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Discursos de ódio na internet são analisados no livro “Nós versus eles”
Em obra editada pela Cepe, a doutora em Linguística Mércia Regina Santana Flannery pensa nas consequências da linguagem de preconceito disseminadas nas redes sociais
Nos debates e conversas virtuais da atualidade, o diálogo diminui à medida que os discursos de ódio e preconceito aumentam exponencialmente. A julgar por comentários na imprensa e redes sociais, o brasileiro passou do estereótipo de cordial para o de intolerante e autoritário. A narrativa que impera em fóruns de discussões online é de racismo, xenofobia, polarizações políticas, intolerância religiosa, homofobia e machismo. Uma análise crítica e profunda dessas narrativas está presente no livro editado pela Cepe – Companhia Editora de Pernambuco, “Nós versus eles – discurso discriminatório, preconceito e linguagem agressiva na comunicação digital no Brasil”, escrito pela professora e doutora em Linguística, com especialização em Sociolinguística e Análise da Narrativa Oral pela Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, Mércia Regina Santana Flannery.
“As análises linguísticas de textos e comentários da internet feitas por Mércia Flannery são um caminho para tentarmos compreender o cenário da intolerância no Brasil atual. O livro ressalta como, mais do que nunca, é essencial desarmar, inclusive no campo da linguagem, os preconceitos, discursos de ódio e violências que invadem o campo dos debates, das conversas e da vida cotidiana, seja no ambiente virtual ou não”, declara o editor da Cepe, Diogo Guedes.
Livro traz comentários de internautas
Com 304 páginas divididas em 13 capítulos, o livro traz enxertos de comentários de internautas (sob anonimato) para esmiuçar seus discursos e, dessa forma, mostrar ao leitor como a linguagem agressiva age no ambiente virtual para, quem sabe, fazer com que seja neutralizada. Uma das maiores características apontadas é a tendência à polarização.
Segundo Mércia, essa tendência existe tanto no discurso político, quanto público e midiático. “Qualquer tema, pode-se afirmar, tem o potencial de causar pequenas batalhas ideológicas, que fazem as pessoas se esquecerem de que, possivelmente, têm mais em comum do que imaginam. Este traçar de trincheiras e estes posicionamentos polarizados, muito rígidos e antagônicos são apropriadamente capturados na expressão ‘nós versus eles’, explica Mércia.
A pesquisadora conta que passou um ano escrevendo o livro. Após defender sua tese de doutorado sobre narrativas de discriminação racial no Brasil, Mércia que resolveu revisitar o tema nos últimos anos, focando no contexto da comunicação digital. “Quando comecei a investigar, me deparei com muitos outros tipos de discriminação e de linguagem agressiva, o que me motivou a ampliar o foco da minha pesquisa para incluir outros casos e episódios da manifestação do preconceito”, esclarece a autora.
Sociedade brasileira não é um modelo de harmonia e inclusividade
Em sua análise sociolinguística ela constata que “a sociedade brasileira não é, infelizmente – e ao contrário do que ainda se pode pensar -, um modelo de harmonia e inclusividade. Muito pelo contrário. Eu sei que muitas pessoas que visitam o Brasil e que conhecem brasileiros têm a ideia de se tratar de uma sociedade muito tolerante, sobretudo se comparada a outras, nas quais o preconceito e a discriminação talvez sejam imediatamente mais sentidos”, ressalta a pesquisadora, exibindo os inúmeros preconceitos da nossa sociedade e ainda o fato de muitas pessoas não terem o menor pudor em divulgá-los.
“Um breve pousar de olhos sobre as páginas de jornais brasileiros revela a permanência e persistência do preconceito, manifestado de variadas formas. Isso precisa ser entendido e discutido, sobretudo numa época em que a comunicação digital tem proporcionado impressões de liberdades falsas, no que se refere à falta de respeito com as liberdades alheias”, analisa a escritora, que é recifense.
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Discursos de ódio na internet e o poder da educação
E como mudar esse panorama sombrio? “Eu sou professora e acredito muitíssimo no poder da educação. A mensagem mais importante para qualquer geração é que precisamos aprender bem sobre o nosso passado, primeiro, para compreender o nosso presente e descobrir o que queremos mudar, e as formas de fazê-lo. Crescendo no Brasil, eu não me lembro de ter ouvido tantas discussões sobre as relações raciais, ou os direitos de diferentes minorias, o que hoje já é muito mais presente. Quanto mais consciência tivermos do que podemos fazer, e de fato fazemos, por meio da linguagem, melhor”, ensina.
Para a linguista, também está faltando algo essencial: o diálogo. Não só no Brasil, mas também em outras partes do mundo. “Parece que as pessoas esqueceram que não precisamos ter as mesmas opiniões, e que dialogar sobre as diferenças é algo muito saudável. Dialogar, porém, envolve a noção de troca, o que não ocorre se, a priori, as partes já sabem – ou acreditam- que estão certas”, pontua a pesquisadora.
Educação e diálogo poderiam sanar a falta de conhecimento ou mesmo o descrédito nas leis e nas obrigações do estado para com seus cidadãos, como mostram os enxertos presentes na obra. “Eu arrisco afirmar – lembrando que sou sociolinguista, e não socióloga – que a explicação para isso está relacionada à nossa herança colonial, aos abusos de poder e à exploração de minorias. Mas os avanços vistos hoje na sociedade brasileira são também frutos de progressos na educação, na formação de uma geração que não vai se contentar com maus-tratos e injustiças. A história recente do Brasil, por mais que às vezes seja desapontadora e inquietante, também justifica algum otimismo, sobretudo na necessidade de mais inclusão”, avalia Mércia.
