“Salmo para um robô peregrino”: confira resenha de livro de ficção científica

 “Salmo para um robô peregrino”: confira resenha de livro de ficção científica

(…) Falarei aqui de uma pequena obra de ficção científica que nos apresenta preciosas reflexões sobre a vida e a busca pelo sentido, o “Salmo para um robô peregrino”, de Becky Chambers, lançado no Brasil pela Editora Morro Branco em preciosa tradução de Fábio Fernandes

Por Derley Menezes Alves*

A questão do sentido sempre foi fundamental para o ser humano. Podemos dizer que a história humana é uma busca por sentido. Em muitos casos uma busca desesperada. Desespero que, tomado literalmente, significa ausência de esperança, entendida como esperar algo além da vida. Neste caso, vive-se sem esperar nada além do que a imanência nos oferece, sem aspiração a algum tipo de transcendência.  O sentido da vida vida seria dado na ausência de sentido, esta página em branco a se preencher enquanto se está vivo tendo a morte como ponto final.

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Por outro lado, há os que buscam o sentido em algum tipo de além, entendido aqui como existência situada em outra esfera que não a da materialidade ou da imanência. Algumas posturas não podem ser colocadas em nenhum desses espectros exatamente, elas escorregam pelas frestas das categorizações.

O budismo, apesar de ser uma religião e ter uma transcendência como objetivo, se enquadra nesse grupo, afinal, não há sentido no samsara, além da repetição cíclica das coisas. Ao decidir buscar a libertação destes ciclos, damos um sentido às nossas vidas. Nada nos obriga a isso. Pelo menos é assim que eu entendo o budismo.

Este não é, entretanto, um texto sobre budismo, na verdade falarei aqui de uma pequena obra de ficção científica que nos apresenta preciosas reflexões sobre a vida e a busca pelo sentido, o “Salmo para um robô peregrino”, de Becky Chambers, lançado no Brasil pela Editora Morro Branco em preciosa tradução de Fábio Fernandes. Trago o budismo para ajudar a falar desse livro pois a autora imagina uma sociedade que me parece claramente inspirada na cultura japonesa.

Temos uma lua (Panga) com uma única cidade que parece ser uma utopia resultante de uma distopia que se resolveu bem. Existe uma religião politeísta que possui monastérios e num desses monastérios temos um personagem não-binárie, chamade Irme Dex (Sibling Dex no original).

O livro é a busca dessa pessoa por sentido e essa busca se dá pela experiência muito corriqueira de sentir falta do chirriar de grilos na cidade, uma busca por um mundo mais natural, orgânico e misterioso em comparação com o mundo urbano e seus confortos e previsibilidades.

Isto leva Dex a mudar seu status monástico para o serviço do chá, ou seja, adotar a condição de monge errante que oferece chá e conversa para as pessoas a serviço de Allalae, deus dos pequenos confortos. Afinal, quem não precisa de uma pausa para uma xícara de chá e um par de ouvidos afetuosos uma vez ou outra?

Com tudo pronto, Dex parte como monge de chá pela lua em busca dos grilos inexistentes na cidade. É interessante mencionar que sua primeira cliente deu errado, assim como o Buda fracassou como professor, quando, recém iluminado, encontra uma pessoa em seu caminho e fala sobre o que havia experimentado. Elu decidira ser autodidata, parecia tudo tão fácil não é mesmo? Uma caneca de chá, ouvidos atenciosos e amorosos, o que poderia dar errado? Mas deu errado.

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Salmo Para Um Robô Peregrino

Dex não foi capaz de consolar uma mulher que havia perdido o gato, último resquício de uma casamento acabado. Dex sem o grilo, cliente sem o gato. Diante do fracasso, elu resolveu dedicar-se ao estudo necessário. Com o tempo, tornara-se reconhecide como mestre de seu ofício. Os grilos foram esquecidos por um tempo, o símbolo de um anseio maior, pois a realização no serviço do chá havia resolvido o problema do sentido.

Mas a busca pelo sentido é bicho resistente, não morre tão fácil. Logo o vazio e a falta de sentido se tornam problema de novo e a busca pelo grilo do sentido reacende. Porém, ao pesquisar, dá-se conta de que se há grilos em Panga, estão na região do planeta deixada intocada. Parte da lua é proibida para os humanos, só vida selvagem e robôs podem viver lá e os últimos grilos, se ainda existem, estão numa região onda há um velho mosteiro abandonado nessa parte da lua. Quase que inconscientemente, Dex toma o rumo desse novo desconhecido.

Alguns quilômetros floresta a dentro e Dex encontra seu novo mestre. Se antes o mestre era todo mundo que precisava de uma caneca de chá e ouvidos atenciosos, agora o mestre é um robô chamado Esplêndido Chapéu de Musgo Sarapintado ou apenas Chapéu de Musgo para os humanos que tem essa mania de encurtar nomes. Aqui cabe uma observação: todos os nomes de robôs lembram nomes de  mestres zen como Montanha da Raiz-Amarela Amarga ou Fonte-Sul da Montanha. As interações entre Dex e Chapéu de Musgo confirmam o link com o zen. A fascinação e olhar fresco com que o robô vê a humanidade em Dex e nas suas coisas é digna de uma história zen.

