Fernanda Lira sobre o Racionais: “É uma dose de consciência de classe”

 Fernanda Lira sobre o Racionais: “É uma dose de consciência de classe”

A vocalista e baixista Fernanda Lira, da Crypta. Divulgação

 

 

Em entrevista concedida com exclusividade ao programa de rádio InterD – música e conhecimento, Fernanda Lira fala sobre o processo de produção do primeiro disco da Crypta, “Echoes of the soul” do atual governante do país, de política, “riffs bucais”, de artistas nacionais além do metal que ela curte. Entre eles e elas, o Racionais MC’s: “É uma dose de realidade, consciência de classe e análise crítica social incrível”.

Além de Fernanda Lira, vocalista e baixista, fazem parte do quarteto, criado em 2019, as guitarristas Tainá Bergamaschi e Sonia Anubis, que é a gringa da banda, natural da Holanda; e a baterista Luana Dametto, que, assim como Fernanda, também integrou a Nervosa – cuja guitarrista, Prika Amaral, já esteve aqui no programa e site.

Apresentado pelo músico e jornalista AD Luna, o InterD – música e conhecimento é veiculado na rádio Universitária FM do Recife, todas as quartas, às 20h. Os conteúdos específicos sobre música podem ser ouvidos na versão em podcast InterD Música. Além do áudio, publicamos a transcrição da entrevista com Fernanda Lira no InterD.

Ouça “Fernanda Lira (Crypta) sobre o Racionais MC’s: “É uma dose de consciência de classe” #15″ no Spreaker.

AD Luna (InterD) – O que você sentiu quando finalizou todo o processo de produção do disco? Acho que deve ter passado um filme na sua cabeça, não é?

Fernanda Lira – Com certeza passou um filme na minha cabeça! Assim, o processo de produção do disco da Crypta foi bastante longo. A gente fez questão que esse período de produção do disco fosse longo porque, primeiro, eu sabia que essa questão da pandemia ia durar um tempo.

Não imaginava que ia ser tanto quanto tá sendo agora, mas eu imaginei que fosse durar um tempo, e eu não queria que a gente fizesse um disco correndo ali e aí lança o disco e tem que ficar em casa por um ano, esperando poder fazer show e tudo.

Então, a gente falou “já que temos esse problema mundial acontecendo aí – e que, com certeza, vai atrapalhar as coisas voltarem ao normal -, vamos tomar esse tempo para fazer com calma o disco”.

“A Nervosa foi a minha banda do coração, o meu bebê que eu cuidei e fiz crescer desde o começo. E deixar isso, depois de quase uma década, foi muito complicado para mim”

E a gente usou esse tempo ao nosso favor porque eu sempre escrevi disco na correria, sempre nervosa, sempre em turnê, sempre fazendo muito show e nunca tinha tempo para escrever com calma, sempre tinha que ser um mêszinho entre as tours, aí escrevia algumas músicas e tal, e sempre funcionou ok. Mas eu sempre quis escrever um disco com todo o tempo possível.

Foi o que aconteceu com a Crypta. A gente demorou quase um ano para compor todas as músicas e depois vários meses – um pouco mais que meio ano – para ficar na pré-produção do disco, cuidando dos detalhes das músicas, colocando riff, tirando riff, realmente polindo as músicas.

Esse processo levou bastante tempo e, além disso, teve toda a questão de logística para gravar durante uma pandemia, com segurança para todo mundo.

Além disso, teve todo o meu processo pessoal que envolve essa transição de uma banda para outra, que foi super complicado.

A Nervosa foi a minha banda do coração, o meu bebê que eu cuidei e fiz crescer desde o começo. E deixar isso, depois de quase uma década, foi muito complicado para mim. Vieram várias emoções à tona, foi um processo bem complexo.

Quando chegou a hora de finalizar todo o processo, foi um misto de emoções pra mim. O disco em si, como a gente tava na correria quando a gente terminou o processo do disco, foi um alívio do tipo “bom, terminamos essa grande etapa!”. Mas ainda tinha isso e aquilo para fazer, tinha um monte de coisas pra gente fazer ainda.

Eu lembro que um momento muito marcante para mim foi quando a gente terminou de gravar o clipe, que foi um dos nossos últimos compromissos quando a gente tava reunido. E eu não aguentei… eu chorei, chorei, chorei.

