Por Natalia Pasternark e Carlos Orsi*
A CPI da Pandemia voltou a lançar holofotes sobre as propostas de uso da cloroquina, ou hidroxicloroquina, no controle ou prevenção da COVID-19. Cientificamente, a questão está morta e enterrada desde, pelo menos, meados do ano passado: esses fármacos, sozinhos ou em combinações diversas, são inúteis frente ao SARS-CoV-2, em qualquer fase da doença, seja após hospitalização, no início dos sintomas ou em aplicação “precoce”.
É preciso reconhecer que vários esforços vêm sendo empreendidos – por figuras públicas, ou por meio de publicações anônimas, como o website c19study – para “ressignificar” os resultados formais, de boa qualidade e publicados na literatura científica, que demonstram a ineficácia do antimalárico no controle da doença viral, e construir uma narrativa de que, “na verdade”, os dados publicados dizem o contrário do que seus autores afirmam.
Porém, do mesmo modo que reconhecemos a existência desses esforços, temos também de reconhecer que têm baixa qualidade, isso quando não são claramente desonestos – a ponto de jamais terem sido aceitos para publicação em revistas científicas de boa reputação, e de vários de seus autores, possivelmente constrangidos, preferirem permanecer no anonimato.
Mais uma vez, é importante reiterar que o simples fato de haver um estudo afirmando isto ou aquilo não basta para dar a “isto-ou-aquilo” o selo de verdade científica, nem mesmo o de hipótese plausível: dá para encontrar estudos publicados em revistas de ótima reputação dizendo que Uri Geller lê mentes, ou que é possível prever o futuro.
O que conta para valer é a evidência acumulada pelos estudos de melhor qualidade, analisada à luz do conhecimento científico previamente estabelecido e escrutinizada pela comunidade de especialistas na área. Nem a cloroquina (ou hidroxicloroquina) e nenhuma outra proposta de “tratamento precoce para COVID-19 foi capaz de resistir a esses critérios.
Em abril do ano passado, publicamos um longo artigo com “perguntas e respostas” sobre a cloroquina. No contexto da CPI atual, achamos por bem atualizá-lo.
Vamos lá:
Afirmação: A CQ e HCQ atuam impedindo a entrada de vírus na célula, alterando o pH do endossomo, que é o veículo usado pela partícula viral. Por isso, devem funcionar para COVID-19.
O caminho de invasão da célula via endossomo existe, mas não é o único. Existe uma entrada por fusão de membrana – quando o vírus dispensa a “carona” do endossomo – para a qual o pH é irrelevante. Estudos mostram que essa entrada é a mais utilizada pelo SARS-CoV-2. Isso pode explicar por que CQ e HCQ parecem funcionar contra vírus quando são testadas em cultura de células, mas nunca em animais e humanos. As células do trato respiratório humano têm características de membrana que facilitam a fusão, enquanto as células usadas para os testes de laboratório – geralmente, derivadas de rins de macaco – só oferecem ao vírus a via de endossomo.
Afirmação: Esses remédios já foram usados com sucesso para tratamento de outras viroses.
A HCQ e CQ atuam com sucesso no tratamento de malária, que é causada por um protozoário, e não um vírus. E atuam também com sucesso em doenças autoimunes como lúpus e artrite reumatoide. Já foram testadas – e fracassaram – no tratamento de aids, dengue, influenza, chicungunha, ebola e SARS. Em chicungunha e ebola, esses medicamentos fizeram mal, aumentando o número de vírus e agravando os sintomas de ambas as doenças em animais.
Afirmação: A CQ e HCQ apresentam ação imunomodulatória e, portanto, podem ser úteis na fase grave da doença, onde temos uma reação imune descontrolada.
O mecanismo imunomodulatório existe, e é o que torna esses medicamentos úteis em doenças autoimunes, mas os testes conduzidos para determinar se CQ ou HCQ seriam úteis em pacientes hospitalizados com COVID-19 deram resultado negativo.
Afirmação: Os medicamentos apresentam ação anti-inflamatória, que pode ser útil na fase grave da COVID-19.
