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“Fim das Religiões”: sci-fi brasileiro retrata androides como únicos sobreviventes da humanidade

Imortalidade é uma fantasia humana sem amparo na realidade, é a nossa sede de incondicionado em ação, para citar Kant
Por Derley Menezes Alves*
Contém leves spoilers do livro
Desde que li O Homem Invisível de Wells fiquei um pouco cansado de histórias sobre robôs. Não sei se consigo explicar a ligação entre uma coisa e outra, vejamos. O livro de Wells fala sobre um tipo de tecnologia que se tornou relativamente comum na ficção científica, não há mais o maravilhamento que já houve com a invisibilidade, ela não cabe mais como centro de uma trama, apenas como um dado da realidade imaginada por alguma autora. Algo parecido acontece, em certo sentido, com os robôs.
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Muitos temas envolvendo robôs já foram tão explorados que a tecnologia se tornou um lugar comum. Não há mais o maravilhamento de antigamente. Aceitamos bem robôs conscientes, robôs como meros servos dos humanos, robôs que querem nos destruir. Enfim, é preciso muita habilidade para falar de robôs hoje em dia e lidar bem com todas as possibilidades, batidas ou não, à disposição de qualquer escritora. Habilidade e criatividade foi o que encontrei ao ler o livro de um autor brasileiro independente que apresenta uma narrativa muito empolgante e uma boa dose de especulação filosófica, além de uma notável construção de mundo. Falo de O Fim Das Religiões de Luan Maia, publicação independente.
O livro nos mostra um mundo pós-humano no qual temos uma nova espécie dominante: os robôs, que se denominam autoespécie, devido ao modo como assexuado de reprodução. Devido a isto, cada sociedade de robôs desenvolveu um método que reflete a filosofia que guia a sociedade em questão.
Os memoriadores se utilizam do que chamam de memória prima, uma memória humana preservada, a partir da qual o memoriador “nasce”. Este método acaba limitando as possibilidades desse grupo de se multiplicar já que os humanos foram extintos. Temos os simulacionistas que desenvolvem as mentes artificial a partir de um algoritmo e estas crescem numa simulação na qual vão aprendendo coisas até “nascer” em um corpo. Temos também um indivíduo que é um país, chamado Ômega, um memoriador originalmente que conseguiu desenvolver um sistema de assimilação, ou seja, nanorrobôs entram em corpos de outros robôs e os absorvem para a superconsciência que é Ômega.
Quanto às sociedades da autoespécie, Maia escolheu vários exemplos de ideais humanos de sociedade como modelo. Quando estava lendo e ia percebendo as coisas, pensei: “o cara botou no livro dele todos os debates políticos da internet”. Os memoriadores vivem uma sociedade liberal perfeita: são progressistas, sexualmente liberados, com relacionamentos monogâmicos e não monogâmicos e toda diversidade que mentes humanas podem ser.
Os simulacionistas são nietzschianos e sua sociedade encarna valores derivados da filosofia de Nietzsche: enaltecimento do indivíduo, superação de si mesmo, valorização da força e da conquista como valor, pois é uma forma da vontade de potência. O nome do império é Belalux e quem o conduz é a Imperatriz Margaux. Esta sociedade é expansionista e tem como objetivo dominar o planeta e além dele.
Ômega é uma representação da ameaça vermelha, um modelo de sociedade comunista. Uma sociedade comunista que supostamente anula a individualidade e na qual só há um tipo de pensamento. Como saber quem é Ômega? Pelos olhos, todos os assimilados apresentam olhos com um brilho vermelho. Devido ao procedimento de assimilação, ele é chamado de inimigo da espécie.
Mas não é só isso. Existem mais três grupos: gadsdenianos, ou seja, robôs anarcocapitalistas, não alinhados com qualquer ideia de estado e os Estranhos, robôs de acabamento inferior fora das sociedades existentes que vivem nas fronteiras em busca de peças para consertos e melhoramentos. Temos também os membros da anti-cidade, que aparecem no final do livro, com corpos que exploram outras formas que não sejam apenas o padrão humano para corpo.
A trama gira em torno de Aleph, um arqueólogo e memoriador que descobre, em uma de suas explorações, uma humana escondida em um túmulo subterrâneo. O nome dela é Saturno e ela diz que vem da cidade subterrânea de Canaã. Saturno se torna amiga de Aleph, acaba conhecendo os amigos dele e o estilo de vida de Vivet. Embora incumbida de uma missão religiosa, Saturno se abre para aprender e entender como os vivetianos vivem Ela não é a única humana entretanto.