Quando eu gravei a última cena, o cara falou “terminamos!” e todo mundo aplaudiu a equipe no final; acho que eu botei tudo para fora desse período todo aí.

Foi bem forte esse processo, mas foi, ao mesmo tempo, levando mais pro lado positivo, foi muito interessante pra mim. Foi uma prova da minha resiliência também; daquela coisa do tipo “Tá tudo bem! Você passou pelo que passou, foi difícil… a decisão mais difícil da sua vida, mas você tá aqui, seguindo a vida, feliz! Olha o trampo que você fez!”.

Saiu tudo do jeitinho que a gente tinha planejado, então pra mim foi um prêmio à minha resiliência, também. Foi bem bacana.

AD Luna (InterD) – Muitas das letras da Crypta abordam questões existenciais presentes lá no interiorzão obscuro de todos nós. Gostaria que você comentasse sobre a inspiração para a construção dessas letras e do fato de elas contrastarem com a Fernanda sempre sorridente e animada que a gente vê nas redes sociais.

Fernanda Lira – Essa questão de contrastar com a minha personalidade, é importante que a gente entenda que eu sou uma pessoa muito plural. O meu Instagram, por exemplo, as minhas redes sociais refletem a minha visão de mundo.

Tem dia que eu vou estar super feliz e empolgada. Tem dia que vou estar falando disso, disso e daquilo. Tem dia que eu vou estar protestando. Tem dia que eu vou estar na bad.

E eu faço questão de compartilhar isso com as pessoas. Então, as minhas redes sociais são uma visão bem ampla, um resumo bem amplo do que é a minha visão de mundo.

Já as minhas letras, eu uso de uma maneira diferente das minhas redes sociais. As minhas letras eu uso – e sempre usei – como a minha maior ferramenta de expressão sobre as questões mais sociais.

Eu passei quase uma década no thrash metal, escrevendo praticamente música de protesto, de crítica – o que era bastante natural pra mim, como quem me acompanha nas redes sociais pode saber.

Mas são coisas diferentes… as letras eu uso realmente como uma válvula de escape para as coisas que eu discordo na sociedade, de uma maneira geral.

Coisas que também podem ser propositivas, que podem propor um debate, que podem fazer você parar pra pensar sobre aquele tópico. Não que nas minhas redes sociais também não sejam, mas é uma maneira diferente.

Vamos colocar assim: as minhas letras seriam uma parte de tudo aquilo que eu coloco nas minhas redes sociais, que são a minha visão ampla da vida.

Não é que eu passe todos os dias, todas as horas do meu dia falando tudo aquilo que eu expresso nas minhas letras. Aquilo que eu falo nas minhas letras é uma parte do meu ser. Já nas minhas redes sociais vai a parte toda, a visão toda do mundo. Não sei se eu consegui deixar claro.

Agora, quanto a esse processo, foi muito interessante pra mim. A Crypta pra mim… eu vejo ela como um livro em branco.

Eu via ela como um livro em branco, cheio de páginas brancas onde eu podia colocar nela o que eu quisesse. E aí foi muito massa poder criar uma coisa do zero, tanto musicalmente falando quanto liricamente, esteticamente… tudo. Foi uma coisa do zero e foi muito prazeroso fazer tudo, escolher tudo que a gente ia trabalhar e tal.

E, assim, eu sou uma pessoa que a única competição que eu curto é a competição comigo mesma, que eu acho que é saudável. Eu sempre gosto de dar um passinho a frente, ou, pelo menos, me desafiar em algumas coisas a nível pessoal. E esse lance das letras eu achei que seria bastante interessante porque eu queria mudar.

Como eu estou mudando de banda, mudando de gênero – porque as pessoas acham que thrash e death tão mais no lado extremo, mais ou menos tudo no mesmo caldeirão, e não… na verdade são gêneros completamente diferentes, principalmente no que diz respeito à letra.

Então eu falei “Tô mudando, fazendo essa transição e eu vou querer mudar também nessa coisa da letra.”. Passei quase uma década escrevendo música de protesto, que eu amava, porém “o que eu posso fazer agora?”. E aí eu me peguei pensando no que eu poderia fazer.