O efeito existe, mas há diversos outros medicamentos no mercado com a mesma função, e menos efeitos colaterais. Não existe necessidade de usar CQ e HCQ como anti-inflamatórios, dadas as alternativas. E de qualquer forma, já temos estudos concluídos mostrando que CQ e HCQ não ajudam pacientes graves (e nem leves, por falar nisso).
Afirmação: Não funciona dar só a HCQ, precisa dar a azitromicina (zinco, vitamina D…) junto.
O uso da azitromicina em associação com a HCQ começou baseado no primeiro estudo do pesquisador francês Didier Raoult, que usou o antibiótico para tratar infecções bacterianas secundárias, mas achou ter visto melhora em seis pacientes que usaram essa combinação. Ele chamou esse resultado de “100% de cura”. Só esqueceu de contar sobre os seis pacientes que também tomaram essa combinação e pioraram: três foram para UTI, e um morreu. O artigo científico que descreve os resultados de Raoult foi considerado de baixa qualidade até pelos responsáveis da revista que o publicou.
É preciso notar, ainda, que embora a HCQ e a CQ sejam consideradas seguras para uso humano (nas indicações e doses que constam da bula), não há garantia da segurança de seu uso associado a outros medicamentos. Vale lembrar que casos em que houve necessidade de transplante de fígado já foram associados ao uso de componentes do “kit covid”, que inclui hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina.
Afirmação: A combinação HCQ + azitromicina funciona porque, além do efeito antiviral da HCQ, o antimalárico atua numa estrutura interna da célula, o ribossomo, impedindo a produção de proteínas de que o vírus precisa, e a azitromicina na mitocôndria, deixando o vírus sem energia para se multiplicar.
Esses conceitos absurdamente errados, que deveriam matar de vergonha qualquer segundanista de faculdade de Biologia, foram apresentados ao público brasileiro pelo virologista Paolo Zanotto, e depois propagados pela médica Nise Yamaguchi.
Os proponentes mostram total ignorância de biologia celular. A HCQ não atua no ribossomo da célula. A azitromicina, como outros antibióticos do mesmo tipo, atua em ribossomos de bactérias, mas não de células do corpo humano.
A mitocôndria apresenta, de fato, ribossomos similares aos da uma bactéria, mas está bem protegida dentro da célula. E caso o antibiótico realmente conseguisse fazer estrago nas células humanas, quando usado nas mesmas concentrações em que é usado para matar bactérias, não seria um antibiótico, e sim um veneno potente.
Afirmação: Esses remédios são usados há anos para outras doenças, tem gente que usa a vida inteira, e de repente vocês aí estão dizendo que faz mal.
Os efeitos colaterais são conhecidos para malária, lúpus e artrite reumatoide, justamente porque os medicamentos passaram por testes clínicos. Sabemos a dose adequada, a frequência de uso e quais efeitos acompanhar. Efeitos comuns incluem arritmia cardíaca, perda de visão, perda de audição e problemas no fígado.
Pacientes que fazem uso contínuo são acompanhados, e se houver qualquer alteração crítica, a medicação é trocada. Além disso, a dose utilizada por pacientes autoimunes é menor do que a dose empregada atualmente para COVID-19.
Os efeitos desses remédios para pessoas acometidas por uma doença infecciosa grave nunca foram estudados. O organismo de uma pessoa em estado grave de COVID-19 não é o mesmo de alguém infectado por malária, ou em tratamento para lúpus.
A interação com outros medicamentos comuns no tratamento de suporte da COVID-19 nunca foi estudada. Diabéticos, por exemplo, são grupo de risco para COVID-19, e podem estar fazendo uso de metformina. Estudos em camundongos mostraram que administrar CQ com metformina matou 30% dos animais.
A administração conjunta com azitromicina nunca foi testada. A azitromicina também provoca arritmia cardíaca, além de diarreia, que por sua vez leva à desidratação. Assim, estaríamos dando dois medicamentos que atacam o coração para pacientes com o coração já fragilizado, uma vez que o próprio vírus também causa arritmia. Estamos empilhando fatores de risco ao combinar essas medicações nesses pacientes.
