A obra se divide em três parte. Na primeira vamos conhecendo o cotidiano de Júlia nesse mundo distópico, onde a Inglaterra foi dominada por um partido único, num sistema de governo totalitário e extremamente repressivo
Por Derley Menezes Alves*
Contém leves spoilers do livro
Júlia é uma releitura feminista da obra 1984, de George Orwell, publicado no Brasil pela Editora Jangada em tradução de Mayra Meyer. Trata-se da mesma história contada da perspectiva de Júlia, parceira romântica de Winston no livro original. Além de reescrever a história, Sandra Newman expande o universo Orwelliano, mostrando em detalhes como é a vida de uma mulher naquele mundo ao mesmo tempo que dá mais densidade e profundidade à Júlia.
Antes de entrar na obra propriamente dita, preciso destacar uma infeliz nota de rodapé logo na primeira página da tradução, nota ausente no original. Diz a nota explicando o que é novilíngua: Foi uma descrição profética acerca do que se tornaria a fala politicamente correta no mundo atual. Ora, o que é o politicamente correto? No sentido mais vulgar, que aprece o assumido pela autoria da nota, se trata dessa busca de expressões menos agressivas para se referir a pessoas e grupos minoritários e vítimas frequentes de preconceitos.
Sei que há exageros em alguns casos mas, se pensarmos no que é a novilíngua, me parece que a comparação não se sustenta, senão vejamos. Novilíngua é um sistema de simplificação do idioma visando uma redução da diversidade linguística para que as pessoas passem a pensar menos e de modo menos complexo. Não me parece que abandonar formas grosseiras e racistas de se referir a pessoas negras se encaixe nisso, não há simplificação da linguagem nem limitação do pensamento nesse caso. Feita essa pequena observação, vamos ao livro.
PARA COMPRAR O LIVRO, CLIQUE AQUI!
A obra se divide em três parte. Na primeira vamos conhecendo o cotidiano de Júlia nesse mundo distópico, onde a Inglaterra foi dominada por um partido único, num sistema de governo totalitário e extremamente repressivo. A impressão que me passou é que a autora explora mais os modos de resistência silenciosa das pessoas do que a narrativa original. São muitos personagens que parecem estar obedecendo por uma mistura de inércia, fraqueza e pobreza, muito mais do que por acreditar em alguma ideologia.
Aos poucos vamos descobrindo o dia-a-dia de Júlia como trabalhadora, participante da liga anti-sexo e moradora de um alojamento feminino. Aprendemos sobre como tudo é um faz de conta na liga anti-sexo. Todo mundo transa no sigilo, sejam relações heterossexuais ou homossexuais. Enquanto não há gravidez ou um deslize mais evidente, tudo parece funcionar bem, basta gritar slogans nas reuniões e se mostrar entusiasmada com a castidade em nome do partido. Winston Smith, inicialmente, é só mais na lista de conquistas de Júlia. Aqui tudo se passa com em 1984, com uma diferença importante: conhecemos a avaliação do desempenho e da evolução dele como amante diretamente da própria Júlia.
Aprendemos também que Júlia nasceu e passou a primeira parte de sua vida numa Zona Semi-Autonoma (SAZ em inglês) no começo da dominação do partido. Ela testemunhou a coisa indo pelo ralo, vendo a própria mãe ser vítima do sistema. Conseguiu ir para Londres perdendo um pedacinho de si mesma e dali pra frente foi um processo longo e consistente de negar a si mesma em nome da sobrevivência.
Sabemos a importância de O’Brien, membro do Partido Interno e articulador da queda de Winston. Em 1984 ele se passa por goldsteiniano, levando Smith a se acreditar participante de uma nova revolução que iria dar fim aos abusos do partido. O que não sabíamos é que ele faz algo parecido com Júlia, de modo que leva ela no bico e a torna uma cúmplice nesse esquema cujas vítimas são Smith e mais dois ou três indivíduos.
A conversa com O’Brien é fascinante e mostra como ele consegue construir uma teia de mentiras para cada peão em seu jogo de espionagem. Júlia é levada a acreditar que seus crimes sexuais não são um grande problema, são na verdade uma característica do novo tipo de ser humano que será criado ao longo do domínio do partido. Promete ainda acesso ao Partido Interno logo após esse projeto específico acabar.