Pensei nos temas que costumam ser mais comuns no death metal, que é aquela coisa mais gore, ou aquela coisa mais demônio e tal. Nada contra quem escreve sobre, mas eu pensei que eu não teria nem repertório pra escrever tanto sobre isso, não seria uma coisa tão fluida vindo de mim… eu não ia me sentir muito confortável.

Então eu pensei “O que eu posso fazer pra ser algo que se aproxime do gênero, mas que ainda seja bastante confortável e fluido pra mim?”. Aí pensei “por que não escrever sobre esse aspecto mais sombrio da jornada da nossa existência aqui na Terra?”… na vida, na Terra não, ficou meio tosco. Na vida, nossa existência aqui nesta vida.

Porque todos nós temos caminhos sombrios, memórias soturnas… temos os nossos demônios. Todos nós temos esse lado sombra. E aí pensei “Por que não, né? Trazer essa sombra pra combinar com esse aspecto sombrio do death metal?”.

A primeira coisa que eu fiz foi tentar relacionar todas as letras com o tema morte, o tema death, pra encaixar ali com o death metal. Esse tema permeia todas as letras, então você tem ali a morte literal, na “Starvation”. Tem a morte do ego, na “Kali”. Tem a morte de um ciclo, na “Death Arcana” e na “From the Ashes”. Tem a morte de um eu antigo, de uma personalidade antiga sua, na “Dark Night of the Soul”.

Isso eu já achei bem legal… conseguir fazer com que o tema morte permeasse figurativamente ou não todas as letras. Eu comecei a me sentir muito confortável porque são coisas que eu precisava expurgar e, ao mesmo tempo, compartilhar para as pessoas, de repente, se sentirem um pouco representadas… “Também tô passando por isso!”.

Ainda mais nesse contexto de pandemia, que tem muita gente terminando e começando ciclos de várias maneiras, seja no luto, seja na perda de um emprego, de um relacionamento, enfim.

Mas é claro que eu cheguei no meio do processo ali e eu falei “Tá faltando uma musiquinha de protesto, né?!”. Não vai ser um disco da Fernanda se não for um disco que tem pelo menos uma criticazinha ali.

E eu fiquei bem feliz que eu também consegui escrever letras que são de protesto, letras que são críticas sociais que nem a “Starvation” e a “Blood Stained Heritage”, mas de uma maneira muito mais poética e menos thrash metal, que é aquela coisa mais na cara, assim. Escrevi de uma maneira mais poética, mais tentando fazer a pessoa pensar sobre aquilo.

Então foi um processo muito, muito legal. Super fluido e confortável pra mim. E eu já tenho ideia pra um disco inteiro próximo aí. Bem massa!

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Tainá, Luana, Fernanda, e Sonia, da Crypta, em sua primeira foto juntas. Crédito: Estevam Romera

Além da música, há outros meios com os quais você “Enfrenta seus demônios internos?”, como diz a letra de “Shadow within”?

Sim. Na verdade, além da música, há outros meios com que você enfrenta seus demônios, né?! Sim! É quase um hobbie meu enfrentar meus demônios internos.

Desde o final de 2017, eu tenho passado por um processo muito forte de auto-aprimoramento. Eu passei por algumas coisas no final de 2017 que meio que levantaram o véu que me prevenia de ver várias coisas com mais clareza, incluindo – e majoritariamente – coisas sobre mim mesma, dentro de mim; que eu não via com tanta clareza, que eram tóxicas, que não eram legais, que eu não gostava, que não se alinhavam com a pessoa que eu queria ser.

E aí eu comecei nessa jornada de auto-aprimoramento e, dentro dessa jornada, eu utilizei vários meios pra enfrentar os meus demônios. Várias, várias coisas.

Mas eu acho que muitas coisas relacionadas à espiritualidade – não religião, as pessoas tendem a misturar com religião… um lance muito mais relacionado a uma jornada de autoconhecimento do que a religião… as pessoas têm essa concepção bizarra -, como, por exemplo, a meditação.

A meditação acabou sendo, durante muitos anos, a minha maior válvula de enfrentar diversas coisas porque eu tenho uma facilidade muito grande para entrar em estado meditativo e, quando eu entro, aparecem muitas coisas, vem muita coisa à tona, traumas, aspectos da minha sombra que precisam ser liberados e trabalhados.