Afirmação: o mundo inteiro está usando e curando pessoas e vocês aqui falando de efeitos colaterais!
Não há nenhum sinal de que a CQ e HCQ estejam funcionando ou tenham funcionado no resto do mundo, para além de relatos esparsos ou bravatas de médicos e políticos que anunciam curas sem apresentar dados. Os países que conseguiram controlar a pandemia conquistaram esse sucesso com isolamento social, máscaras e vacinas.
Afirmação: o município “X” adotou o protocolo precoce e teve poucos casos e mortes.
A primeira questão a considerar é: “pouco” em relação a quê? Os únicos municípios brasileiros que viram quedas notáveis nos números de casos e mortes foram os que adotaram medidas de lockdown, como Araraquara (SP), ou que completaram vacinação em massa, como Serrana (SP).
Cidades populosas que receberam os “kits covid” do Ministério da Saúde não tiveram desempenho na pandemia melhor do que municípios comparáveis que não usaram esses produtos. Alguns, como Itajaí (SC) atingiram as piores taxas de mortalidade.
Mesmo que seja possível encontrar casos pontuais de cidades, ou bairros, com número de casos e mortes considerado baixo e onde o uso de CQ/HCQ ou dos “kits covid” seja disseminado e bem documentado, não é possível fazer atribuição de causa e efeito sem uma comparação adequada com localidades semelhantes.
Pergunta: Vocês preferem deixar morrer do que dar um remédio não testado?
Se o remédio tem grande chance de acelerar a morte, e nenhuma comprovação de benefício, “deixar de dar” não é deixar morrer, é evitar que o paciente seja jogado numa roleta russa. O paciente não está abandonado à própria sorte, está recebendo tratamento e medicamentos de suporte, e a maior parte deles se recupera.
Fica a contra-pergunta: você daria um remédio que você não sabe se ajuda, mas que tem uma chance bem concreta de matar o paciente do coração?
Afirmação: Se fosse sua mãe ali, morrendo de falta de ar como um peixe fora dágua, vocês iam correr pra dar o remédio!
Numa situação de desespero como a descrita na pergunta, muitas pessoas talvez até aceitassem óleo de cobra com pó de pirlimpimpim e ovo de pata. O tratamento aí é para a angústia da família, não para a condição do paciente.
Mas se, como no caso da HCQ/CQ, não houvesse nenhuma razão para achar que o remédio vai fazer bem, nós, particularmente, não usaríamos.
A prioridade é cuidar do doente de modo respeitoso e responsável, não usá-lo como bucha de canhão, só para aliviar o desconforto emocional dos parentes ou dos profissionais de saúde.
Afirmação: Não está funcionando porque estão dando para pacientes graves, e o certo é dar no começo da doença.
Veja, nas respostas anteriores, os possíveis efeitos do remédio. Poderia funcionar na fase grave pela ação imunomodulatória e anti-inflamatória, mas testes conduzidos em todo o mundo, como o Solidarity, da Organização Mundial da Saúde (OMS), mostraram que CQ/HCQ não traz benefício para pacientes de COVID-19.
Para funcionar na fase inicial, teria que ter ação antiviral e impedir a replicação do vírus. Também temos estudos mostrando que isso não acontece.
Especificamente, a alegação de que CQ/HCQ seria útil como preventivo ou em fases iniciais da doença já foi testada cientificamente, e descartada.
Aliás, CQ e HCQ já foram testadas para outras viroses, como aids, SARS, febre chicungunha, ebola, dengue e influenza. Nunca funcionaram. Para ebola e chicungunha, pioraram a doença, aumentando a replicação do vírus.
De resto, ficar mudando a alegação cada vez que os fatos contradizem o que se deseja provar – uma hora a HCQ é a salvação dos doentes graves; quando isso não funciona, passamos para os moderados; e quando isso não funciona de novo, vamos para quem está nos estágios iniciais da doença – soa mais como aglomeração desesperada de desculpas esfarrapadas do que pesquisa científica séria.
Afirmação: mas existem meta-análises com “qualidade 1A” mostrando que o tratamento precoce funciona!
