“A ficção científica norte-americana, quando vai ao cinema, chega com 30 a 50 anos atrasada em relação à literatura”
Por AD Luna
O que é ficção científica? Star Wars é ficção científica? Qual a relação entre esse estilo literário, a espiritualidade e Deus? Para tratar dessas questões, conversei com o professor, escritor e tradutor Fábio Fernandes.
Fábio Fernandes trabalhou no Pasquim, escreveu para os cadernos literários de O Globo, Tribuna da Imprensa e Valor Econômico.
Traduziu cerca de 80 livros, entre os quais “Neuromancer”, “Fundação”, “2001: uma odisseia no espaço” e “Laranja Mecânica”, “Justiça Ancilar”. Além de diversas graphic novels, como “Transmetropolitan”, “O Último Homem”, “DMZ” e “Ex Machina”. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor do curso de Tecnologia em Jogos Digitais dessa instituição, é pesquisador de cibercultura e redes sociais.
É autor de “Os dias da peste”, “Interface com o Vampiro”, “A Construção Do Imaginário Cyber – Col. Moda & Comunicação”, “Wild Mood Swings”, “No Tempo das Telas” e “De A a Z: Dicas para Escritores”. Foi aluno da Clarion West Writers Workshop, a mais conceituada oficina literária de ficção científica e fantasia dos EUA, tendo como instrutores Neil Gaiman e Samuel Delany, entre outros.
No início da conversa, fiz uma perguntinha “básica” ao escritor. O que é ficção científica? Como ele mesmo pontuou, a resposta não é simples. Então, dividi as respostas em partes.
Ouça a entrevista com Fábio Fernandes na íntegra
DEFINIÇÃO
“A ficção científica é muito mais do que aquilo que a gente vê nos filmes. Falo, basicamente, da ficção literária. A ficção científica norte-americana, quando vai ao cinema, chega com 30 a 50 anos atrasada em relação à literatura. Tem muito coisa boa que está sendo feita agora e as pessoas não fazem ideia. Inclusive, no campo político.
Uma definição só, hoje em dia, não dá conta de tudo. Já tem um tempo que a ficção científica é considerada um mega gênero. O que isso quer dizer? Um gênero literário que é um guarda-chuva.
Embaixo dele tem outros tantos. No Brasil, já estã acostumado a falar de cyberpunk, steampunk, space opera, weird fiction. Todos esses subgêneros estão atrelados à categoria maior chamada ficção científica. Por isso que, às vezes, as pessoas estranham”.
STAR WARS
“Há muitas discussões sobre se Star Wars é ficção científica ou fantasia. Porque tem princesa, tem espada, cavaleiro (os jedis). Mas é um modo narrativo de ficção científica. É uma história espacial de guerra, com aventura, romance, com várias coisas que também podem fazer com que ela se encaixe em outras modalidades.
Por isso, por exemplo, você pega “The Handmaid’s Tale”, da Margaret Atwood, tanto o livro, quanto a série, ele é tão ficção científica quanto Star Wars. Apenas são dois subgêneros diferentes.
Tem um pesquisador inglês, Paul Kincaid, que ele diz o seguinte: a ficção científica é uma teia de relacionamentos, de referências. Na verdade, você não consegue mesmo fixar num ponto só.
Hoje, academicamente, nos Estados Unidos e Inglaterra, há dezenas de livros de teoria crítica só tentando dar conta de alguns segmentos da ficção científica.
No Brasil, já temos alguns trabalhos. Tenho um livro publicado, em 2006, sobre a obra do William Gibson e cybercultura, na qual tenho definir um pedaço da ficção científica”.
QUAL A DIFERENÇA ENTRE FANTASIA E FICÇÃO CIENTÍFICA
“A fantasia é tudo aquilo, dentro do território do fantástico, que é explicável pela magia. E a ficção científica é tudo que é explicável pela ciência, mesmo que seja pseudociência.
Você pega, por exemplo ‘Stargate’, ou uma nave espacial que vai além da velocidade da luz. São coisas que não existem, porque a física nos diz hoje que isso não é possível.
Mas a ficção científica diz: ‘e se fosse possível, e, se de repente, a gente descobrisse alguma coisa, dispositivio alienígena ou uma nova substância que pudesse fazer com que essas invenções funcionassem?’ A gente parte sempre do pressuposto científico”.
ESPIRITUALIDADE E TRANSCENDÊNCIA
“Acho que a ficção científica tenta realmente ir além, de todos os sentidos, inclusive no espiritual. Ela tenta buscar uma transcendência, a qual só temos paralelo na questão das religiões. Muitos dos grandes escritores de ficção científica se consideravam ateus. Arthur C Clarke era um deles.
No entanto, ele próprio, nas suas histórias, deixava claro que buscava uma transcendência. “2001: Uma Odisseia No Espaco”, por exemplo… O que é aquele final do filme e do livro – embora haja uma pequena diferença – o que é a questão da criança estrela? Do David Bowman sofrer uma aceleração do envelhecimento para de repente dar a volta e virar uma espécie de feto, mas com poderes. Já que, em 2010, vamos descobrir que essa criança-estrela é uma entidade pós-humana.
Não sou ateu. Sou budista, praticante do budismo theravada, que a linha que vem direito da Índia e que está hoje no Sudeste asiático, com sede na Tailândia. Mas, ao mesmo tempo, não tenho uma opinião muito fechada sobre a questão de Deus.
Se Deus é uma entidade só, se Deus é um todo, se Deus poderia ser uma definição de tudo que engloba a questão do samsara, o que vem depois do samsara, que a gente falaria no budismo”.
DEUS E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
“Temos na ficção científica o que os americanos chamam de “sense of wonder” – que poderia ser traduzido como “o sentido do maravilhoso”. Que é simplesmente você ficar pasmo de coisas muito maiores que nós, coisas transcendentes. Acho isso muito bonito.
É uma sensação parecida com a que eu tenho quando vou num bosque, por exemplo, quando vou num lugar de natureza. Tenho uma paixão profunda, uma grande reverência pela natureza.
Quando era adolescente, costumava pensar assim: ‘olho ao meu redor, vejo as árvores, o vento batendo nas árvores, o cheiro das flores, o perfume.. Puxa, pra mim Deus é isso!’.
Claro que estou falando numa coisa muito pessoal, que não corresponde necessariamente a que os ouvintes acreditam. A questão não é essa, mas de dizer que a gente está sempre buscando uma transcendência. Acho muito válido que busque na religião, sem fanatismos. E na ficção científica também.
Tem uns nerds que são muito radicais. Começam a bater boca e dizer que em Star Wars não pode ter personagem negro, não pode mulher, gay – o que é uma palhaçada, um absurdo.
Acho que tem que englobar tudo e todas experiências de vida, experiências humanas. E a religião é isso também.
Todo mundo tem uma experiência ou desejo de transcendência. Acho que a ficção científica preenche esses espaços também. Preenche pela via do imanente, do humano, que está aqui no nosso tempo de vida agora. Mas não é menos importante. Pelo contrário, acho que inclusive nos dá um sentido de vida maior do que, às vezes, algumas crenças religiosas. A experiência religiosa e da ficção científica são perfeitamente complementares”.
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