Ciência e saúde

Teorias da conspiração e a tragédia no Rio Grande do Sul

Teorias da conspiração respondem a três necessidades humanas muito fortes: a de dar sentido ao mundo; a de sentir-se especial; e a de estar certo

Por Carlos Orsi*

Não existe, hoje, nenhuma tecnologia capaz de causar, impedir, minimizar ou agravar eventos climáticos específicos – uma enchente, uma seca, uma tempestade – de modo previsível, confiável, consistente ou significativo. Relatório publicado em 2018 pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) trata até mesmo a tecnologia da semeadura de nuvens, usada há décadas em várias partes do mundo, como incerta, altamente dependente de condições particulares (tipo de nuvem, temperatura, ventos), e com eficácia difícil de medir e de comprovar. Diz o trabalho:

“O efeito real de semear um sistema individual é aleatório, devido à variabilidade tanto no ambiente da nuvem quanto da própria nuvem. Embora o impacto médio da semeadura possa ser um aumento de 20% na precipitação natural, o impacto numa nuvem individual pode até ser negativo”.

Nos Estados Unidos, equipes envolvidas em programas de semeadura de nuvens na Califórnia estimam a eficácia do que fazem em um aumento de 5% a 10% nas chuvas. Estudo sobre o programa de semeadura de nuvens conduzido nos Emirados Árabes Unidos indica um aumento de 23% da precipitação anual, na avaliação da série histórica, mas efeito nulo na comparação entre a quantidade de chuva sobre áreas semeadas e áreas-controle.

Em outras palavras, nada nem remotamente comparável ao que vem ocorrendo no Rio Grande do Sul, com aumento de 200% no volume de precipitação apenas no início de maio, e ao contrário do que afirmam teorias de conspiração que andam viralizando em ambientes online, e do que insinuam jornalistas desclassificados que, por razões insondáveis, ainda mantêm espaço em alguns veículos de comunicação ditos “sérios”. A lógica é convoluta e cristalina ao mesmo tempo: se a mudança climática é uma farsa (axioma fundamental do negacionismo conspiracionista), os eventos que sugerem que ela é real devem estar sendo provocados deliberadamente por alguém.

Mestres do clima

Teorias de conspiração são como tijolos de Lego: sempre podem se encaixar, mesmo tendo cores e formatos diferentes. A cara final do brinquedo só depende da imaginação (e da habilidade) da criança. Até o momento, para “explicar” o desastre gaúcho, vi serem amalgamadas três conspirações originalmente independentes: HAARP, “chemtrails” e o “grande reset”.

A primeira é um clássico do século passado. HAARP já aparece como verbete no livro “As 60 Maiores Conspirações de Todos os Tempos”, de Jonathan Vankin e John Whalen, publicado originalmente nos Estados Unidos em 1996. Criado pela Força Aérea e pela Marinha dos Estados Unidos em 1993, mas hoje administrado pela Universidade do Alasca – a fase militar do projeto foi encerrada em 2014 –, o HAARP é um complexo de antenas capazes de injetar ondas de rádio de alta frequência na ionosfera, uma das camadas da atmosfera terrestre. A ionosfera reflete ondas de rádio de volta para a superfície; é graças a ela que, mesmo antes de haver satélites em órbita, era possível captar transmissões de rádio vindas de além do horizonte.

Em sua etapa militar, o objetivo do HAARP era explorar novas formas de usar a ionosfera como canal de comunicação. Na fase atual, acadêmica, o instrumento é usado para estudar a ionosfera e o campo magnético terrestre.

Teorias de conspiração envolvendo o programa acusam-no de ser um sistema de controle do clima e/ou de produzir “raios da morte” que viajariam pela ionosfera até seus alvos. Para além da impossibilidade física – ondas de rádio não controlam o clima e nem são raios da morte – a teoria falha no mais básico teste de realidade: se os EUA são capazes de controlar o clima, por que o país segue sendo alvo de enchentes, incêndios florestais e furacões? E se há raios da morte teleguiados, por que o país precisaria de drones e de forças especiais para caçar terroristas pelo mundo?