Tem sido nos últimos anos uma ferramenta bastante interessante pra eu fazer essa prática diária de enfrentamento de demônios. E mais recente na minha história, mais por causa do meu quadro de ansiedade patológica que eu me descobri tendo no último ano, eu comecei a fazer acupuntura e psicoterapia. E são maneiras incríveis.

Eu acho que todo mundo precisaria fazer terapia. O pessoal associa com coisa de gente que é louca, ainda tem muito tabu, mas a verdade é que, se todo mundo no mundo tivesse acesso e vontade de fazer terapia, o mundo seria bem melhor.

A terapia é muito importante porque não só é uma válvula de escape – de escape não, uma válvula de descarregar coisas que às vezes você carrega ali dentro e acaba projetando em outras pessoas -, mas também é uma maneira de ser confrontado naquilo que você acha que tá fazendo certo e, na verdade, não tá, e aí tem uma pessoa completamente neutra que te fala “Você já tentou fazer dessa maneira? Você vê como esse comportamento é tóxico pra você mesma?”.

Então, a terapia tem sido incrível, eu acho que é a melhor maneira de enfrentar os nossos demônios.

Outra coisa que tem me ajudado muito é a acupuntura. Pode parecer uma coisa mais física, mas pra quem é bastante sensível, como é o meu caso, eu tenho verdadeiras catarses durante minhas sessões de acupuntura.

Tenho muita revelação, vem muito sentimento à tona, muito pensamento que precisava ser liberado ali. Quando eu falo que é uma prática diária é porque é uma prática diária mesmo. Quando você entra nesse processo de reforma íntima, de auto-aprimoramento, todo dia você se depara com um comportamento seu – ou dos outros porque os outros também te ajudam a encarar esses demônios.

Por exemplo, você vê uma pessoa que é extremamente tóxica para você e você fala “Aprendi! Jamais quero ser assim na vida!”. Então todos os dias a gente se depara com situações que fazem a gente – quem tá disposto e aberto – enfrentar esses demônios que você disse. É realmente uma prática diária, todo dia tem uma coisinha ali que dá pra gente melhorar.

Fernanda Lira em ação com a Crypta no festival Porão do Rock 2021

Você arrumou um par poderoso de guitarristas. No disco, há vários solos antológicos. Como Sonia Anubis e Tainá Bergamaschi costumam trabalhar as bases e os solos e você tem alguma participação no processo também?

Sim, tenho bastante participação no processo, a não ser dos solos, que eu acho que é uma coisa bastante particular. A não ser, assim, nos solos eu digo às vezes onde eu acho legal… por exemplo, aquele duetinho de guitarras na “From the Ashes”, que sugeri.

Eu falei “Olha, eu gostaria de ter um duetinho de guitarra e gostaria que fosse nessa parte aqui.”. Mas aí, quanto ao conteúdo disso, é uma coisa muito íntima, as notas que você escolhe, então nisso eu não dou pitaco nenhum.

Porém, nas bases… nesse disco, a maioria das bases são minhas e da Sonia, mesmo. Eu diria quase 50/50, quase 50% de cada uma. Porque a Tainá entrou quando a gente já tava com o cru do disco ali quase completamente pronto.

Aí, quando a gente ficou nos meses ali da pré-produção, a Tainá deu bastante ideia, incorporou alguns riffs ali, adicionou, mudou a estrutura e tal, mas o grosso mesmo do material do disco é composto por mim e pela Sonia.

Eu sempre compus riff. Na Nervosa, também, mesma coisa. Bem divididinho a composição de riffs. Era sempre 50%, 50% no disco.

Então, eu gosto. Escrevo riffs de guitarra mesmo. Riff de baixo, não. Riff de guitarra. Eu penso em guitarra. Aí, com as meninas, eu gravo esse riff de guitarra com a boca – eu falo, meus famosos riffs bucais -, aí gravo com a boca e dou para as meninas traduzirem pra guitarra as minhas ideias. Mas eu contribuo bastante, assim.

A gente tá, por exemplo, agora começando a compor um novo disco e vai ser assim. Primeiro vamos começar uma música que tem mais ideias da Sonia, depois mais ideias da Tainá, depois mais ideias minhas – de riff, né?! -, depois mais ideias da Luana.