O argumento de O’Brien passa por acusar Smith de ser um terrorista e dizer que terroristas são obcecados com a verdade, fazem tudo em nome da verdade, inclusive as coisas mais criminosas e inconfessáveis. É preciso combater estes tipos desde as fases mais iniciais e Winston é um desses tipos. A função de Júlia é seduzir alguns desses homens, coletar provas e deixar que a polícia do pensamento faça o resto. Ao mesmo tempo, O’Brien dá a ela uma missão: ela precisa aprender a odiar.
No fim das contas, todos são presos, Júlia também. São levados para o Ministério do Amor, onde são torturados, conforme vemos em 1984 com uam diferença: depois que Smith é destruído pelo quarto 101, Júlia sofre a punição que seria dele. Mas ela consegue superar. Depois disso, vemos ela como impessoa, vivendo o que resta da vida, da mesma forma que Smith no livro original.
Aqui Sandra Newman insere elementos novos. Descobrimos que as motivações de todo esse esquema estão longe de ser mero controle político e descobrimos que há um grupo com força suficiente para derrotar o partido. Isso de fato acontece e Júlia é acolhida no meio dessas pessoas. O livro termina com ela sendo interrogada antes de receber novos documentos e em algum ponto o interrogatório fica igual aos exemplos dados por O’Brien sobre terroristas buscadores da verdade. E Júlia aceita a situação para sobreviver.
O ciclo se fecha e recomeça. Júlia está respondendo as perguntas de O’Brien na boca de outro homem e nem é ela que responde, o cara responde por ela, botando panos quentes em toda situação. Nesse sentido, podemos entender que a mensagem distópica se atualiza. A autora mostra como as mulheres sempre serão vítimas e sobreviventes enquanto o patriarcado ditar as regras do jogo. Porém, a partir do momento em que ela insere um grupo político derrotando o partido com a promessa de liberdade e respeito às pessoas, me parece que há um flerte com a antipolítica.
Nesse ponto confesso que fiquei com um gosto amargo na boca. Essa ideia de um novo grupo político que defende coisas coo jogar ácido em crianças em nome da causa parece sugerir que nada importa, todos os grupos políticos são a mesma coisa e indivíduos/mulheres sempre serão as vítima. Me pareceu uma mensagem antipolítica como tantas que temos ouvido nos últimos anos, vindas da extrema direita. O resultado desse tipo de discurso nunca é bom. Basta olhar para Brasil e Estados Unidos para saber do que estou falando.
Originalmente publicado no blog Resenhas Scifi
* Derley Menezes Alves é mestre em filosofia, doutor em ciências das religiões, autor do livro “Nietzsche e o Budismo: entre a imanência e a transcendência”. Criador do perfil @resenhascifi no Instagram.
ACESSE TAMBÉM
“Paradoxo de Theséus”: leia resenha do livro brasileiro de ficção científica
“O Cair da Noite”: leia resenha de conto de Isaac Asimov
“Salmo para um robô peregrino”: confira resenha de livro de ficção científica
Política e ficção científica chinesa, com Fábio Fernandes
“Saros 136”: uma conversa com Alexey Dodsworth sobre a HQ brasileira de ficção científica
Ciência, religião, espiritualidade e budismo com Derley Menezes; ouça
Ateus usam preconceitos do cristianismo quando falam de budismo
O médico zen budista que trabalha com a causa LGBTQIA+; conheça o Monge Yakusan
A CGTN publicou um artigo destacando como, Xi Jinping, visitante presidente chinês, traçou um novo…
Show acontece no dia 25 de abril, sexta-feira, às 21h A cantora, compositora e produtora…
Dubai está pronta para unir o ecossistema mundial de IA e promover sua preparação para…
Com participação especial de Mônica Salmaso, duo se apresenta na sexta-feira, 25 de abril A…
SÃO PAULO , April 16, 2025 (GLOBE NEWSWIRE) -- A empresa de tecnologia MCT Technic,…
A Laserfiche, a plataforma empresarial líder que ajuda organizações a gerenciar seus conteúdos e fluxos…