Se alguém ainda tem dúvidas sobre os benefícios da vacinação infantil para COVID-19, basta checar os dados do mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, que mostram que COVID-19 foi responsável por 5.310 casos de síndrome respiratória aguda grave e 135 mortes de crianças menores de 5 anos no Brasil em 2023
Por Natalia Pasternak* e Carlos Orsi**
A recente consulta encaminhada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) a seus filiados sobre a inclusão da vacina infantil contra COVID-19 no calendário do Programa Nacional de Imunizações (PNI) – o que, para efeitos práticos, dá à vacinação para COVID-19 o mesmo status das vacinas contra pólio, sarampo, etc. – causou consternação entre os médicos que realmente entendem de vacinação e de saúde infantil: as Sociedades Brasileiras de Infectologia (SBI), de Imunizações (SBIm) e de Pediatria (SBP) emitiram notas críticas à iniciativa do CFM.
A causa da consternação está bem resumida em declaração dada pela infectologista Rosana Richtmann, diretora do Comitê de Imunizações da SBI, ao jornal O Globo: “A metodologia da pesquisa proposta pelo CFM é lamentável e é feita para induzir a conclusões totalmente equivocadas”. Trata-se de uma análise certeira. As perguntas são construídas (com o uso, por exemplo, de palavras como “OBRIGATÓRIA” e “DIREITO” assim, AOS GRITOS, EM MAIÚSCULAS) de forma a sugerir que há algo de excepcional e sinistro na inclusão da vacina contra COVID-19 no PNI, quando ela apenas está sendo equiparada às demais vacinações infantis rotineiras.
Já discutimos, em artigos anteriores, tanto o conceito de enquadramento (o modo como uma história é contada, ou uma questão é construída, afeta a interpretação do que é dito e influencia a resposta dada) quanto a manobra retórica de “JAQing off”, o truque de esconder preconceitos sob a máscara de “perguntas inocentes”. A enquete – que, como veremos, não faz jus ao nome de “pesquisa” – tem um enquadramento negacionista, antivacinas, e representa um exercício claro de JAQing off.
Enquete ou pesquisa?
Um aspecto da enquete que vem sendo menos discutido do que a retórica lamentável é sua absoluta inutilidade como instrumento para atingir o objetivo expresso e declarado pelo CFM, “entender a percepção dos médicos brasileiros”. Acreditar que um questionário disponibilizado por formulário online é capaz de produzir um retrato representativo do pensamento da categoria sugere uma espantosa falta de intimidade com o mais básico da metodologia das pesquisas de opinião.
Desde que se tornou possível, décadas atrás, construir páginas web interativas – o que deu início à moda de sites criarem enquetes para seus leitores – que se fazem alertas para a falta de confiabilidade dos resultados e para o caráter estritamente recreativo (não científico) dessas iniciativas, principalmente quando dizem respeito a temas polêmicos.
Órgãos de imprensa sérios logo abandonaram a prática ou a restringiram a temas “leves” (quem deve ser o técnico da Seleção, quem deve ficar com a mocinha no final da novela), e muitos passaram a ter o cuidado de chamar essas consultas de “enquetes”, evitando a palavra mais séria “pesquisa”.
E o que torna questionários “pendurados” em páginas da internet ou distribuídos por e-mail tão pouco confiáveis para auferir a opinião pública, principalmente sobre temas polêmicos? O fato de a amostra ser autosselecionada.
No caso da enquete do CFM, as respostas virão dos médicos que aceitarem se dar ao trabalho de preencher os formulários necessários e depois responder às questões propriamente ditas. Quem vai aceitar gastar tempo com isso? Em geral, quem já tem uma opinião forte a respeito do assunto e faz questão de marcar posição, mesmo que se trate de uma opinião minoritária. E se a maioria dos respondentes vier dessa minoria de opinião forte, o resultado não vai refletir “a percepção dos médicos brasileiros”, mas apenas a dos médicos investidos o suficiente no assunto para aturar a enquete.
É possível construir uma interpretação pouco caridosa do episódio: basta supor que o CFM está exatamente contando que só uma minoria radical antivaxxer vai se dar ao trabalho de responder à enquete, e espera criar um fato midiático estrondoso ao apresentar essa minoria como a voz dos médicos brasileiros. Mas, citando a Navalha Heinlein, não vamos pressupor malícia onde basta imaginar incompetência.
Estratégias
Existem dois caminhos possíveis para que a comunidade médica mais ampla reaja à enquete do CFM. O primeiro, que parece ter sido a escolha das sociedades médicas, é expor a metodologia inadequada e o viés das perguntas, que tentam induzir o respondente a indignar-se contra uma suposta OBRIGATORIEDADE das vacinas, como se obrigatório fosse sinônimo de coercitivo. Os médicos filiados ao CFM, afinal, não são todos especialistas em vacinação e saúde pública, e não têm obrigação de conhecer o contexto técnico-jurídico por trás da expressão “vacina infantil obrigatória”.
O CFM teria feito melhor se tivesse perguntado aos médicos o que entendem por obrigatório, se conhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e se compreendem que, ao ver-se incluído no PNI, o imunizante passa a integrar o calendário vacinal oficial do país, e portanto, torna-se um direito da criança e do adolescente. É o respeito a este direito que é obrigatório. É neste sentido que qualquer vacina do PNI torna-se obrigatória. As vacinas pediátricas de COVID-19 tornaram-se, portanto, tão obrigatórias quanto as de sarampo e de pólio. E da mesma maneira que agentes de saúde não invadem as casas das pessoas vacinando crianças para sarampo ou pólio, não o farão para COVID-19.