Então todas nós, incluindo a Luana, compomos riff de guitarra. As bases de “guita” são realmente bem distribuídas dentro da banda. Não tem uma pessoa que é mais responsável por elas, nem mesmo as guitarristas. Todo mundo acaba contribuindo bastante.

Agora, como a Sonia e a Tainá costumam trabalhar. Eu acho que elas enriquecem bastante. Que nem eu falei, eu crio muitos riffs, mas elas acabam aprimorando eles. Colocam umas notas que combinam melhor, colocam um lead de guitarra por cima que leva o riff pra um outro patamar.

Essa liberdade de, por mais que a gente crie riff de guitarra, elas são as guitarristas, então elas vão saber melhorar aquilo, deixar aquilo de uma maneira mais “guitarrística”, então elas tem total essa liberdade e contribuem bastante dessa maneira.

Tem vários riffs que eu escrevi que elas acabaram melhorando ou colocando um lead por cima que transformou o riff numa coisa muito mais classuda, assim. Isso é bem legal. E elas são super criativas, têm estilos completamente diferentes uma da outra, o que eu acho que traz bastante pro disco.

Os riffs da Sonia tem aquela pegada mais melódica. Os riffs da Tainá, como vocês vão ver no próximo disco, ela tem uma maneira muito particular de escrever riff. É muito foda.

É um negócio técnico, mas com bastante melodia, mas ao mesmo tempo é true pra caralho, assim. Tem muita coisa de Death ali, da banda Death.

Então, é bem interessante como os estilos delas são bem diferentes e se complementam, mas eu gosto muito de trampar com elas porque são bastante criativas e classudas na hora de compor. Bem massa, assim. Mas é isso, a gente trabalha como uma equipe.

Quanto aos solos, eu não participo muito do processo de composição dos solos delas. Eu só opino quando elas pedem opinião porque, como eu disse, é uma coisa muito particular. Eu já consegui notar o que cada uma tem na hora da composição.

A Sonia é bastante técnica e traz muita essa coisa da melodia, tem o whammy ali. A Tainá – eu já vi inclusive ela falando em entrevistas -, mas, vendo ela compor, ela curte muito fazer efeito com a mão e sentir mesmo o braço da “guita”. Às vezes ela sacrifica ter mais notas pra colocar um bend ali que tem um feeling que só por Jeová. Então é muito interessante, muito massa.

Durante sua história, o metal mostrou vários exemplos de críticas à opressão, autoritarismo e fascismo. Mas, no Brasil, muita gente de bandas com certo nome resolveu se omitir. Você é uma das exceções, tem sempre se posicionado. Por que você acha importante se posicionar? 

Primeiro, eu acho que cada um faz o que quer. Tem gente que não gosta de se posicionar, tem gente que não gosta de misturar as coisas, enfim. Apesar de que, pra mim, não tem como “desmisturar”.

A própria história do metal e do rock tá muito atrelada à política. “Ah, não combina!”… Na verdade, faz parte, tá intrínseco à história do gênero, mas tudo bem.

Mas eu acho que não necessariamente a pessoa precisa se posicionar em relação a tudo o que ela acha, opinar em tudo. Nem eu mesma faço isso. Porém, eu me posiciono. Por que eu venho me posicionando?

Porque, pra mim, uma coisa é clara: divergência de opinião, discordar da maneira como um governo tá lidando com uma questão, isso sempre vai acontecer. Mesmo quem é, vamos supor, petista e tem alguém do PT lá que faz alguma coisa que não vai de acordo com o que você acha bacana, o normal é você discordar.

Então a divergência sempre vai existir, em todos os âmbitos. Enfim, independente da questão da divergência, eu tenho minha divergência com toda a classe política do Brasil… não existe ninguém que represente 100% as minhas ideias e nunca vai existir porque cada um tem a sua visão de mundo.

Porém, o que acontece… por que eu venho me posicionando? Porque o atual governo não é só a questão política… vai muito além da política pra mim. E isso não é especificamente o Bolso lá, não… se fosse qualquer político… se fosse o Lula falando as bostas que ele fala, eu ia me opor de qualquer maneira. Porque aqui não é mais questão somente política.