Comunicação e solidariedade
Se por um lado a internet é veículo de propagação de discursos de ódio e violência, por outro ela representa um espaço importante de muitas outras modalidades de comunicação. “Isso tudo é relativamente novo e um tanto experimental. Como no caso de muitas outras invenções, com o tempo vamos descobrir o que precisa ser ajustado e melhorado. Arrisco afirmar que as manifestações de intolerância que se têm visto nas várias modalidades comunicativas viabilizadas pela internet são reflexos de uma época de transformações, descontentamentos e de acirramento das diferenças”, enxerga a pesquisadora.
Tudo isso, no entanto, segundo ela, nos “leva a mais reflexões sobre quem queremos ser como cidadãos e como seres sociais. A própria solidariedade que se mostra nos mesmos espaços onde a linguagem violenta aparece e as ações dentro e fora desses espaços virtuais são razão para algum otimismo”, conclui a linguista.
Sobre a autora
Mércia Regina Santana Flannery é licenciada em Letras, mestre e doutora em Linguística, com especialização em Sociolinguística e Análise da Narrativa Oral. É diretora do Programa de Língua Portuguesa e Cultura Lusófona do Departamento de Estudos Hispânicos e Portugueses da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, Estados Unidos.
Confira trechos do livro
“BASTARDOS DA PUC” NARRATIVAS DE DISCRIMINAÇÃO SOCIAL NO FACEBOOK
A página do Facebook “Bastardos da PUC” foi criada por estudantes da PUC-RJ com o objetivo de divulgar episódios de discriminação enfrentados por estudantes da instituição beneficiados pelo programa social de bolsas de estudo do governo. O título da página faz trocadilho com o apelido dos alunos da universidade, conhecidos como “Filhos da PUC”. Dessa forma, a referência aos “bastardos” da PUC é uma alusão à situação de discriminação que os estudantes bolsistas relatam enfrentar em diversos episódios no cotidiano acadêmico na instituição (…)
O excerto 1 contém a descrição de um estudante que, usando o discurso reportado, comenta um episódio ilustrativo da discriminação dirigida a indivíduos de comunidades de baixa renda. A discriminação consiste na suposição de ilegalidade na obtenção de serviços tais como eletricidade.
Ex. 1: Entrei na Puc em 2008.1 mas em 2010 mudei de curso para administração. Em um curso, não lembro qual, um professor estava explicando porquê do salário mínimo ser considerado tão ruim. Ele fez uma simulação de contas que as pessoas normalmente pagam com seus salários por exemplo aluguel e fatura de eletricidade, uma aluna o interrompeu para dizer que “essas pessoas não pagam eletricidade, que é tudo gato nas favelas”, ninguém a contestou, nem eu que nunca tive gato em casa.
IMIGRANTES NO BRASIL: XENOFOBIA E RACISMO
(…)Nesse capítulo, apresenta-se uma discussão e análise de exemplos de declarações racistas e xenofóbicas, tais como encontradas em sites de notícias online. Trata-se de contribuições em fóruns de notícias, em reposta a artigos sobre o tema. Especificamente, os primeiros exemplos aqui analisados foram recolhidos no site de notícias G1, relativos ao artigo Em dez anos, número de imigrantes aumenta 160%, diz PF (…)
Ex. 1: FS: Esse país virou a casa da mãe Joana, já n chega os problemas internos, agora vem pessoas de fora pra tumultuar mais ainda, se n me engano haitianos, cubanos, sei lá mais oq, já estavam recebendo o tal bolsa, nós brasileiros trabalhamos p sustentar gente de fora, violência aumentando, caos, esse país é uma piada
DISCRIMINAÇÃO SOCIAL E RACIAL: OS ROLEZINHOS
(…)Tratava-se da presença repentina e em massa de um grande número de adolescentes, que combinavam encontros à moda flash mobs em shopping centers locais, marcando sua presença com um modo de vestir-se característico, e ouvindo música de protesto, tais como o funk e o rap. Esses encontros chamaram de imediato a atenção das autoridades e da mídia, que tentavam compreender os rolezinhos, classificando-os ora como protesto e resistência, ora como encontro inconveniente de jovens pobres e desocupados. (…)
(…) O enxerto 1 apresenta algumas dessas caracterizações sobre os rolezinhos e seus participantes. O autor questiona a legitimidade dos encontros ao referenciar espaços públicos frequentemente usados para celebrações de massa no Brasil e tecendo suposições sobre o que os rolezeiros fazem e não fazem.
Ex. 1: B: Vão dar Rolezinho no Sambodromo, Ibirapuera, Interlagos, ta na cara que eles querem so marcar presença impor medo e fazer baderna ..dar um rolezinho com a mina e pagar um sorvete , um cineminha ou pipoca isso eles não fazem ! A cara e a conduta deste povinho faz medo ate em camelos da 25 de março e ponto final.
Live de lançamento do livro “Nós versus eles – discurso discriminatório, preconceito e linguagem agressiva na comunicação digital no Brasil” (Cepe Editora)
Preço do livro: R$ 30 (impresso); R$ 12 (e-book)