“Exu é vida. Não é o demônio,” O babalorixá Sidnei Nogueira articula resposta jurídica aos ataques de fundamentalistas religiosos, depois da vitória de enredo sobre o orixá no Carnaval do Rio. “Evangélicos que não são meus seguidores vieram me atacar por mensagens privadas. ‘Tá repreendido em nome de Jesus’, ‘Você vai morrer’, disseram”
Por Mariama Correia*
Quando a escola de samba Acadêmicos da Grande Rio foi sagrada campeã do Carnaval do Rio de Janeiro 2022 com um enredo que exaltou Exu (em iorubá: Èṣù), um dos principais orixás do candomblé e da umbanda, o babalorixá Sidnei Nogueira celebrou com seus mais de 75 mil seguidores do Instagram. “O carnaval deste ano foi uma resposta contra o racismo religioso”, postou.
Não demorou muito para que os ataques de fundamentalistas religiosos começassem. “Evangélicos que não são meus seguidores vieram me atacar por mensagens privadas. ‘Tá repreendido em nome de Jesus’, ‘Você vai morrer’, disseram. Uma pessoa chegou a falar que eu tenho sangue nas mãos. Que eu matei a menina que morreu em um acidente com um carro alegórico. Como uma pessoa pode fazer essa associação?”, comentou em entrevista à Agência Pública poucos dias após o desfile.
Assim como ele, outras lideranças de religiões de matriz africana relataram ataques virtuais desde o desfile da Grande Rio, que pretendia desmistificar a imagem da divindade africana, demonizada por grupos fundamentalistas cristãos no Brasil.
“Exu é vida. Não é o demônio,” explica Sidnei Nogueira, que também é professor e doutor em Semiótica pela USP (Universidade de São Paulo). Na conversa, ele também falou sobre racismo religioso, ataques a Exu e a lideranças de religiões de matriz africana.
Ele diz que está articulando uma mobilização com lideranças de terreiro e juristas para responder ao racismo religioso.
“Existem ataques de influencers, políticos e cantores gospel. Minha proposta é que essas pessoas com influência tem que ser penalizadas. No mínimo, elas têm que se retratar, porque isso é discurso de ódio.”
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Por que demonizam Exu?
Quem que chega no Brasil para colonizá-lo? O Deus cristão e a lei europeia, portanto nós precisamos entender que o Brasil não é laico.
O outro fator tem a ver com o projeto político de poder. Em toda a história do Brasil, a política sempre se serviu de um discurso maniqueísta, ou seja, do bem contra o mal.
Sempre colocou qualquer coisa, qualquer manifestação cultural religiosa que viesse do continente africano e que fosse preta, no lugar do mal. A gente pode pensar que isso é do senso comum, mas não é, é uma estratégia política, sobretudo hoje.
Quando os colonizadores chegam no continente africano e não encontram o demônio deles, eles precisam substituir, eles precisam encontrar esse demônio cristão.
Aí eles pegam aquela divindade, que é a liberdade, a palavra, a comunicação, o prazer, que é a criança que brinca no mercado. Eles pegam essa divindade e a revestem como se ela fosse o demônio.
Tem vários elementos. Tem elementos de um projeto político de poder, tem elementos da fé – porque a fé é um lugar de muita subjetividade, é muito pessoal – e tem um outro elemento que é você encontrar uma figura, um personagem ao qual você pode atribuir todos os males do mundo.
O resumo é o seguinte: “Eu não encontrei o demônio no continente africano, eu preciso de um demônio. Exu vai ser esse demônio porque ele é preto, porque ele é a liberdade, porque ele é o prazer, porque ele é o senhor das trocas, porque ele é a diversidade, porque ele é a multiplicidade.
Em alguma medida, ele assume tudo que os padrões cristãos não suportam.
Ou seja, essa visão do orixá tem relação com racismo? De que modo?
Diretamente. Toda essa perseguição é uma perseguição racista, em primeiro lugar. O racismo não é só ferramenta do capitalismo, o racismo é ferramenta das religiões hegemônicas.
Para eles, o demônio não é branco, o demônio é preto. Não adianta. Veja que ninguém coloca Buda no lugar de demônio, ninguém coloca Hare Krishna no lugar de demônio.
Por que só colocam uma divindade africana? Nem o coelhinho da páscoa assume o lugar de demônio, ele é branquinho. Os cristãos amam o Papai Noel. Veja que não tem a ver com figuras míticas populares.
Exu é africano, é preto, não adianta, Exu não é europeu, ele é Yorubá, é uma divindade preta. Então, o racismo religioso quer demonizar Exu.
Quando nós de terreiro aparecemos no trabalho, por exemplo, com um três pontas [tridente que simboliza Exu], imediatamente nós somos hostilizados. Já começa o buxixo, “ai, macumbeiro, cuidado, olha Exu”.
Se uma pessoa se comporta – até uma criança – mais livremente, a professora chama a criança de Exu. Porque a cultura brasileira odeia a liberdade, a diversidade, a encruzilhada. E a encruzilhada é um lugar de três pontas para onde você pode voltar e refazer as escolhas.
Exu é a lei da mutabilidade, nós mudamos. Todos nós mudamos. Mudamos desejos, mudamos de casa, mudamos de território, mudamos o nosso corpo.
Nós morremos e renascemos simbolicamente a cada dia. Odeiam porque sabem que a figura de Exu é subversiva. Ela balança a ordem que está posta.