Pra mim, eu acho que o que vem acontecendo é grave demais. Não é uma questão política… “Ah, ele está fazendo da maneira mais à direita ou mais à esquerda; ele está fazendo isso dessa maneira.”. Não, o que a gente tem visto é ataque à democracia, às nossas instituições democráticas. Independente de qualquer divergência, a democracia tem que ser soberana.

Então, quando um político se opõe à própria democracia em si, independente de qual partido, independente de qual orientação de direita ou esquerda, independente de qualquer coisa, eu vou me opor porque a democracia tem que ser soberana, a liberdade tem que ser soberana.

Além disso, a pessoa que ocupa nosso cargo de chefe de Estado hoje, ela faz ataques, ela pratica discurso de ódio. E discurso de ódio, pra mim, é inaceitável. A gente já viu ele fazendo discurso racista, discurso homofóbico, discurso misógino. E isso não sou eu que estou inventando… você coloca no YouTube lá e você acha. Tem coletâneas. E pra mim não cabe.

Eu sou muito contra a intolerância. E as pessoas têm confundido um pouco a questão da liberdade de expressão com a intolerância. Liberdade de opinião é você gostar ou não de uma coisa. Agora, você atacar a existência de uma outra pessoa é discurso de ódio. E discurso de ódio, independente de onde vier, seja de um chefe de Estado ou seja do meu vizinho, eu vou me opor.

Então a questão não é política, pela qual eu me posiciono hoje. Não é uma divergência política. É uma divergência de… o cara ataca a democracia e ataca o direito de existir das pessoas, então eu vou me opor. Isso é com ele e pode ser qualquer outro político que venha a falar os mesmos tipos de atrocidades que ele fala. Essa é a questão de eu me opor tanto. É por isso.

Ele vai contra tudo o que eu acredito, eu tenho zero afinidades com essa pessoa. Só que, além de ter zero afinidades, a pessoa tem discursos que atacam a mim, atacam as pessoas que eu amo, pessoas da minha família, porque tem preto na minha família, tem pessoas da comunidade LGBTQIA+ na minha família. A minha família é pobre.

Então não tenho como aceitar esse tipo de coisa e, por isso, eu vou me opor. Então, basicamente, é isso. As pessoas chamam de comunista, falam “O Lula não sei o que”… cara, minha questão está explicada aqui.

E, além disso, eu me posiciono porque faz parte da minha visão de mundo. Se eu vejo alguém jogando lixo na rua, eu passo mal. Se eu vejo uma pessoa que, como acontece aqui, tá passando fome e vem pedir marmita na minha casa, isso me afeta.

Então por que as coisas que essa pessoa fala não me afetam? Então, assim como eu falo sobre o veganismo, assim como eu falo da desigualdade social, assim como eu falo do voluntariado que eu faço dos gatinhos lá – que o povo abandona os gatos lá no parque e você tem que ficar cuidando -, assim como eu falo dessas coisas, política é uma das partes da minha vida. É isso.

“Eu pertenço à classe pobre, então eu não posso defender direitos que não pertencem à minha classe. Tenho que defender os direitos da minha classe”

E, por último, o motivo de eu me posicionar principal é porque eu já estive num lugar onde essa questão política toda era muito nebulosa pra mim. Eu tinha diversas perspectivas que hoje eu vejo que são errôneas. Eu não tinha, por muito tempo, consciência de classe. Consciência de classe o que é? É você entender que você pertence a uma classe.

Por exemplo, eu pertenço à classe pobre, então eu não posso defender direitos que não pertencem à minha classe. Tenho que defender os direitos da minha classe.

E eu não entendia isso, então eu passei uma vida inteira defendendo direito de outra classe, defendendo direito de empresário multimilionário.

Enfim, já estive lá. Já tive alguns preconceitos. Já tive tudo isso. Já critiquei vários movimentos que eu faço parte hoje, simplesmente pelo fato de não entender, de não ser esclarecida no assunto, de estar numa nuvem de conformismo.

“Criolo, gosto muito. Tim Maia. Bezerra da Silva. Maria Bethânia. Os Mutantes. Luedji Luna. Enfim, são vários. Eu poderia ficar uma eternidade aqui falando, mas esses são os que eu mais ouço assim, eu diria”

Muitas pessoas, muito didaticamente, me ajudaram a chegar nisso. Não só amigos, mas pessoas que eu admirava e que começaram a se posicionar sobre as coisas, pessoas que eu admirava e que escreviam letras sobre isso. Enfim, eu fui tendo acesso aos poucos por meio de amigos, artistas que eu admirava, à essas informações que antes eu era contra, mas que eu nunca tinha parado pra pensar.

