Misologia (o ódio à razão) e o conservadorismo no metal

 Misologia (o ódio à razão) e o conservadorismo no metal

Glauber Ataide. Acervo pessoal

 

O que é a misologia ou o ódio à razão, como explicar o conservadorismo no metal? Glauber Ataíde, filósofo e idealizador do projeto de death metal Denial of Death fala a respeito no InterD

 

Por AD Luna

Na edição desta quarta (5), o programa InterD – música e conhecimento, veiculado na 99,9 Universitária FM do Recife, recebeu Glauber Ataíde, filósofo, dono do canal Filosofia Vermelha e idealizador do projeto de death metal Denial of Death. Ele mora em Nuremberg, na Alemanha, e de lá falou a respeito do ódio à razão e à ciência, a misologia, e sobre o conservadorismo no metal.

Glauber Ataide é mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais e bacharel em Filosofia também pela UFMG. Suas principais áreas de interesse são o idealismo alemão, o marxismo, a psicanálise e a filosofia da religião.

Além de artigos em revistas acadêmicas, possui capítulos de livros publicados e busca levar a filosofia para o público geral através de meu canal no YouTube: Filosofia Vermelha.

Ouça a entrevista e trechos da conversa.

Ouça “O que é a misologia ou o ódio à razão, com Glauber Ataíde #26” no Spreaker.

O que é a misologia e qual foi o primeiro filósofo a abordá-la?

A “misologia” é um termo criado pelo Platão para indicar um ódio à razão, um ódio aos raciocínios. Vejam que, na raiz da palavra, a gente tem “logia”, que vem de “logos”. Então é um ódio ao “logos”. Isso depende muito da tradução, de como a gente vai verter a palavra “logos”. Em alemão, por exemplo, é um “ódio ao discurso”, mas uma tradução mais adequada eu acho que é “ódio à razão”.

O Platão vai falar através da boca de Sócrates, no Diálogo Fédon, que a misologia nasce assim como a misantropia, que é o ódio de seres humanos, ódio aos homens. E a misologia nasce pelo fato de se ter acreditado, sem possuir a arte da dialética, na verdade de raciocínios que depois se mostraram falsos.

Como o indivíduo, por exemplo, que acredita em uma ideia, alguém fala alguma coisa e ele acredita, e depois acaba percebendo que aquele raciocínio era falso, e depois vai se desiludir de novo com outro raciocínio, e assim sucessivamente até chegar num ponto em que ele vai odiar a razão em si, ele vai odiar o discurso, vai odiar a discussão, vai odiar a Ciência. É claro que esse ódio à Ciência não é algo consciente.

Ninguém vira e diz “eu odeio a razão, eu odeio o cérebro”. O indivíduo não se manifesta assim, mas é uma postura que ele tem de vida. É um certo desprezo, a gente pode assim colocar.

Vou ler um trecho aqui do Diálogo Fédon pra gente ver como Sócrates se expressa sobre isso. Ele tá lá na sua cela… o contexto é que o Sócrates já tinha sido condenado e ele estava na cela, conversando com alguns amigos, esperando só tomar a cicuta, o veneno para morrer.

E aí, nesse diálogo, ele coloca essa questão da misologia. Então o Sócrates fala assim com o pessoal:

 – Tomemos cuidado para que não nos venha acontecer um desastre.

E aí eles perguntam:

 – Qual?

Aí o Sócrates diz:

 – O de nos transformarmos em inimigos da Ciência, do logos. Em misólogos. Assim como alguns que se convertem em inimigos dos homens, em misantropos. Pois não há maior mal do que tornar-se inimigo da Ciência.

 Aí o Sócrates vai explicar, vai falar o seguinte: da mesma forma que a misantropia nasce de se ter acreditado nas pessoas e depois as pessoas mostrarem algo que não era ou que não aparecia, que não aparentava num primeiro momento, a misologia também vai surgir assim.

Então, às vezes o que acontece é que um indivíduo acaba confiando demais nos outros, acaba confiando demais em outras pessoas e, depois, acaba se desapontando com uma pessoa, e depois com outra, e depois com outra… e aí ele acha que ninguém mais presta. Isso acontece muito em vários relacionamentos, né?!

Às vezes tem uma mulher que se relaciona com um homem, não dá certo, acha que o homem é um pilantra, um cafajeste. Aí vai para um segundo, também não dá certo. Vai pra um terceiro, também não dá certo. E depois vai generalizar e falar que nenhum homem presta. A misantropia é mais ou menos esse movimento, mas em relação ao gênero humano como um todo e não somente a homem ou mulher, então a misantropia é isso.

