“O cristianismo não falhou no Brasil. O cristianismo tá certinho no Brasil. A questão é que o cristianismo não é o Evangelho”
Por AD Luna
@interdmc
Cristianismo, protestantismo, Bíblia, Jesus, machismo, racismo, misoginia, homofobia. De que forma esses temas se articulam? Para tratar do assunto a gente apresentou, no programa InterD, a visão de dois religiosos cristãos: os pastores Berlofa e Alexandre Cabral.
João Paulo Berlofa é filósofo, escritor, pesquisador da teologia latino-americana, fundador do Coletivo Inadequados e pastor da Igreja Garagem, em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo. Ele também é autor do livro “O negro nazareno”.
A conversa com o carioca Alexandre Cabral, na verdade, é antiga, de 2016. Essa entrevista serviu, inclusive, como programa piloto do InterD – quando este ainda se chamava Interdependente.
Ouça, no player abaixo, a entrevista com os dois pastores. E, na sequência, a transcrição da conversa com João Berlofa.
Ouça “O cristianismo não é o Evangelho, afirma Pastor Berlofa #24” no Spreaker.
InterD – Jorge Benjor, quando era Jorge Ben, cantou que o Brasil é um país “abençoado por Deus”. Há um livro espírita que afirma ser nossa nação o “coração do mundo, pátria do Evangelho”. No entanto, o Brasil é um país extremamente violento e com altas taxas de corrupção e desigualdade social. O que aconteceu? O cristianismo falhou por aqui?
O Jorge Ben Jor falou corretamente, mas ele estava falando numa bênção natural. Ele disse que o Brasil é “abençoado por Deus e bonito por natureza”. Então, nesse aspecto, nós temos que concordar com ele. Isso é um fato.
Agora, sobre a situação do livro onde diz que o Brasil é “a pátria do evangelho”, aí eu preciso discordar completamente. A gente poderia concordar que o Brasil é a pátria do cristianismo. E aí, sim, chegando ao final da pergunta, a gente consegue entender o que aconteceu.
A pergunta diz: “o cristianismo falhou por aqui?”. Não, o cristianismo não falhou por aqui, porém o evangelho não veio junto com o cristianismo.
Aí a gente precisa, então, fazer essa distinção do que é evangelho e do que é cristianismo porque não são a mesma coisa.
O Evangelho é uma proposta de Jesus, é basicamente um estilo de vida, é a forma como Jesus viveu. Os ensinamentos de Jesus.
Isso compõe uma cosmovisão, uma visão de mundo, uma visão de sociedade, uma visão política, uma visão de relacionamentos. E Jesus nos oferece isso, dizendo: “Vivam dessa forma.”.
Quem vive dessa forma, proposta por Jesus, eu preciso afirmar categoricamente que não é uma proposta religiosa, não é uma proposta litúrgica, é uma proposta de sociedade, é um modelo de sociedade.
Quem vive essa proposta, vive o Evangelho. O Evangelho seria o nome que nós damos a esse estilo de vida, a essa proposta feita por Jesus.
Bom, 300 anos depois de Jesus, o mesmo império que matou Jesus – ou que ajudou a matar Jesus -, o Império Romano, de repente, com o Imperador Constantino, num golpe político, ele não só autoriza que o cristianismo fosse uma das muitas religiões do Império Romano, mas depois oficializa o cristianismo como a religião principal do Império Romano.
O mesmo império que matou Jesus, 300 anos depois instituiu o cristianismo como principal religião. E aí nasce o Cristianismo.
É aí que nasce, em 300 d.C., a partir do imperador Constantino, nasce o que nós chamamos de cristianismo, que é um subproduto do Evangelho, que é uma religião que tenta, de alguma forma, reproduzir algumas questões do Evangelho, mas acaba falhando quase que todas as vezes.
Aí a religião, sim, tem uma liturgia, tem um modelo religioso. A religião tem o seu livro sagrado, tem suas questões morais, tem os seus dogmas, mas isso não é o Evangelho. E o que chega no Brasil para nós – e aí a gente tem que dar um pulo de 1200 anos – é o cristianismo.
O Brasil foi um país colonizado e cristianizado. Quem chegou aqui, não chegou aqui com uma proposta do Evangelho; chegou aqui com uma proposta do cristianismo.
E o cristianismo é proselitista, ele quer que todo mundo se converta a ele. Ele não aceita outras religiões, ele não aceita um diálogo inter-religioso.
Ele não aceita que pessoas vivam suas vidas diferente daquilo que ele propõe, ou seja, o cristianismo e questões morais, questões éticas.
Então, não, o cristianismo não falhou no Brasil. O cristianismo tá certinho no Brasil. A questão é que o cristianismo não é o Evangelho.
