Ciência e saúde

Explicações sobrenaturais para fenômenos naturais e sociais prevalecem no mundo, mostra pesquisa

Entre os fenômenos naturais, as explicações sobrenaturais foram especialmente prevalentes para doenças e males. Este padrão apoia a teoria que argumenta que as epidemias de patógenos encorajam a crença em um ‘vitalismo moral’ – forças invisíveis do bem e do mal – que pode se manifestar por meio da crença em espíritos malignos

Por Cesar Baima*

“Foi Deus quem quis”. “Isso é castigo de Deus”. “Foi olho gordo”. “É carma”. Ao longo da história o ser humano procurou, no sobrenatural, a explicação para os mais variados fenômenos. Desastres ou dádivas, sucessos ou fracassos eram resultado da ação de “forças do além”, muitas vezes em resposta ou represália a ações e atitudes individuais, ou mesmo da sociedade como um todo.

Mas o quanto este hábito de atribuição varia em diferentes culturas quando o evento a ser explicado envolve ocorrências da natureza, como tempestades e epidemias, ou da vida em sociedade, como guerras e assassinatos? Foi o que investigou um grupo de pesquisadores liderado por Joshua Conrad Jackson, da Universidade Northwestern, EUA, em estudo publicado na revista Nature Human Behaviour.

Eles descobriram que, embora as explicações sobrenaturais sejam mais comuns para fenômenos naturais, elas também estão muito presentes em eventos sociais, em especial em sociedades mais urbanizadas e com estruturas mais complexas.

Tendência que se mantém até hoje, como mostra pesquisa da consultoria Ipsos sobre religião no mundo. O levantamento feito em 26 países revelou que em média 76% das pessoas ouvidas afirmam que sua crença em Deus ou outra “força superior” as ajuda a superar crises, com a maior proporção observada no Brasil, onde 90% dizem que a fé é chave para vencer doenças, conflitos e outras tragédias.

O “Deus das lacunas”

A Humanidade anda de mãos dadas com a religião desde tempos imemoriais. Não há na História sociedade humana que não exiba algum tipo de crença no sobrenatural. De dilemas éticos e morais a questões como quem manda na tribo, era nas religiões que encontrávamos respostas para quase tudo. E isto incluía muitas vezes fenômenos naturais, principalmente antes do desenvolvimento da ciência moderna.

Raios? Eram lançados por Zeus de seu trono no alto do Monte Olimpo, diziam os gregos antigos. Terremotos? Provocados pelo movimento de um dos quatro elefantes ou da tartaruga sobre os quais a Terra repousa, diria em tempos antigos um camponês indiano.

E mesmo hoje este tipo de explicação perdura. Para muitos cristãos americanos, a pandemia de COVID-19 foi um tipo de punição divina, enquanto aqui no Brasil a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro creditava as dificuldades enfrentadas pelo governo de seu marido à ideia de que “o Planalto estava consagrado a demônios”, e não à incompetência e inépcia do ex-presidente e seus principais assessores.

Assim, desde o século 19 cientistas, filósofos e teólogos imputam esta atitude à hipótese do “Deus das lacunas”, uma suposta tendência humana de atribuir à ação de agentes sobrenaturais fenômenos que não entendem ou cuja causa segue desconhecida.

E as pessoas também avaliam intuitivamente acontecimentos sob uma “perspectiva diática” composta por pares “agente”-“paciente”, lembram os autores do estudo em Nature Human Behaviour. Isso faria com que o “Deus das lacunas” também fosse invocado quando as causas de algum acontecimento são aparentemente ambíguas.

Diante disso, os pesquisadores decidiram avaliar se explicações sobrenaturais são mais comuns para fenômenos naturais como secas e tempestades – que frequentemente não têm um agente humano causador identificável – do que para ocorrências sociais como assassinatos e roubos, em que o envolvimento de um agente humano é mais facilmente notado.

Para tanto, analisaram registros etnográficos de 114 culturas, abrangendo desde grupos caçadores-coletores na Amazônia a antigos reinos da Ásia Central.