E o Sócrates fala que a misologia também acontece dessa forma. Você acredita numa determinada “verdade”, no que você acha que faz sentido. Depois aquilo se mostra falso. Depois você acredita em outro, se mostra falso. Depois em mais um.

E, no final das contas, você acaba não acreditando em mais nada e acha que nada mais faz sentido, que em nada vale a pena acreditar ou se confiar, e você abandona por completo a busca pela Ciência. E esse é o problema da misologia. Ela é simplesmente um abandono da busca pela verdade, pela episteme, pela Ciência.

Muitos e muitos séculos depois, já ali no século XVIII, com Immanuel Kant, o tema da misologia foi novamente mencionado, foi novamente tratado. Só que o Kant vai atribuir outras causas à misologia.

Kant afirma que a misologia surge quando o indivíduo acha que a Razão é capaz de proporcionar felicidade. E quando ele é desapontado com isso, quando ele percebe que uma vida racional, uma vida conduzida de acordo com a razão não produz uma vida boa, feliz, o indivíduo se desaponta com a razão e se volta contra ela.

Kant afirma que o indivíduo vai perceber em determinado momento que a Razão parece ter adicionado mais fardo, mais peso sobre os ombros do indivíduo. E é uma reflexão semelhante ao que a gente encontra no livro de Eclesiastes, na Bíblia.

É o livro da Bíblia que eu acho mais filosófico, tem umas reflexões lá são até bem melancólicas. Não se sabe se o autor talvez estivesse deprimido, mas alguns temas são até comuns com o existencialismo, no século 20.

Então, o indivíduo, em determinado momento nesse livro de Eclesiastes, fala que “quem aumenta em conhecimento, aumenta em tristeza”. Aquela velha ideia de que uma pessoa muito consciente, com muita consciência da realidade, uma pessoa que reflete muito acaba, de certa forma, se tornando mais triste.

Então é essa ideia que o Kant está falando. Quando o indivíduo percebe que a razão, o conhecimento racional acaba trazendo mais tristeza ao invés de felicidade. E, nesse processo, ele acaba odiando a razão porque a razão não foi capaz de dar aquilo que ele esperava dela. 

Outro filósofo que também tratou da misologia foi o Hegel. Então, ali, logo após o Kant, no idealismo alemão, a gente tem outros filósofos ali no meio, mas o grande filósofo, o mais conhecido, que foi o Hegel, também falou da misologia só que ele a coloca ainda em um outro contexto. 

O Hegel afirma que a misologia é, de certa forma, um recuo da razão diante da própria natureza do pensar. Porque o Hegel vai afirmar o seguinte: a natureza do pensar, do ato de pensar é essencialmente dialética, ou seja, a gente pensa sempre em contradições. Só que tem indivíduo que não consegue lidar com isso. Os indivíduos buscam certezas na vida.

É por isso que as religiões fazem tanto sucesso. Porque o indivíduo quer ter uma certeza na vida, quer ter um alvo, um objetivo; ele não quer saber de contradições, ele quer saber isso é isso, preto é preto, branco é branco.

Então, para a maioria dos indivíduos, a religião é muito reconfortante nesse sentido. E a natureza do pensar não é assim, a natureza do pensar é extremamente contraditória.

E o Hegel fala que o indivíduo, diante das contradições que o pensamento vai lhe colocar, por causa de sua própria natureza contraditória, a consciência do indivíduo vai buscar um retorno às figuras anteriores, ou seja, ao estágio anterior da consciência no qual essas contradições ainda não existiam.

E é interessante que o Hegel usa no alemão o adjetivo “verzweifelt “, que significa desesperado, para descrever o estado da consciência. A consciência, quando vê as contradições, fica desesperada. O que é interessante nesse adjetivo “verzweifelt “é que a sua raiz é “zwei”, que é o número dois.

Então o que é a ideia de uma certa angústia, de um desespero? É quando você tem pelo menos duas coisas pra escolher. É como a gente imaginar estar numa estrada onde tem uma bifurcação e você não sabe se vai seguir pelo caminho da esquerda ou da direita. Então é essa a ideia.

A razão, quando se encontra diante dessa bifurcação, quando se encontra diante das contradições e ela não sabe pra onde vai, acaba se desesperando e recua, vai pra trás. E busca um momento no qual as contradições não estavam colocadas.

Aí o Hegel fala que a razão não precisa, por isso, desembocar… o indivíduo não precisa desembocar na misologia só porque a natureza do pensar é essa. O Hegel vai mencionar a misologia e vai falar que ela pode surgir justamente da natureza dialética do pensar, da natureza contraditória do pensamento.

Fale sobre seu projeto de metal, do seu interesse pelo estilo e como ele (o metal) pode servir como instrumento de reflexão crítica sobre a sociedade e outros temas?