Música que o Pastor Berlofa pediu para tocar no programa
InterD – Apesar de saberem que há diferenças entre evangélicos, já vi muita gente dizer que “não quer saber nem dos evangélicos mais progressistas”. O que você pensa sobre esse tipo de pensamento?
Existe esse preconceito, que, na verdade, nem é um preconceito, acaba sendo um conceito porque, por mais que realmente exista uma diferenciação entre os evangélicos, a grande maioria, a grande massa evangélica é muito parecida. Então é difícil não haver essa generalização. Nós generalizamos tudo.
Nós acabamos categorizando todos os políticos como corruptos, todos os policiais como violentos, porque o sistema político é corrupto, o sistema do nosso militarismo no Brasil é violento.
Então o sistema evangélico é de uma forma que gera esse conceito nas pessoas. E eu entendo perfeitamente essa reação.
Eu entendo quem não quer nem saber, como diz a pergunta “… saber nem dos evangélicos mais progressistas.”.
Até porque existem evangélicos que se dizem progressistas, por exemplo, no campo da política, mas no campo da liturgia, da teologia, da fé são fundamentalistas, o que é uma loucura.
Conheço muito evangélico que milita em partidos de esquerda, por exemplo, mas que estão dentro de igrejas extremamente fundamentalistas, que tratam a Bíblia daquela forma sacralizada.
E, a partir do momento que você torna o texto sacro, obviamente você vai ter que ser um fundamentalista porque você não vai poder fazer uma leitura progressiva daquele texto.
Então eu entendo essas pessoas que têm esses conceitos sobre os evangélicos. Se eu pudesse dizer alguma coisa a essas pessoas, eu diria que não generalize, por mais que o sistema seja passível dessa generalização.
Saiba que existem, sim, pessoas diferentes, existem pensadores(as), pastores(as), teólogos(as) que pensam uma fé de uma teologia no campo progressista, também.
Não são apenas esses que militam partidariamente no aspecto progressista, mas que tratam a fé, a igreja e a própria teologia também desta forma, de uma forma inclusiva, de uma forma pensando sempre em modelo de sociedade.
Então há, sim, uma outra forma de se pensar o mundo dos evangélicos.
InterD – É possível realmente alegar que a Bíblia contém passagens misóginas, racistas e homofóbicas?
Ah, sem dúvida. Não tem como dizer que a Bíblia contém misoginia, racismo, homofobia e tantos outros preconceitos. Porque, quando nós estamos falando da Bíblia, nós estamos falando de muita coisa.
Nós estamos falando de textos que têm 2900 anos de idade, os mais antigos, e os mais novos, 2000 anos de idade; escrito por homens do Oriente Médio dessa época, então esses homens eram misóginos, eram racistas.
E é óbvio que, em suas escritas, muito mais até do que um racismo, tem também ali uma xenofobia extrema, partindo de um pressuposto que Israel era o único povo que Deus amava, que Deus queria se relacionar.
Enfim, sim, nós temos dezenas e dezenas de autores e eles eram limitados em sua época. E as suas limitações acabavam sendo transformadas nesses preconceitos e esses preconceitos eram passados em seus textos, óbvio.
Se o Berlofa, 2000 anos depois, no Ocidente, na América Latina, ainda é misógino, ainda é machista e precisa se desconstruir todos os dias; ele ainda é racista, ele ainda é homofóbico e todos os dias passa por uma desconstrução para que isso não aconteça, imagina o Paulo, Apóstolo Paulo de 2000 anos atrás.
Então, sim, nós temos essa obrigação de fazer essa leitura, de assumir esses erros que estão no texto, de saber interpretar aquele texto a partir daquele contexto; “por que o apóstolo Paulo disse que as mulheres deveriam ficar caladas na igreja e só falar dentro de casa com o marido?”.
Porque era uma lei daquela época, era uma lei misógina, era uma lei machista sem dúvida, mas era uma lei. E o apóstolo Paulo estava limitado dentro dessa percepção.
E eu não tô querendo escrever uma defesa do apóstolo Paulo, eu estou dizendo que, sim, o apóstolo Paulo era um machista.
O que eu estou dizendo é que ele não teria condições de não ser, a partir do contexto em que ele estava inserido.
E é isso que transforma Jesus no homem mais espetacular que já existiu, na minha opinião. Porque Jesus também não teria condições de não ser um machista, de não ser um xenofóbico, de não ser um homofóbico porque Jesus estava justamente nesse contexto.
Mas ele consegue subverter essa lógica, subverter esse sistema e passar por cima disso, e não só não ser um machista, mas pregar o empoderamento feminino; não só não ser um xenofóbico e um racista, mas pregar uma libertação desse tipo de pensamento.
É isso que transforma Jesus em um cara espetacular.
Agora, eu preciso fazer um adendo aqui e dizer que homofóbica a Bíblia não é. Não existe nenhum autor bíblico que trate a homofobia.
