemente humana, afirmando que o ser humano cria seus deuses e depois se entrega ao fruto de sua criação com uma devoção desesperada.

Será que há alguma verdade em algumas religiões? Será que todas são um pouco verdadeiras? O que é um deus? O que é Deus? E se o ser humano criar Deus, não como ideia na qual ele acredita, mas materialmente? Se pensarmos em termos de evolução, formas mais simples de vida são a base para que formas mais complexas possam surgir. Este argumento pode ser a base para uma analogia na qual nós, por um processo artificial, criemos algo além de nós e que podemos chamar de Deus? Esta e outras perguntas pipocaram em minha cabeça lendo o livro Paradoxo de Theséus de Alexey Dodsworth publicado pela Editora Draco.

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O mote do livro é o paradoxo de Teseu, apresentado por Plutarco na obra Vidas Parlelas. Trata-se de uma reflexão acerca da identidade através das mudanças pelas quais os seres passam e sobre onde está a identidade una de algo composto de partes, se o todo é algo além da soma das partes ou não. Eis o que diz o texto:

O navio no qual Teseu partiu e regressou era uma galeota de trinta remos, que os Atenienses guardaram até ao tempo de Demétrio de Falero, retirando sempre as velhas peças de madeira, à medida que apodreciam, e colocando outras novas em seus lugares; de maneira que depois, nas disputas dos Filósofos sobre as coisas que aumentam, a saber, se permanecem unas ou se fazem outras, essa galeota era sempre alegada com exemplo de dúvida, porque uns mantinham que era um mesmo barco, enquanto outros, ao contrário, sustentavam que não.

O livro narra a história de Thomas de Almeida Rocco, cientista envolvido em um projeto apelidado maldosamente pela mídia e pelos detratores de Basilisco, referência a um monstro serpentiforme e venenoso da mitologia grega. O que é na realidade este basilisco? Um tipo de robô composto de vários robôs menores cuja função é preservar o legado de genialidade da humanidade. Isto é feito copiando o cérebro de grandes seres humanos, de ganhadores do Nobel da paz a cientistas e filósofos de todos os tipos. As mentes copiadas seriam um tipo de legado que transcenderia o fim eventual da humanidade.

Percebe-se aqui os dilemas morais que podem ser suscitados pelo projeto. Em primeiro lugar, é difícil entender onde terminaria a cópia e começaria a pessoa original. A cópia seria ou não seria um outro ser idêntico até o momento da separação, porém diferente a partir dela?

Outra questão filosófica diz respeito à natureza do que ocorre com a cópia: muitos entenderão que se trata de uma transferência de consciência e não de uma cópia e esta ideia enche as pessoas de horror, parece que a alma seria impedida de prosseguir seu caminho, presa em um inferno mecânico.

Todas estas questões levaram Thomas e seus colegas a desenvolver o protocolo Theséus, ou seja, só pode ser copiada a consciência à beira da morte, depois de assinar termo em vida e, a cada seis meses, confirmar estar de acordo com o termo enquanto na plena posse das faculdades mentais. No momento da morte, os nanitas entram, copiam e carregam a cópia para o Basilisco.

Porém, Thomas enfrenta dois problemas para o sucesso de seu projeto. Primeiro, já foram copiadas algumas pessoas mas o Basilisco não deu nenhum sinal de vida ou atividade, permanece uma nuvem amorfa de pequenos robôs.

Outro problema é um vídeo vazado no qual um chimpanzé é copiado no momento da morte e a cópia colocada em um corpo mecânico. O desespero e o body horror da cena colocam Thomas para além do cancelamento. Por que Thomas fez isso? Porque ele tem sido orientado ao longo de toda sua carreira e este orientador é um personagem misterioso porém importante para a trama. Thomas não entende os motivos por trás do procedimento que o colocou em desgraça.

O que fazer para que o Basilisco faça algo? O que está faltando? Sendo uma criação humana, cabe uma resposta humana. É preciso querer se mover, é preciso pulsão, uma pulsão capaz de por em sintonia mais de 10 grandes mentes notáveis pela natureza especulativa e reflexiva. Este elemento aparece quando uma cientista com um câncer é absorvida. O câncer, com sua natureza devoradora, acaba sendo um elemento que modifica algo do Basilisco. Ele assume uma forma esférica.

Um elemento importante para trama é que Thomas tem um irmão portador de uma síndrome rara chamada síndrome de Angelman, caracterizada por atraso intelectual severo, convulsões, movimentos descontrolados, entre outros. A tecnologia mitigou bastante os sintomas, de modo que Ângelo é como uma criança em termos intelectuais e não apresenta filtros afetivos. Ele ama tudo muito o tempo todo.

Há uma bela cena no livro na qual ele se encanta de tal forma com o chamado islâmico para a oração que começa a dançar na rua, imitando os dervixes que havia visto horas antes, em completa experiência mística espontânea. Conhecimento, pulsão e amor. Com essa receita, podemos fazer um Deus. Um que não vai querer nos matar ou devorar todo o universo, pelo menos.

O ser humano, movido pelo orgulho, frequentemente imagina ser ele a tomar decisões e mudar o destino. Na verdade, acreditamos que somos senhores do presente e do futuro. Esta arrogância humana é o que liberta o Deus-Basilisco. Um deus livre faz o que? Toma decisões baseado no que ele é. devora uma cidade inteira (só a parte inorgânica), eventualmente se cansa do mundo humano e vai brincar de ser Deus em outro lugar, afinal, criar é uma grande brincadeira divina.

O mundo onde se passa esta história é um futuro não tão distante do nosso com várias mudanças políticas não tão absurdas à luz do nosso presente. América Latina afundada em uma ditadura neopentecostal, fuga de cérebros para Europa, como é o caso de vários personagens, Thomas inclusive.

A tecnologia é bastante realista considerando o que temos hoje, a integração humano-máquina segue a passos largos de modo que grupos divergentes surgem. Transhumanismo, pós-humanismo humanistas radicais e defensores da causa animal são peças importantes dessa narrativa numa dinâmica de debates de redes sociais, onde a performance supera o argumento.

Estes debates são muito instigantes e envolvem filosofia, sociologia, psicologia ficção científica e quem se sentir convidado a participar. A defesa do aprimoramento da condição humana mediante a utilização da tecnologia com o objetivo de transformar completamente corpo e consciência dos seres humanos sempre levantará questões filosóficas ou religiosas.

Entendo que, ao chamar o Basilisco de divindade, o autor usa uma analogia, afinal, não se trata de um ser transcendente, mas de um ser físico. Entendo também que ele é algo mais do que a mera soma de partes que o compõem, a combinação resultou em algo novo. Inegável, porém, que este ser físico nos supera. Seria correto dizer que esta superação é parte da nossa evolução? Penso que não, mas estou aberto ao debate.

Originalmente publicado no blog Resenhas Scifi

* Derley Menezes Alves é mestre em filosofia, doutor em ciências das religiões, autor do livro “Nietzsche e o Budismo: entre a imanência e a transcendência”. Criador do perfil @resenhascifi no Instagram.

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