Na sua percepção, a intolerância religiosa tem aumentado no Brasil com o avanço do conservadorismo e do fundamentalismo religioso, inclusive nos espaços da política institucional?
A nossa sociedade odeia a vida. Ela ama morte, porque ela ama encarcerar vidas. Porque se você só pode ser heteronormativo e você não é essa pessoa, isso é viver uma morte simbólica.
Se você é uma mulher que quer assumir a sua liberdade, a sua potência, a sua liderança, mas já está reservada para um papel no casamento, na submissão ao patriarcado, que não é seu desejo, isso não é vida.
Exu é liberdade, o contrário de Exu é encarceramento. Exu é vida, Laroyê!
O senhor acompanhou as reações ao desfile da Grande Rio? Vimos alguns relatos de ataques e discurso de ódio nas redes. Aconteceu com você?
As reações estão sendo absurdas. Evangélicos que não são meus seguidores vieram me atacar por mensagens privadas. ‘Tá repreendido em nome de Jesus’, ‘Você vai morrer’, disseram.
Uma pessoa chegou a falar que eu tenho sangue nas mãos. Que eu matei a menina que morreu em um acidente com um carro alegórico. Como uma pessoa pode fazer essa associação?
Nós já vivemos num país fundamentalista, e em um momento da história do Brasil em que odiar é imperativo. É preciso odiar sobretudo as coisas pretas, sobretudo o feminino, sobretudo os povos quilombolas, sobretudo os povos indígenas, os povos originários. Isso se potencializa com a colheita de likes na internet, porque é preciso produzir um conteúdo odioso.
Quem, em sã consciência, pode acreditar na relação entre o acidente com a menina que morreu na avenida e o fato de uma escola de samba ter sido campeã? Por que essas pessoas cristãs não oferecem conforto a família dessa menina? Por que não pegam o seu Deus, o seu Jesus e oferecem para confortar os corações da família? Por que eles não pegam o seu Deus e o seu Jesus e começam uma batalha contra o estupro de uma menina de 12 anos indígena por um garimpeiro?
É preciso que o cristianismo no Brasil, que as religiões hegemônicas no Brasil, façam imediatamente uma autocrítica. Porque isso não pode continuar.
Eu sou uma autoridade, uma liderança de terreiro, eu tenho legitimidade para falar: não conheço o demônio. Não faz parte da minha cultura religiosa. Exu não é o demônio, nem cristão.
Está sendo articulada alguma resposta para esses ataques?
Existem ataques de influencers, políticos e cantores gospel. Estou conversando com um grupo de juristas de São Paulo para mobilizar respostas ao racismo religioso.
Minha proposta é que essas pessoas com influência tem que ser penalizadas. No mínimo, elas têm que se retratar, porque isso é discurso de ódio.
Depois, esse discurso de ódio fomenta que venha um evangélico incendiar o meu terreiro porque nós somos produtores e produtos dos discursos que estão circulando no mundo.
Quem é Exu dentro da cosmovisão das religiões de matriz africana?
Exu é um orixá. Foi para a Avenida na Grande Rio um dos principais mitos de Exu, que nós levamos muito a sério no Candomblé. No terreiro, penso que ele define muito Exu. Um dia, Exu, filho de Iemanjá e de Orunmilá, nasceu.
Ele é o preferido da força criadora, o preferido de Olodumare, de Olorum. A força criadora em Yorubá tem 16 nomes, não é Deus, a figura de Deus não contempla a força criadora. A força criadora não tem gênero, inclusive, não é patriarcal.
Exu nasceu com muita fome. Ele nasce falando “eu quero comer”. Yemanjá, a divindade nutridora, oferece os seios, ele mama, mas o leite acaba. Ela traz outras coisas para ele comer: frutas, carne, animais. Ele sai comendo tudo. O pai, Orunmilá, fica desesperado.
Ele começa a devorar as casas, árvores, tudo, até a mãe. Então o pai fala “olha, mamãe, não, devolve sua mãe”. Aí Exu dá aquela gargalhada – ele nasceu gargalhando, gargalha da vida, de tudo, inclusive do sofrimento, tudo ele transforma. Orunmilá diz para ele devolver a mamãe e Exu fala para eles fazerem uma brincadeira de troca.
Eles estavam no Orun, o mundo dos orixás, não era aqui no Aiyê, no nosso mundo. Orunmilá fala para ele devolver Yemanjá e ir para o Aiyê onde “será os olhos do papai e poderá habitar tudo que tem vida”. Orunmilá corta Exu e vão nascendo um, dois, três, ele vai cortando até 200 mais um. Aí nós dizemos que Exu habita em nós. Todos temos Exu.
Exu é então uma divindade bastante próxima do humano?
Exu diz: prove o mundo sem medo. Portanto Exu é a divindade que provou tudo primeiro para que nós pudéssemos provar depois. É a boca que tudo come, ele come tudo. Exu não tem preconceito, não tem racismo, não tem homofobia, não tem xenofobia, não tem transfobia.
É a divindade do autoamor, da autoconfiança. Sim, ele também é a libido, também é prazer, é desejo, porque ele devorou tudo. Sem medo.
Exu nos ensina que romper é continuar. Para nós, Exu é um orixá primordial, que tem lições poderosas de cura, diversão, alegria, gargalhada, zombaria, é a criança que brinca no mercado. É homem e mulher ao mesmo tempo, é o tudo e o nada, é a dor e o prazer, é a vida em toda sua potência e possibilidade existencial.
*Colaborou Matheus Santino
Reportagem originalmente publicada na Agência Pública
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