Por Dimas Covas*
Diretor do Instituto Butantan
Os olhos de toda a comunidade científica ao redor do planeta se voltaram para o continente asiático no dia 31 de dezembro de 2019, quando o primeiro caso do novo coronavírus no mundo foi reportado na província de Hubei, na China. Naquele momento, nós, do Instituto Butantan, já nos preparávamos para uma possível pandemia — mas não a de Sars-CoV-2, e sim de outro vírus da Influenza, o H7N9.
Naquele último dia do ano passado, notamos que a situação poderia ser grave. Qualquer profissional que atua na área da saúde e tem conhecimentos sobre o comportamento de vírus já percebia os riscos da Covid-19. Quase dois meses depois foi confirmado o primeiro caso de coronavírus no Brasil. Um homem, de 61 anos, recém-chegado da Itália, estava internado na capital paulista.
Aos poucos, milhares de novos casos foram se confirmando: o vírus, como já esperávamos àquela altura, causaria um impacto preocupante e sem precedentes na história da humanidade. E continua causando, com mais de 1 milhão de mortes.
Com 120 anos de existência e como um dos maiores centros de pesquisa e desenvolvimento de imunobiológicos do mundo, o Instituto Butantan despontou como uma referência no combate a essa nova doença.
A expertise dos nossos pesquisadores, reconhecida internacionalmente, e a nossa experiência e capacidade produtiva de imunizantes se tornaram ativos fundamentais para o enfrentamento da epidemia. Utilizamos os mais avançados recursos tecnológicos e temos capacidade de adaptação para a produção de novas vacinas. Com todo esse arsenal em mãos, não tínhamos como nos esquivar da responsabilidade.
Como uma instituição que está a serviço da vida, precisávamos estar envolvidos no desenvolvimento de uma vacina apta a proteger a população. O desafio era grande, mas tínhamos claro que o Butantan teria de fazer parte dessa história.
Montamos um comitê de gerenciamento de crise com uma comissão interdisciplinar para definir os papéis e as responsabilidades de cada equipe. Começamos então um trabalho que não parou mais. Nosso exército, que estava apontado para um possível risco de uma pandemia de H7N9, encontrava ali mais uma batalha a ser vencida.
O planejamento de combate ao H7N9, que já incluía estudos, testes, análises clínicas e até a produção de lotes experimentais, serviu de norte para as primeiras ações da instituição no enfrentamento do novo coronavírus.
Vivíamos um novo momento, diante do Sars-CoV-2 e seu potencial de infecção e disseminação alto. Minuto após minuto a notícia era de novas contaminações e mortes ao redor do mundo. O vírus estava nos desafiando, e nós, do Instituto Butantan, buscamos nos aprofundar e entender quem era o inimigo invisível.
Ainda em 2019, por outras motivações clínicas e comerciais, havíamos conhecido de perto o trabalho desenvolvido pela Sinovac Life Science, um gigante farmacêutico chinês. Sabíamos que a empresa dispunha de tecnologia de ponta para a produção de imunizantes internacionalmente. Iniciamos novas conversas e firmamos acordo para o início dos ensaios clínicos de uma vacina para Covid-19.
Em tempo recorde foram concluídas as fases I e II dos estudos em milhares de voluntários na China. Antes, o modelo experimental aplicado em macacos havia apresentado resultados expressivos em termos de resposta imune contra as proteínas do vírus.
Com a parceria selada, começamos então, em julho deste ano, os estudos clínicos de fase III no Brasil. Hoje, são 13 000 voluntários, profissionais da saúde e que atuam na linha de frente no combate ao coronavírus. Selecionamos quinze centros de pesquisa para nos auxiliar no acompanhamento de todos os voluntários distribuídos por todo o Brasil.
Até o momento mais de 6 mil voluntários já receberam doses da vacina, considerada uma das mais promissoras pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A expectativa é que até a semana que vem, 15 de outubro, tenhamos todo o contingente de voluntários imunizado.
Ainda na China, mais de 50 mil voluntários também receberam doses da CoronaVac em uma ação de vacinação emergencial aprovada pelo governo. As análises mostraram que ela é segura e não apresentou reações adversas significativas. Do total de voluntários, 94,7% não tiveram nenhuma reação. Outros 5,36% sentiram efeitos adversos de grau baixo, como dor no local da aplicação, febre moderada e perda de apetite.
Os resultados preliminares que a CoronaVac vem apresentando são muito animadores. Estamos conhecendo o vírus e entendendo como ele se comporta no organismo humano. O que nos deixa bastante otimistas é que temos amplo conhecimento sobre as formas de desenvolvimento dessa vacina.
O imunizante utiliza o vírus inativado, uma tecnologia já bastante estabelecida no desenvolvimento de outras vacinas do Butantan. A técnica é usada em diversos imunizantes amplamente disponibilizados. Esse conhecimento trouxe mais segurança a todo o processo, diminuindo os riscos da operação.
A expectativa agora está na demonstração de eficácia, pois os índices de segurança já são extremamente positivos. São passos que foram dados pelo Butantan com planejamento e estratégia. Dadas as respostas iniciais, seguimos recentemente com o pedido de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Assim teremos, definitivamente, uma vacina capaz de proteger a população brasileira.
Enquanto os resultados finais dos estudos não aparecem, nós nos antecipamos e devemos receber, até outubro, 6 milhões de doses da CoronaVac vindas da China prontas para aplicação. Outros 40 milhões devem chegar até o fim deste ano e, até fevereiro de 2021, mais 15 milhões de doses. Essa é uma medida importante para agilizar a imunização assim que houver aprovação das autoridades sanitárias.
Paralelamente, o governo do estado de São Paulo, por meio da coordenação Invest-SP e da mobilização da organização social Comunitas, arrecadou 97 milhões de reais com a iniciativa privada para as obras de uma futura fábrica para a vacina contra o coronavírus.
O projeto executivo está em processo de contratação e as obras devem ser iniciadas em novembro. Estamos olhando para a frente, com o intuito de dominar a tecnologia de produção dessa vacina e colocar nossa instituição entre os maiores produtores.
O nosso otimismo em relação a essa vacina não é gratuito nem é devaneio deste “cientista sonhador”. Temos acompanhado a evolução desse desenvolvimento com responsabilidade e respaldo técnico e, diante da agressividade dessa doença, que no Brasil já deixou mais de 146 mil mortos, não conseguiremos descansar até que nossa missão seja cumprida. No Butantan estaremos sempre a serviço da vida.
*Dimas Tadeu Covas, cientista e professor da USP, é diretor do Instituto Butantan e membro do Centro de Contingência do Coronavírus do Governo do Estado de São Paulo
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