Chapéu de Musgo explica coisas sobre os robôs, como eles vivem e o que fazem. Basicamente, depois do acordo com os humanos, eles foram para as florestas para observar o mundo orgânico, aquela realidade que mais se afasta do que esperaríamos de robôs, amiúde caracterizados como seres puramente lógicos. Os robôs de Becky Chambers são máquinas com mentes que percebem a realidade de modo fluido, orgânico. Dex usa tais palavras para se referir a Chapéu de Musgo, inclusive.

Cada robô é um indivíduo com áreas de interesse e se dedicam intensamente ao que gostam, alguns querem observar pássaros, outros peixes, outros estalagmites crescendo em uma caverna. Chapéu de Musgo não tem um foco, tudo o fascina, praticamente um robô renascentista. Além disso e por causa disso, ele tem uma missão: depois de tanto tempo afastados, os robôs decidiram perguntar aos humanos do que eles precisam. E para obter essa resposta ele pretende andar por toda a lua perguntando a um grande número de pessoas e coletando respostas.

Ao confrontar sua missão com a aventura que Dex escolheu para si, o robô propõe uma troca: ele ajuda Dex e Dex o leva pelos caminhos das vilas explicando o mundo humano atual para que o robô possa entender melhor e executar bem sua missão.

Muito perto do objetivo, o caminho acaba e Dex fica diante de um não-caminho a se percorrer rumo ao grande objetivo. Este é o momento da grande crise, da noite escura da alma do personagem. Aqui elu reconhece ter tudo ao longo da vida e ainda assim guardar dentro de si esse vazio que o moveu rumo a todas as mudanças de rumo na própria vida. Esse tema é retomado no momento final do texto, quando já no eremitério abandonado contempla a realização de seu objetivo junto com Chapéu de Musgo.

É curioso que o debate começa com a questão da religião seguida por Dex. Trata-se de uma religião baseada na ideia de propósito, ou seja “cada pessoa encontrando a melhor maneira de contribuir para o todo”. tal propósito é humano, não se origina dos deuses e nem é uma prisão determinista, é possível escolher outro propósito.

Chapéu de Musgo responde apontando um paradoxo na existência humana, uma vez que por um lado, temos os humanos reconhecendo o surgimento da consciência nos robôs e ficando felizes pelo consequência desse fenômeno, a saber, os robôs percebem o propósito para o qual foram feitos e programados e decidem nao querer este propósito, eles vão além, transcendem o propósito e os humanos se orgulham disso.

Por outro lado, os humanos se angustiam por não ter e ansiar por um propósito. O ponto de Chapéu de Musgo é que não há propósito, nem na vida animal, nem na vida robótica. Não importa o que a pessoa decida fazer, nada precisa de justificativa.

Mas Irme Dex encarna a sede de inconcdicionado que todos temos dentro de nós (de acordo com Kant, pelo menos). Elu afirma que o mero existir animal não é suficiente, afinal, a necessidade de algo mais existe nas pessoas como ele. Somos mais do que nossos componentes básicos, precisamos de algo além da mera satisfação de nossas necessidades animais.

Chapéu de Musgo afirma em resposta: Eu também tenho desejos e ambições, Irme Dex. Mas, se eu não realizar nenhum deles, tudo bem. Essa resposta desloca a questão para o modo de ver o mundo e não para ter ou não ter objetivos a se realizar ou realizados, para o robô, podemos dizer que o propósito é secundário diante do mero caminhar, é preciso agir sem a expectativa de alcançar algo.

Chapéu de Musgo ignora completamente a transcendência como propósito ou objetivo e enfatiza o agora, o enraizamento radical na imanência sem expectativas quanto ao antes ou depois. Isto precisamente angustia Irme Dex, que vê o agora como pouco, pois a impermanência corrói o agora sempre.

No fim das contas, Dex tem medo da morte e dainte desse medo, busca um sentido. Nada mais humano. Ao mesmo tempo, Chapéu de Musgo oferece uma perspectiva  digna do Buda ao enfatizar viver o agora em desapego. Este é o impasse das duas visões de mundo.

A grande apoteose de “Salmo para um robô peregrino” é comum. Chapéu de Musgo oferece a Dex o que Dex oferece às pessoas, ou seja, chá e ouvidos afetuosos. Há uma breve troca e silêncio. No silêncio, ouvimos grilos cantando.

Originalmente publicado no blog Resenhas Scifi

* Derley Menezes Alves é mestre em filosofia, doutor em ciências das religiões, autor do livro “Nietzsche e o Budismo: entre a imanência e a transcendência”. Criador do perfil @resenhascifi no Instagram.

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