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“A ficção é um dos aspectos mais importantes na existência humana”
“A ficção é um dos aspectos mais importantes na existência humana. E, quando eu digo isso, não me refiro especialmente à literatura de ficção científica, ficção fantástica, filmes, quadrinhos, não. Eu falo da ficção no sentido mais amplo”.
As palavras são do escritor, filósofo e pesquisador Alexey Dodsworth, em participação no programa InterD – música e conhecimento, apresentado pelo músico e jornalista AD Luna e veiculado pela Universitária FM do Recife.
Dodsworth falou sobre a HQ brasileira de ficção científica “Saros 136”. Na ocasião, ele também abordou a relação entre ciência e imaginação .
Natural de Salvador e atualmente morando em São Paulo, Alexey Dodsworth é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e pela Universidade Ca’ Foscari de Veneza, é autor e roteirista de livros e HQs de ficção científica e fantasia. Além de “Saros 136”, é autor de “Dezoito de Escorpião” e “O Esplendor”, ambos vencedores do Prêmio Argos na categoria “melhor romance de ficção científica”.
Cursa atualmente outra pós-graduação em ensino de Astronomia pelo Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo, sob orientação do astrofísico Amâncio Friaça.
Abaixo, leia e ouça trecho em que ele trata sobre a influência da ficção em nossas vidas.
INTERD: Qual a importância da ficção para nós humanos, de que forma ela mexe com nossas vidas nos sentidos positivo e negativo?
ALEXEY: Eu diria que a ficção é um dos aspectos mais importantes na existência humana. E, quando eu digo isso, não me refiro especialmente à literatura de ficção científica, ficção fantástica, filmes, quadrinhos, não. Eu falo da ficção no sentido mais amplo.
Para explicar melhor, eu vou evocar aqui algo que o Yuval Harari fala sempre, que é o seguinte. Ele não é o primeiro a falar isso, mas eu gosto da maneira em que ele fala porque é muito clara, é muito pedagógica.
É assim: todos os animais, sejam eles humanos ou não-humanos, vivem em dois mundos. Um deles é o mundo objetivo; o mundo objetivo é o mundo das coisas, que existem independentemente da gente e dos nossos desejos, dos nossos quereres.
Então, no mundo objetivo, existe calor, existe frio, existem montanhas, existem rios, existem lagos, chuvas, calor. Ou seja, são coisas que existem e a gente tem que lidar com elas. Elas são fatos. Uma montanha existe independente de eu gostar disso ou não, eu tenho que lidar com ela. Um deserto existe, independente de eu achar isso bom ou não, e eu tenho que lidar com a existência de um deserto.
Todos os animais têm que lidar com questões objetivas. Dentro do universo das coisas objetivas, a gente tem a fome, a sede; são coisas que todos os animais têm que lidar.
Só que, além do mundo objetivo, nós, animais, humanos e não-humanos, vivemos também num mundo subjetivo, que é um mundo de sentimentos. O mundo subjetivo é o mundo do medo, o mundo do amor, o mundo da saudade.
Qualquer pessoa que tenha um cachorro, gato, ave, coelho, sabe muito bem que os animais, assim como nós, tem sentimentos. Eles têm saudade, eles têm raiva, eles têm ciúmes. A diferença é uma diferença de autoconsciência, uma diferença intelectual, mas, praticamente, os animais não-humanos também vivem no mundo subjetivo.
Ora, se nós vivemos em um mundo objetivo e subjetivo tanto quanto qualquer outro animal, o que nos diferencia deles? A diferença é que, até onde se sabe, o ser humano é o único que existe dentro de um mundo intersubjetivo.
E o que é um mundo intersubjetivo? É um mundo de coisas que não existem a priori, elas foram criadas por nós, ou seja, elas foram inventadas, elas são ficções.
Mas são ficções que assumiram um valor de verdade tão grande que são mais poderosas, muitas vezes, do que o mundo objetivo, do que o mundo das coisas que existem a priori.
Vou dar um exemplo de como o mundo intersubjetivo, que é o mundo da ficção, é o mundo das coisas inventadas, pode ser mais poderoso do que o mundo objetivo. Vamos fazer um exercício imaginativo.