Usando técnicas da antropologia, catalogaram as explicações sobrenaturais mais comuns de cada sociedade com base em descrições qualitativas sobre três tipos de fenômenos naturais: doenças, desastres naturais e escassez de alimento relacionadas à natureza, como secas – e três sociais: guerras, assassinatos e roubos.

Segundo os pesquisadores, esta abordagem permitiu incorporar variáveis sociopolíticas e ecológicas nas análises, partindo do pressuposto que o aumento da complexidade social – como o surgimento de interações anônimas, laços mais fracos, incertezas sociais e menores níveis de confiança interpessoal – pouco ou nada impactaria a prevalência de explicações sobrenaturais para fenômenos naturais, mas estimularia sua ocorrência em fenômenos sociais.

“A complexidade traz incertezas na previsão do comportamento de outras pessoas e grupos, e estudos apontam que os seres humanos desenvolvem crenças religiosas sobre aspectos de incerteza e imprevisibilidade da vida”, justificam.

Ainda de acordo com os pesquisadores, a tendência de explicar um comportamento aberrante (por exemplo, um assalto ou assassinato) em termos sobrenaturais (possessão demoníaca, por exemplo) é maior quando o infrator é um estranho do que quando se trata de alguém cujas motivações e personalidade são conhecidas.

Quando da morte súbita de um parente, as pessoas podem ficar mais propensas a inferir que foi provocada por bruxaria se vivem em uma sociedade cheia de desconhecidos que podem ser praticantes maliciosos de algum tipo de magia.

“Em um vácuo de informações sociais, as pessoas podem ser mais inclinadas a construir explicações sociais focadas no sobrenatural”, consideram. “Esta não era uma hipótese a priori de nosso projeto, mas é consistente com pesquisas e teorias prévias”.

“Vitalismo moral”

O estudo observou que as explicações sobrenaturais são muito mais comuns para fenômenos naturais do que para ocorrências sociais nas diferentes culturas.

Após excluírem sete das 114 sociedades por problemas no registro etnográfico – incluindo dois casos de forte viés racista do material, produzido por missionários cristãos -, as análises revelaram que 96% delas tinham explicações sobrenaturais corriqueiras para doenças, 92% para causas naturais de falta de alimentos e 90% para outros desastres naturais, enquanto apenas 67% atribuíam a eclosão de guerras, 82% os assassinatos e 26% os roubos a influências do além.

Segundo os pesquisadores, a maior prevalência de explicações sobrenaturais para fenômenos naturais se manteve mesmo controlando para uma maior frequência na ocorrência dos primeiros, dado que epidemias e desastres naturais são mais comuns do que guerras e assassinatos.

Já o tamanho da população, uso de dinheiro, de transportes terrestres, desenvolvimento tecnológico e outros sinais de maior complexidade social aumentavam a probabilidade de a sociedade analisada também ter explicações sobrenaturais comuns para fenômenos sociais.

“Este estudo se soma a ponderações filosóficas de longa data de que os humanos têm a tendência de imbuir um antropomorfismo espiritual ao mundo natural, e argumentações mais recentes das ciências cognitivas de que este antropomorfismo pode ter tido um papel na evolução das crenças religiosas”, consideram o autores.

“Também demonstramos que, entre os fenômenos naturais, as explicações sobrenaturais foram especialmente prevalentes para doenças e males. Este padrão apoia a teoria que argumenta que as epidemias de patógenos encorajam a crença em um ‘vitalismo moral’ – forças invisíveis do bem e do mal – que pode se manifestar por meio da crença em espíritos malignos (por exemplo, demônios) e forças como o ‘olho gordo'”.

Pastores e políticos antivacina, ou ex-ocupantes do Palácio do Planalto durante a pandemia de COVID19, que o digam.

Publicado originalmente na Revista Questão de Ciência com o título Pesquisa avalia prevalência de crenças sobrenaturais pelo mundo

*Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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