Eu sei que é estranho eu estar dizendo isso porque, quando você abre a sua Bíblia, existem textos, desde Gênesis até Apocalipse, que, aparentemente, estão sendo bem homofóbicos quando diz que os homossexuais não herdarão o reino de Deus, que é abominável um homem se deitar com outro homem.
E é aí que vem a parte talvez mais importante dessa minha fala aqui: nós somos reféns de uma tradução e de uma interpretação que chegou na nossa mão.
Por exemplo, a palavra “homossexual”, que aparece três ou quatro vezes no Novo Testamento, dependendo da tradução que a gente estiver usando, nem existia naquela época.
Essa palavra foi mal traduzida de outras palavras, então, assim, é óbvio que eu não vou fazer essa explanação aqui nessa resposta curta, mas eu posso garantir, sendo um pesquisador da Bíblia, produzindo uma teologia, que todos os textos que aparentemente geram uma homofobia, na verdade, estão sendo ou mal traduzidos ou mal interpretados.
Música que o Pastor Berlofa pediu para tocar no programa
InterD – Por falar em racismo, por que um Jesus preto incomoda muita gente?
É, o Jesus preto é impressionante como causa um desconforto, causa uma questão que não há como chegarmos numa percepção diferente dele.
Nós somos tão racistas, nós vivemos num ambiente tão racista, nós vivemos numa sociedade tão estruturalmente racista que o fato da gente pensar Jesus preto nos causa um incômodo. E isso é um fato.
Qualquer pessoa que estiver me ouvindo aqui pode fazer essa reflexão. E, se você for sincero consigo mesmo, você vai chegar a uma conclusão muito simples: sim, eu sou racista e eu preciso me desconstruir.
Quer ver? Eu provo isso.
Todos nós fomos ensinados a partir de um Jesus branco. Assistimos filmes, desde a nossa infância, filmes no SBT, filmes na Globo, “A Paixão de Cristo”, e sempre nos foi apresentado um Jesus branco.
Não apenas branco, mas um Jesus loiro, um Jesus de olho azul, um Jesus de olho claro, um Jesus daquele que mais parecia um europeu, que mais parecia um nórdico, um deus nórdico do que o próprio Jesus. Isso nunca nos gerou nenhum questionamento.
A gente via pinturas, obras, estátuas, gravuras, filmes, tudo apresentando esse Jesus branquinho, de nariz fino, cabelo liso e olho claro. Isso nunca nos gerou nem sequer um questionamento do tipo “Será?”.
Agora, no exato momento em que alguém fala sobre um Jesus preto, ou alguém apresenta a figura de um Jesus preto – e talvez o Suassuna tenha feito isso, um dos primeiros a fazer isso aqui no Brasil, apresentando na sua obra “Auto da Compadecida” um Jesus preto -, isso gera um incômodo, uma inquietação que é oriunda do nosso racismo.
Então, a primeira coisa que o Jesus preto – independente se ele foi ou não foi preto -, mas que a ideia de um Jesus preto nos traz é essa reflexão de que somos racistas.
Agora, Jesus era de que cor? Bom, nós não podemos afirmar, nós não temos uma foto, não temos uma testemunha ocular.
Nós temos evidências… evidências não, algumas ideias que podem nos levar a conjecturar, a chegar a uma ideia sobre a cor de Jesus.
E todas essas pitadas, sejam elas históricas, teológicas ou arqueológicas, nos levam a um Jesus preto.
Nós não temos como bater o martelo e afirmar a cor de Jesus, mas tirando as provas que nós temos, as poucas que temos, todas elas apontam para um Jesus preto.
Desde o fato de que era muito difícil você encontrar alguém realmente branco no Oriente Médio de 2000 anos atrás; era muito difícil acontecer.
Jesus, numa época da sua vida, ainda criança, ele precisou ser escondido porque Herodes estava matando os infantes e o seu pai, o José, resolve esconder Jesus na África, no Egito, então eu acho estranho você esconder uma criança branca no meio de outras crianças pretas, ela não ficaria escondida.
E, tudo bem que quando a gente pensa Egito hoje, a gente pensa num Egito árabe, mas nós temos que levar em consideração um Egito numa construção geopolítica de 2000 anos atrás no mínimo. Então é um Egito africano.
O apóstolo João, quando vai descrever a aparência de Jesus, em Apocalipse, de todas as pedras preciosas que ele tinha naquela época, que, inclusive, a própria Bíblia citava, ele usa apenas duas pedras que são consideradas pedras pretas, pedra de coloração preta e marrom.
Então, nós sabemos exatamente a cor de Jesus? Não, nós não sabemos. Mas as poucas evidências que nós temos nos levam a pensar em um Jesus preto.
A questão é: por que, com todas as evidências apontando para um Jesus preto, mesmo assim a ideia de um Jesus preto incomoda tanta gente?
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