Durante a pandemia, não estava sendo possível ensaiar, de forma regular, com bandas. Havia uma proibição aqui na Alemanha de que a gente não podia encontrar com pessoas de mais de duas famílias diferentes, então uma banda com 3 ou 4 elementos já tem ali mais do que duas famílias representadas, então não era possível fazer ensaios com bandas regulares e decidi montar uma “one-man band”, uma banda de um homem só, na qual eu toco todos os instrumentos.

 Eu já era vocalista nas minhas bandas no Brasil, então resolvi reiniciar esse projeto que é o “Denial of Death”. E acabou que foi legal, eu tive que começar tudo do zero porque, quando eu mudei pra Alemanha, não trouxe nada de instrumento musical. Tive que comprar tudo do zero. Comprar as guitarras, baixos, interfaces, software para fazer gravação.

Absolutamente tudo. Foi uma experiência muito bacana e eu pude, de certa forma, usar bem o meu tempo livre após o trabalho. Esse é o tipo de coisa que eu gosto de fazer, além do canal Filosofia Vermelha, do podcast, ainda sobra um tempo livre pra fazer alguma coisa e eu faço música, é o que eu gosto de fazer.

E foi assim que surgiu esse projeto e eu acabei conseguindo gravar várias músicas muito antigas, às vezes algumas músicas que eu escrevi há 15 anos atrás e que nunca tinha tocado com nenhuma banda, que nunca haviam sido gravadas. E eu consegui colocar isso no disco e fiquei muito satisfeito.

Mas, assim, eu acho muito mais legal tocar em banda do que fazer um projeto solo, assim. Eu acho muito mais legal. Então sempre tive a ideia de transformar o “Denial of Death” em uma banda mesmo, uma banda com outros integrantes, e é o que a gente tá fazendo.

Eu já consegui um baterista, ele é grego. Tem uma guitarrista também, ela é alemã. A gente já tem um núcleo, uma cozinha ali. E a gente tá juntando. Falta, pelo menos, mais dois instrumentistas, eu acho, até a gente começar a apresentar ao vivo. 

Então a gente já tem um disco publicado. Nosso disco pode ser encontrado em todas as plataformas de streaming. E também mais dois singles. E, em breve, a gente tá lançando material aí com a banda toda, completa.

Além disso, eu também toco em uma outra banda de um estilo um pouco diferente do que eu faço com “Denial of Death”, que é um estilo chamado “doom metal”.

A banda se chama “Sunday of the Dead” e o pessoal estava precisando de um novo vocalista e baixista. E a gente acabou se conhecendo e estamos aí, tocando juntos.

Então, no momento, eu tô com duas bandas aqui na Alemanha. O meu projeto, “Denial of Death”, e essa outra banda que eu vim a integrar como vocalista. 

E é claro que, nas minhas letras, eu vou abordar temas que me são caros. Então eu falo muito de filosofia, coloco muitas reflexões filosóficas e também críticas sociais.

A questão é que eu tenho muito cuidado pra não deixar as letras muito panfletárias porque a letra tem que combinar com o estilo.

E às vezes, se a gente coloca letras com interpretação muito fácil, muito simples, a gente corre o risco de escrever letras ruins.

Então, por exemplo, eu tenho uma letra de uma música – é a última música do EP do Denial of Death -, a música se chama “The Day of Revenge”. Eu tô falando ali da Revolução Francesa, tô falando dos revolucionários, mas em nenhum momento eu cito alguma coisa dessas. 

Em nenhum momento eu falo de revolução. Eu não coloco nenhuma marca temporal. Mas foi o que eu tinha em mente quando eu escrevi a letra. Escrevi mais ou menos no período que a Comuna de Paris estava celebrando seus 150 anos, isso foi no ano passado.

E eu sempre coloco essas questões sociais nas letras, mas não coloco isso de forma muito explícita porque eu acho que pode perder um pouco o teor artístico da coisa porque depende muito de estilo.

Eu acho que em alguns estilos fica legal fazer isso. Acho que isso cabe em letras talvez de hardcore, de punk, talvez até mesmo no thrash metal. Mas, no tipo de som que eu faço, acho que não combina colocar muito explícito.

A questão é: a crítica social está lá, mas ela não é assim tão explícita quanto seria de se esperar em outros estilos.

O que você pensa sobre o conservadorismo dentro do universo do metal?

Eu acho que o conservadorismo no metal é algo a se esperar, mas é algo que deve ser criticado e mostrado como incoerente. É de se esperar porque a gente vive numa sociedade dividida em classes e a gente deve esperar esse tipo de contradição em todos os lugares. Então não há nada demais, é a mesma coisa que falar sobre o “pobre de direita”.