Os outros humanos acabam ficando amigos dos estranhos, que vivem à margem das sociedades maiores. Dentre estes robôs, destacamos Olhinho, um robota, termo que designa robôs sem individualidades, meros servos que existiam no tempo dos humanos e ainda existem. Ele existe desde o tempo em que ainda havia humanos e é peça fundamental da trama. Os outros humanos, Lucas e Pedro peregrinam com ele e conhecem o mundo pela perspectiva dos estranhos. Aprendem com estes a odiar todos os robôs das sociedades maiores. Esses pontos de entrada tão diversos nas sociedades da autoespécie, será importante para o amadurecimento dos humanos.
Em meio aos conflitos entre Vivet e Belalux, temos as relações entre Ieyasu, membro da guarda vivetiana e a Rainha Margaux, a Imperatriz belaluxeana. Ômega espiona a todos e nunca fica claro quais seus objetivos. Este núcleo é pura ação e espionagem, com traições, heroísmo e trama política.
O grande tema deste primeiro livro é a religião. Isto fica claro para nós quando aprendemos um pouco sobre como o mundo chegou ao estado atual, com humanos extintos e autoespécie dominando tudo. É aqui que Maia apresenta o núcleo de suas reflexões. Imagino que são questões bastante importantes para o autor, trabalhadas na forma da literatura. Maia imagina um futuro da humanidade com o desenvolvimento científico e social num grau tal que, aos poucos, as religiões vão perdendo força. Como isso acontece?
O sucesso científico quanto à preservação da vida eliminou a mortalidade humana, embora não tenha produzido a imortalidade. Os humanos, desde que nada grave aconteça com eles, não morrem. Sendo a religião e a filosofia respostas para o grande problema da vida, que é o fato de que morreremos um dia, resolvido este problema, religião e filosofia (pelo menos a filosofia que lida com essas coisas) desapareceriam.
Maia não menciona a filosofia, eu estou colocando-a aqui. Tire a mortalidade da equação e as religiões começam a enfraquecer. O problema (e aqui me permito imaginar Buda com um sorriso discreto lendo o livro de Maia) é que por mais avanços científicos, a matéria seque sujeita a se desagregar, segue finita, de micro-organismos a estrelas, tudo nasce, existe e se acaba. A morte é um pedaço do problema maior, o da impermanência. Humanos livres da morte natural não estão livres da morte não natural. O resultado disso, eliminada a crença em qualquer forma de transcendência, é o medo do fim. Um medo paralisante.
A solução para este problema é buscar a coisa mais próxima da transcendência que resta depois que a transcendência se perde: uma existência virtual. Os avanços neste campo possibilitaram a criação de espaços virtuais onde os humanos poderiam viver vidas paradisíacas na eternidade que sobrou depois que as religiões perderam seu poder. A extinção física da humanidade foi uma escolha, uma fuga para o virtual como forma de conseguir a eternidade. São muitas as discussões que podem ser levantadas aqui.
O segundo livro da série mostrará duas posturas antagônicas fundamentais quanto a isto: acreditar na existência digital humana ou negar que isto seja uma existência de verdade.
Pessoalmente, me parece que a imortalidade potencial física e a imortalidade num servidor são apenas formas inteligentes de adiar o fim, um novo limite imaginado pelo autor na luta da humanidade contra a finitude. Não me entendam mal, não quero viver num tempo sem avanços médicos, na verdade queria o máximo possível de avanços médicos. Entretanto, é inegável que, no universo, tudo começa e termina, até mesmo o universo. Imortalidade é uma fantasia humana sem amparo na realidade, é a nossa sede de incondicionado em ação, para citar Kant.
Todas as medidas de preservação dos servidores não os tornam eternos. Mesmo nesses paraísos artificiais e cibernéticos, a finitude está presente. Que religião e filosofia são respostas para nos ajudar a lidar com a finitude, é certo. Que não haveria religião (será que haveria algum tipo de filosofia? Provavelmente sim) também me parece uma suposição justa. Para mim o problema é imaginar uma imortalidade material que seja a resposta para eliminar todas as respostas.
Não sei como termina a reflexão de Maia, estou lendo o segundo volume completamente preso pela narrativa. Mas, eu vejo os humanos do livro como iludidos, como certos devas do budismo, que renascem em paraísos de duração muito prolongada porém finitos também. Uma hora a brincadeira da imortalidade acaba.
Dito isso, um excelente trabalho que merece uma publicação numa editora grande dedicada ao gênero.
Originalmente publicado no blog Resenhas Scifi
* Derley Menezes Alves é mestre em filosofia, doutor em ciências das religiões, autor do livro “Nietzsche e o Budismo: entre a imanência e a transcendência”. Criador do perfil @resenhascifi no Instagram.
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