Então essas pessoas, muito didaticamente, me ensinaram a me pôr no meu lugar e entender aquelas coisas que eu criticava tanto, que na verdade não, eu deveria estar apoiando elas. Porque eu faço parte disso, porque essas coisas vão me beneficiar dentro da classe que eu estou.

Então eu penso que, assim, com o meu posicionamento, que é algo natural pra mim, se eu puder me expressar e, ainda, através disso, se nesses anos de posicionamento, uma pessoa conseguir se esclarecer um pouco melhor sobre algum tópico, pra mim é missão cumprida.

Porque aí eu vou estar fazendo o que, uma vez, fizeram por mim. Então é basicamente isso. Se a partir do meu posicionamento em relação à desigualdade social, em relação a ajudar a pessoa que está em situação de rua que está ali precisando; se uma pessoa, a partir do meu post, do meu posicionamento – porque isso também é um posicionamento -, for lá e doar pra uma instituição que distribui marmita para as pessoas em situação de rua, pra mim é missão cumprida.

Porque talvez, se eu não tivesse me posicionado, a pessoa não teria parado pra pensar sobre isso. Se, quando eu falo sobre veganismo, uma pessoa parar e falar “vou deixar de comer carne por um dia”, pra mim é missão cumprida.

“Gosto muito do Racionais MC’s – é uma dose de realidade, consciência de classe e análise crítica social incrível”

E vem acontecendo porque eu recebo esse feedback, “Você me abriu o olho em relação a isso! Nossa! Eu nunca tinha pensado por esse lado!”. Pra mim é isso que vale. Não é por seguir, por ganhar ou perder seguidor, não é pra aparecer, pra “lacração”, como o povo fica falando. Não tem nada a ver com isso.

É, simplesmente, pra inspirar algumas pessoas como outras pessoas me inspiraram, e hoje vivo muito mais consciente do meu lugar no mundo. É isso.

Que artistas nacionais, fora do metal, você curte?

Nossa! São tantos! São tantos, tantos! Eu tenho estado, nos últimos anos, numa fase muito interessante de descobrir artistas fora do nicho do metal, nacionais. E amo muitos, de vários gêneros diferentes. Gosto muito da Marisa Monte, gosto muito do Racionais MC’s – é uma dose de realidade, consciência de classe e análise crítica social incrível.

Todo mundo devia parar pra ler um pouco das letras do Racionais porque, a partir dali, você consegue ver a raiz de vários problemas… problemas que eles vem denunciando há 20, 30 anos e que ainda estão aí hoje.

Criolo, gosto muito. Tim Maia. Bezerra da Silva. Maria Bethânia. Os Mutantes. Luedji Luna. Enfim, são vários. Eu poderia ficar uma eternidade aqui falando, mas esses são os que eu mais ouço assim, eu diria.

E meu recado final, a única coisa que eu gostaria de acrescentar é: a gente viu durante a pandemia que a gente pode aprender a viver sem várias coisas. Sem ver nossos amigos semanalmente, sem ir naquele restaurante que a gente gosta de comer de vez em quando, sem dar um rolê.

A gente aprendeu que a gente pode viver sem essas coisas. É difícil, mas… sem ir num show. É difícil, é chato, mas a gente aprendeu que a gente pode viver sem.

“Durante a pandemia que a gente pode aprender a viver sem várias coisas (…) Sem a arte, a gente aprendeu que ninguém consegue passar”

Agora, sem a arte, a gente aprendeu que ninguém consegue passar. A gente viu o quanto a arte foi importante pra amenizar esse período terrível que a gente vem passando.

Ninguém passou um dia sem consumir arte. Sem ouvir uma música, sem ler um livro, sem assistir um filme, sem assistir uma série.

Então, vendo quão importante a arte é na nossa vida e o poder grande de ajudar a gente a passar por momentos terríveis, meu recado é: vamos continuar valorizando a arte.

Não só a banda local, mas, enfim… como você pode valorizar a arte? Como você pode apoiar a arte? E botar isso em prática cada vez mais.

Então esse é o meu recado. Obrigadão!

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