Meta-análises aplicam técnicas estatísticas a levantamentos que juntam os resultados de diversos estudos sobre um mesmo assunto, a fim de extrair uma conclusão geral. É essencial notar que esses levantamentos não transformam lixo em ouro.
O resultado da meta-análise será tão confiável quanto forem confiáveis os estudos reunidos nela e a técnica analítica utilizada para combiná-los.
As meta-análises propagadas como “provando” a eficácia da CQ/HCQ ou de tratamentos precoces falham em ambos os critérios (para mais detalhes, consulte aqui e aqui).
Afirmação: O Prevent Senior curou centenas de pessoas com o protocolo de uso precoce, nas fases iniciais.
A única fonte dessa informação é o próprio Prevent. Nenhum dado confiável, verificado por partes desinteressadas em fazer marketing para o grupo, foi divulgado. O hospital chegou a preparar um estudo, mas a qualidade do trabalho é tão baixa que nem mesmo a empresa se dispôs a prosseguir com publicação formal.
Sabe-se que a rede Prevent Senior disponibilizou o medicamento para pacientes com suspeita de COVID-19, por atendimento remoto e entrega do remédio em domicílio. Em muitos casos, o diagnóstico nem foi confirmado.
Temos aí dois problemas sérios: não sabemos se quem tomou o remédio e melhorou estava realmente doente com COVID-19, e mesmo que estivesse, como a taxa de recuperação da doença, sem tratamento nenhum, é muito alta – 90% se recuperam sem internação – não sabemos se a HCQ contribuiu de fato na melhora desses pacientes. Enfim, mesmo que “centenas de pessoas” tenham sido “curadas” de COVID-19 na rede Prevent Senior, é ilegítimo atribuir o sucesso à CQ/HCQ e não, por exemplo, ao curso natural da doença.
Afirmação: Ciência não é tudo! A intuição e a experiência pessoal dos médicos é mais importante.
Médicos são seres humanos, tão vulneráveis a vieses ideológicos e a embarcar em falsas esperanças quanto o restante de nós. O método científico é, exatamente, a ferramenta que temos para reunir uma grande quantidade de experiências de modo lógico e ver, uma vez eliminados os vieses a as ilusões, o que resta. Ele nem sempre funciona como deveria, mas descartá-lo é como optar por um tapete voador só porque aviões, às vezes, caem.
Afirmação: Vocês são esquerdopatas que querem esconder a cura da COVID-19 só para prejudicar o Bolsonaro!
Abstraindo o fato de que o atual presidente da República não precisa da ajuda de ninguém para se prejudicar, em uma pandemia de escala mundial, não haveria como “esconder a cura”: se algum remédio – HCQ, HCQ+AZ, ou qualquer outro – pudesse fazer alguma diferença definitiva, teríamos visto isso acontecer em alguma parte do mundo. Pelo contrário, os países que controlaram a pandemia contaram com medidas de isolamento social, lockdown, máscaras e vacinas.
Afirmação: Conheço pessoas que tomaram e melhoraram por causa da cloroquina.
Você conhece pessoas que tomaram o remédio, e depois se recuperaram da doença. Elas podem ter atribuído a recuperação ao remédio, mas não temos como saber se estão certas. Em casos leves, o remédio pode não ter feito a menor diferença, e a pessoa teria se recuperado de qualquer maneira. Em casos graves, a mesma coisa. E o paciente grave estará recebendo diversos outros medicamentos, como corticoides, anti-inflamatórios e anticoagulantes.
Não há razão para achar que, nesse cenário, a cloroquina tenha feito alguma diferença crucial. Pelo contrário, pode até ter atrapalhado. A única maneira de saber se a HCQ e azitromicina tiveram efeito é comparar um grupo que a utilizou com um grupo que não. Estudos que realizaram essa comparação produziram resultados negativos.
Publicado originalmente a revista Questão de Ciência com o título Tudo que é preciso saber sobre cloroquina e “tratamento precoce”
*Natalia Pasternak é microbiologista, pesquisadora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência, membro do Committee for Skeptical Inquiry, professora visitante da Fundação Getúlio Vargas (FGV), colunista do jornal O Globo e coautora do livro “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto)
* Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto)
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