Porque a gente pode inicialmente pensar “se o indivíduo é pobre, ele tem que ter posições políticas que sejam de acordo com seus interesses materiais” e às vezes o indivíduo faz o contrário, às vezes ele apoia posições políticas que são contra os seus próprios interesses materiais.

A gente tem até um vídeo no canal explicando sobre isso, porque isso acontece, porque tem um pobre que vai votar num candidato que é rico, que vai apoiar as ideias de um candidato que é rico e lhe oprime.

Então no metal também seria de se esperar encontrar essas contradições, só que isso deve ser denunciado e mostrado como incoerente e inconsequente. Porque o metal é um movimento de protesto, é originalmente um movimento de contracultura e essa ideia de tentar esvaziar o metal de seu teor político, contracultural, isso é típico da semiformação, isso é típico da indústria cultural.

E a gente deve denunciar isso. A gente deve mostrar que o metal tem raízes sociais, o metal surgiu num determinado tempo, num determinado local e como forma de expressão. E o que ele expressa? Ele expressa rebeldia e inconformidade. Então por isso não faz muito sentido o indivíduo falar “eu sou um rebelde conservador”, “eu sou um inconformado conformado”. Como assim? 

A gente vê que no metal é muito comum usar a figura de Satanás, falar muito do Satanismo. E por quê? Porque todo mundo do metal é religioso, no sentido satânico do termo? Não. A maioria de quem fala de Satanás fala isso não porque é religioso, mas porque Satanás é um símbolo de oposição.

Ele é chamado assim inclusive na Bíblia, ele é o opositor. E por que o metal ataca tanto a religião? Porque a religião é aquela esfera que tanta consolidar os valores de uma determinada sociedade, de uma determinada formação social. 

Então, quando você ataca uma religião em uma determinada sociedade, você está atacando os valores daquela sociedade. E Satanás é isso, é a oposição. Então, lido nesse sentido mais antropológico, nesse sentido mais sociológico, por assim dizer, a gente percebe que o metal é uma espécie de contestação social. 

Ele contesta os valores conservadores. É por isso que se fala tanto de Satanás e critica a igreja. Aí, quando vem um indivíduo que fala que é conservador, a gente percebe que tem alguma coisa errada. Mas como assim você é politicamente conservador e você escuta bandas que tão o tempo todo falando de Satanás e criticando esses valores? 

Porque o próprio som é isso. O próprio som é agressivo. A própria sonoridade do metal é pra agredir, é pra chocar. Não é pra se conformar. Então é por isso que não faz muito sentido o indivíduo ser conservador. A gente até entende o fato de existirem conservadores no metal, mas a gente tem que denunciar como inconsequente. 

Bom, muitíssimo obrigado pela participação Glauber Ataide. Na segunda parte do programa teremos mais metal. A gente conversou com a vocalista Daniela Serafim, da banda nordestina Invisible Control. 

Eu agradeço pela oportunidade. Peço ao pessoal para se inscrever no nosso canal Filosofia Vermelha no YouTube. E também se inscrever no nosso podcast. Você pode encontrar lá no Spotify ou qualquer outro agregador. Nosso podcast também tem o mesmo nome, Filosofia Vermelha. E também peça que o pessoal se inscreva em nosso curso de Introdução à Filosofia. 

A gente tem um curso com mais de 14 horas de duração. É um curso que tem por objetivo colocar você em contato direto com alguns dos principais textos de toda a história da Filosofia. É uma iniciativa bem interessante que a gente vem trazendo nesse projeto do Filosofia Vermelha, de tentar trazer para fora da universidade o conhecimento acadêmico. 

E a gente faz isso de uma forma bem acessível, então indico também o nosso curso. Para mais informações sobre o nosso curso, você pode encontrar em praticamente qualquer vídeo do nosso canal ou na descrição de qualquer episódio do podcast, sempre tem um link. Ou então no meu site, que é www.filosofiaepsicanalise.org. 

E também, um último recado: vou pedir pro pessoal pra adquirir o nosso livro. No momento que a gente grava aqui essa entrevista, estamos aí no momento de financiamento coletivo do nosso primeiro livro. E ele vai sair em breve, em algumas semanas. E é uma coletânea com mais de 80 textos de filosofia e de psicanálise.

Esse livro é parte desse projeto mais abrangente que é o Filosofia Vermelha, então a mesma linguagem acessível que você encontra nos nossos outros canais, você vai encontrar também neste livro. E sem perder de vista também o compromisso com a qualidade e com o rigor, mas sendo sempre claro e compreensível.

 Um grande abraço! Muito obrigado pela oportunidade!

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