Imagine que não existisse fronteira Estados Unidos-México, a fronteira que foi criada por nós. Você conseguiria passar por aquela fronteira, que, na verdade, só existe porque a gente criou, tranquilamente andando.
Não existe nenhum problema no mundo objetivo. Não existe nenhum obstáculo objetivo que te impeça de atravessar a fronteira Estados Unidos-México antes da gente inventar essa fronteira. A gente tem o que? A gente tem um grande campo que você tem que atravessar, pode atravessar a pé.
Agora, tente atravessar a fronteira criada. Ou seja, a fronteira política que a gente inventou, não a fronteira natural, a fronteira política. Você só vai conseguir atravessar a fronteira política Estados Unidos-México se você estiver munido de um passaporte válido que é, convenhamos, outra ficção, é outra invenção. Você precisa de uma ficção para atravessar outra ficção.
Ou, por exemplo, quem tem dupla cidadania sabe muito bem. Se eu vou para a Europa com o passaporte brasileiro, eu vou ser tratado de uma maneira. Vão perguntar quanto tempo eu vou ficar, vão perguntar o que eu vou fazer lá, quanto dinheiro eu tenho, etc.
Se eu for com o passaporte italiano, ninguém vai nem olhar a minha cara. Pode entrar, a casa é sua. Mas eu sou a mesma pessoa, objetivamente. O que diferencia? O que muda? Muda o fato de que uma ficção vai me dar direitos que a outra ficção não dá.
Quer dizer, nós, humanos, estamos o tempo inteiro criando ficção, o tempo todo a gente está criando ficção.
Na política, por exemplo, quase sempre vence não quem tem as melhores ideias e quem defende as causas mais corretas, mas quem tem a melhor narrativa. Isso é mais evidente em algumas culturas do que em outras.
Uma coisa que eu observo muito claramente é que, em países latinoamericanos, vence muito mais a retórica, vence muito mais a narrativa, principalmente se ela for uma narrativa sustentada por um macho muito forte, que fala muito alto e com muita veemência, do que necessariamente o indivíduo que tem a ideia mais racional.
Quer dizer, a gente está o tempo inteiro se deixando levar por ficções. E isso não é um problema, isso é a natureza humana. Acho que o problema é quando a gente não tem consciência de que estamos nos deixando levar por isso, e quando a gente sustenta que as nossas ficções têm valor de verdade.
Então veja, por exemplo, a questão das religiões. As religiões não existem por si, elas existem porque a gente as inventou. E não é um problema que as religiões existam, não é um problema.
O problema é quando eu acho que a minha história, quando eu pego a minha história como sendo a verdade e quando eu digo que ela tem que ser a história única. Inclusive, muita gente entende errado Nietzsche.
Por exemplo, Nietzsche criticava as religiões, principalmente o cristianismo, mas ele tem algumas passagens muito interessantes, em que ele diz, por exemplo, que ele não teria nada contra religiões, o cristianismo especificamente, se elas não tivessem tanto ódio da carne, do mundo material.
E ele também, em outras passagens da sua vasta obra, diz que não adianta a gente querer um mundo sem religiões porque nós somos animais que ritualizam, nós somos animais que ficcionam. A gente tem uma necessidade de ritual. Agora, claro que a gente pode encarar esse universo das religiões… a gente poderia encarar com mais maturidade.
A gente poderia encarar e entender o fato de que, se eu gosto especificamente de uma religião, se eu aprecio uma religião, se eu sigo uma religião, isso não significa necessariamente que todo mundo tem que seguir.
Quer dizer, é o erro de tentar impor um mito… ou melhor dizendo, porque a pessoa que acredita em uma religião vai se sentir ofendida se eu chamar de mito. O grande problema é se eu tento impor a minha crença – de uma coisa que existe porque os humanos inventaram – para todos os outros.
Então é isso, eu diria que ficção é um dos aspectos mais importantes da vida humana, justamente porque nós nos norteamos por ela praticamente o tempo inteiro.
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