A outra reação possível dos médicos indignados com a enquete seria explorar a fraqueza metodológica da consulta, organizando uma resposta em massa favorável à obrigatoriedade da vacinação infantil para COVID-19. Para isso seria necessária uma coordenação entre as sociedades médicas, e a participação ativa de todos os seus membros.
Em geral, a primeira reação a uma enquete sem sentido é ignorá-la. Mas há ocasiões em que fazer o feitiço voltar-se contra o feiticeiro pode ser produtivo. Foi esta a aposta da ONG britânica Good Thinking Society, quando aproveitou a oportunidade de uma consulta publica sobre a validade da homeopatia na cidade de Liverpool. Normalmente, somente os defensores da homeopatia perderiam tempo respondendo à enquete.
A ONG procurou ativamente médicos, cientistas e, nas palavras do seu diretor Michael Marshall, “todo cidadão adepto do pensamento racional”, e pediu que dedicassem alguns minutos para responder à consulta. Com isso, conseguiu contrabalançar o lobby dos homeopatas, e a autoridade de saúde de Liverpool encerrou o financiamento de homeopatia. Foi o primeiro passo para que a homeopatia fosse definitivamente retirada do sistema publico de saúde do Reino Unido. Marshall conta a história na Revista Questão de Ciência.
Seja qual for o caminho escolhido, o silêncio não pode ser uma opção viável. A resposta do CFM às manifestações das sociedades médicas foi a caricatura da emenda pior do que o soneto. A alegação de que é preciso conhecer a opinião dos médicos, pois há muitas dúvidas a respeito do imunizante para COVID-19, pode até ser legítima, mas se fosse este o caso, as perguntas teriam de ser melhor – muito melhor – formuladas, e algum esforço real teria de ser feito para garantir que uma amostra representativa da categoria se desse ao trabalho de responder, não apenas uma minoria autosselecionada.
Reais questões
O CFM poderia ter perguntado se os médicos têm dúvidas sobre eficácia e segurança, se têm dúvidas sobre o que significa “vacinação obrigatória”, se estão recebendo muitas dúvidas de pacientes. Esta seria uma enquete minimamente útil, que permitiria ao conselho tomar providências como disponibilizar documentos sobre eficácia e segurança, dicas de como explicar estes dados em consultório, etc.
Na resposta do CFM há uma alegação que, ao leitor desavisado, sugere a necessidade de conduzir uma nova enquete, agora entre os dirigentes do conselho, para entender quais são as dúvidas deles sobre bulas de medicamentos e vacinas. O CFM alega que um eventual questionamento dos médicos sobre a obrigatoriedade das vacinas pediátricas para COVID-19 justifica-se pelo fato de a bula de uma delas (Pfizer) trazer o aviso “venda sob prescrição médica”. Tanto a vacina atenuada de pólio, a gotinha, quanto a tríplice viral (caxumba, sarampo e rubéola), ambas parte do PNI e tão “obrigatórias” quanto a da COVID-19, também trazem na bula a observação “uso sob prescrição médica”.
Em todos esses casos, “uso sob prescrição médica” quer dizer apenas que, se as vacinas forem vendidas em clínicas privadas, precisam de prescrição. Quando a vacina passa a integrar o calendário do PNI, não há necessidade de prescrição, e a vacina é ofertada gratuitamente no SUS.
Benefícios da vacinação infantil para COVID-19
Se alguém ainda tem dúvidas sobre os benefícios da vacinação infantil para COVID-19, basta checar os dados do mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, que mostram que COVID-19 foi responsável por 5.310 casos de síndrome respiratória aguda grave e 135 mortes de crianças menores de 5 anos no Brasil em 2023.
O mais recente boletim de monitoramento de Eventos Supostamente Atribuíveis à Vacinação e à Imunização (ESAVI) mostra que, entre 2021 e 2022, os efeitos colaterais observados em mais de 40 milhões de doses aplicadas contra COVID-19 em crianças e adolescentes não foram diferentes dos observados em relação às demais vacinas infantis, como dor no local da aplicação, dor de cabeça e febre.
Dados da Academia de Pediatria dos EUA (AAP) mostram que duas doses de vacina para COVID-19 foram suficientes para prevenir doença grave e hospitalização em crianças de 5-17 anos. Também mostram que menores de 18 anos têm mais risco de desenvolver diabetes após infecção por COVID-19, mas a vacinação diminui este risco.
Ainda, que reações pós-vacina como miocardite são muito raras, e geralmente se resolvem rapidamente, mas que o risco de desenvolver miocardite após contrair COVID-19 é alto. E, finalmente, corroboram os dados brasileiros de que a maioria das reações observadas em crianças de seis meses a cinco anos após a vacinação não foi diferente das demais vacinas infantis, como reações de dor no local, febre, vermelhidão e urticária.
*Natalia Pasternak é microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência, professora adjunta em Columbia University, professora convidada da FGV-SP. É membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares) e “Que Bobagem!” (Editora Contexto).
**Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP), “Negacionismo” (Editora de Cultura) e coautor de “Pura Picaretagem” (Leya), “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares) e “Que Bobagem!” (Editora Contexto)
Originalmente publicado na Revista Questão de Ciência.
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