Artes

“O Cair da Noite”: leia resenha de conto de Isaac Asimov

A visão de ciência apresentada aqui é muito popperiana para meu gosto, mas isso é outro debate que não cabe nessa resenha

Por Derley Menezes Alves*

Hoje falarei do conto O Cair da Noite, publicado pela ALEPH em tradução de Aline Storto Pereira, mas não só. Este conto foi publicado em 1981 pela HEMUS no livro de contos O Cair da Noite em tradução de Maria Judith Martins com supervisão de Maxim Behar e no começo dos anos 90 na Isaac Asimov Magazine 15, em tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi que por sua vez é o tradutor do romance que é o conto desenvolvido escrito por Asimov e Robert Silverberg, publicado pela RECORD (Silverberg escreveu e Asimov autorizou a publicação). Percebe-se que este conto é muito famoso e muito importante na carreira de Asimov e nele temos várias ideias desenvolvidas em outras obras do autor, notadamente Fundação, a saber, uma concepção acerca do que é ciência, como esta se relaciona com a sociedade e as relações entre ciência e religião.

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A premissa do conto é a seguinte: temos um planeta chamado Lagash, banhado por seis sóis, de modo que nele nunca anoitece. Logo, não há o conhecimento das estrelas, pois elas estão sempre ofuscadas pelos sóis e tudo que os habitantes deste lugar conhecem do universo se resume ao planeta e seus sóis. Asimov imagina que este mundo está passando por um tipo de revolução científica com a recente descoberta da lei da gravitação universal entre outras descobertas e hipóteses científicas novas. Ao mesmo tempo há uma religião predominante neste lugar que defende uma visão de mundo diferente daquela apresentada pela ciência. Estes religiosos seguem uma obra chamada Livro das Revelações e são os vilões principais da trama.

É importante pontuar que, enquanto espelhamento da nossa revolução científica, este elemento da trama simplifica demais a questão. Em primeiro lugar, as tensões nunca foram entre religião e ciência tomando religião como um termo para designar todas as religiões. O problema era entre cristianismo e ciência. Outro ponto importante é que o problema não era apenas uma questão de acreditar em algo diferente fundado na fé cristã. A cosmovisão cristã medieval baseava-se em teorias científicas oriundas da Grécia antiga que venceram o debate em sua época.

A igreja católica acabou adotando estas teorias e dialogando com algumas passagens bíblicas converteu-as em doutrina religiosa. Além disso, mencionarei brevemente outro ponto: o caso Galileu. Quando analisamos em detalhe percebemos que não era apenas uma disputa sobre o certo e o errado, era também uma disputa por poder e protagonismo. Além disso, é importante dizer que as conclusões de Galileu iam além da evidência que ele possuía. Recomendo acerca desse ponto o artigo Galileo Galilei escrito por Richard J. Blackwell no livro Science and Religion: a historical introduction.

Um planeta inteiro com uma sociedade tão complexa quanto a nossa com apenas uma religião que é uma caricatura do catolicismo medieval me parece simplificar demais as coisas. Mas, sigamos. Há um ponto de convergência entre ciência e religião nesta trama: uma profecia que fala de uma escuridão cíclica que ocorreria a cada 2050 anos, revelando coisas chamadas estrelas as quais trazem consigo o fogo dos deuses para punir os homens. Aparentemente, fala-se aqui de um fenômeno natural cuja explicação está envolta em superstições religiosas. A disputa, então, gira em torno da realidade do fenômeno e de sua explicação: natural ou sobrenatural. Do ponto de vista da astronomia, se descobre a explicação científica para isso: um eclipse que faz com que o planeta experimente a noite. Como resultado disso, temos o colapso civilizacional cíclico, e o encobrimento do evento pelo véu das lendas que alimentam a religião planetária. Este aspecto é o campo de estudo da psicologia, representada por um personagem.

Aqui destaco outro ponto dito acima, acerca do conceito de ciência. No conto só se fala da psicologia como ciência humana, todas as ciências sociais são completamente ignoradas pelo autor. Ora, como explicar um fenômeno tão multifacetado quanto este recorrendo apenas à física e à psicologia? Isto reflete um modo de pensar próprio de Asimov que vemos plenamente desenvolvido na série Fundação: lá fala-se de um matemático que desenvolveu uma ciência capaz de prever eventos numa escala social interplanetária com uma precisão matemática chamada de psicohistória (nem aqui a sociologia tem espaço na imaginação do bom doutor!).

É com a psicohistória que a humanidade conseguirá superar uma série de reveses ao longo na narrativa. Asimov, que era químico de formação, reproduz aquele preconceito típico de algumas pessoas das ciências naturais com relação às humanidades. Voltando ao conto, só temos psicologia, no livro que desenvolve o conto aparece também a antropologia, pois há uma exploração de sítios arqueológicos.

Diante deste embate, percebemos que a explicação científica ao mesmo tempo que confirma o essencial da profecia, também a naturaliza, esvaziando-a de todo seu caráter místico e religioso, tudo não passa de mais um fenômeno natural passível de explicações científicas (e portanto, também naturais). Os religiosos percebem isso tarde demais.

Os cientistas constroem um refúgio para tentar salvar pessoas e o conhecimento para que o próximo ciclo seja livre das lendas e da superstição religiosa. No conto tudo acaba com a revelação das estrelas, não sabemos o que acontece depois que o eclipse acaba. Já se formos para o livro, temos este aspecto mais desenvolvido. Lá, a narrativa do conto está no meio da trama, antecedida por algumas novas informações que introduzem a arqueologia como mais uma ciência a polemizar com a religião. Me pareceu que a inspiração para este novo elemento foi a descoberta da literatura cuneiforme ao longo do século XIX e XX, na medida em que tais descobertas se provaram um duro golpe para certa leitura da bíblia, especialmente no que diz respeito ao dilúvio. Além disso, a novelização do conto muda o nome do planeta de Lagash para Kalgash, nomeia os sóis e insere personagens novos personagens importantes para a história. Já é tempo de ter um relançamento ou uma tradução nova desse livro!

Eu conheci O Cair da Noite primeiro quando um amigo contou a premissa do conto para mim e achei a ideia fascinante, fiquei muito pilhado para ler. Ainda acho a ideia muito boa mas, hoje em dia, esta falta das ciências humanas nas narrativas de Asimov tem me incomodado a ponto de prejudicar a fruição das obras. O debate sobre ciência e religião, me parece algo claramente simplista, ele apenas reproduz a narrativa heróica da ciência vencendo religião e superstição, com uma redução da religião a um conjunto de afirmações cosmológicas equivocadas e a um moralismo reacionário.

É inegável que todas estas coisas fazem parte de vários movimentos religiosos, especialmente se pensarmos nos Estados Unidos. Meu ponto é que existem formas mais sofisticadas de ser religioso e de tratar o fenômeno religioso para além do literalismo na interpretação de livros sagrados, postura acertadamente criticada por Asimov. A visão de ciência apresentada aqui é muito popperiana para meu gosto, mas isso é outro debate que não cabe nessa resenha.

Originalmente publicado no blog Resenhas Scifi

* Derley Menezes Alves é mestre em filosofia, doutor em ciências das religiões, autor do livro “Nietzsche e o Budismo: entre a imanência e a transcendência”. Criador do perfil @resenhascifi no Instagram.

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