Química e reinício

Por sua vez, “chemtrails” é o nome dado à ideia de que as trilhas de condensação deixadas por aviões a jato são, na verdade, algum tipo de descarga química ou arma biológica, um gás espalhado de forma maliciosa na alta atmosfera para… bom, você pode completar aqui o que quiser (manter a população dócil, envenenar certos grupos étnicos, alimentar alienígenas e, claro, controlar o clima). A verdadeira origem das trilhas de condensação já está dada no nome: elas se formam quando o vapor d’água presente na fumaça dos aviões entra em contato com o ar gelado das grandes altitudes e, claro, congela.

Uma das primeiras teorias de conspiração envolvendo chemtrails parece ter interpretado o fenômeno como uma forma de geoengenharia, programa para reduzir a incidência de energia solar sobre a superfície do planeta. Essa versão data do período 2007 a 2010. Mas, assim como é fácil imaginar elefantes ou abóboras no formato das nuvens, as trilhas de condensação, reinterpretadas como chemtrails, podem servir como sintoma ou causa de qualquer coisa para qualquer um.

Já “The Great Reset” (“O Grande Reinício”) teria sido o tema da edição de 2021 do Fórum Econômico Mundial de Davos, que acabou não acontecendo por causa da COVID-19. A ideia geral era a de usar o esforço de recuperação que teria de se seguir à pandemia para “reiniciar” e economia mundial em bases mais humanas e sustentáveis. Um dos proponentes, o então Príncipe Charles da Inglaterra, saiu-se com essa platitude: “temos uma janela de oportunidade única, mas cada vez menor, para aprender lições e recomeçar num caminho mais sustentável”.

Na mesma linha, escrevendo para The Economist em 2020, o então presidente do Banco da Inglaterra Mark Carney exaltou a ideia de um novo capitalismo, pós-pandêmico, em que as empresas serão valorizadas pela forma como tratam os empregados, o meio-ambiente e como atuam na sociedade, e não só pelos lucros que produzem. A proposta do “Great Reset” é substituir um “capitalismo dos acionistas” (“shareholder capitalism”, onde o lucro é o valor central) por um “capitalismo das partes implicadas” (“stakeholder capitalism”), que olha para o impacto social e ambiental do que faz.

Se isso soa como conversa fiada do mesmo nível de estamos-loucos-para-furar-petróleo-na-Amazônia-mas-amamos-a-natureza-e-vamos-combater-o-aquecimento-global, é porque provavelmente é. Para os teóricos de conspiração, no entanto, esse mingau ralo de bom-mocismo cínico esconde uma grande articulação dos donos do mundo para conquistar o mundo. O que parece um tanto quanto desnecessário – por que conspirar para conquistar o que já se têm? – mas enfim.

Por quê?

Resta a questão de por que alguém preferiria abraçar esse Lego mal-ajambrado de narrativas em vez de ficar com a explicação mais plausível para o desastre gaúcho: de que a tragédia é resultado da combinação da intensificação dos eventos climáticos extremos, trazida pelo aquecimento global, com a histórica negligência das lideranças políticas nacionais para com o meio ambiente e a preparação e prevenção de desastres.

Teorias da conspiração respondem a três necessidades humanas muito fortes: a de dar sentido ao mundo; a de sentir-se especial; e a de estar certo. E também a uma quarta, menos universal, mas que pode ser dominante em algumas personalidades: a de odiar com justiça – isto é, odiar culpados, vítimas legítimas de sadismo e crueldade.

Vejamos como a conspiração proposta – vamos chamá-la de Reset Freestyle – atende a cada uma delas:

A origem natural das chuvas (ainda que numa natureza influenciada pela atividade humana) explica o fenômeno, mas não lhe dá sentido. Significado é algo que pertence apenas a criações deliberadas do engenho humano; o plano vilanesco dos conspiradores cumpre esse papel, de preencher o vácuo de sentido deixado pelas meras causas naturais.

Conspirações são planos secretos que mentes privilegiadas tentam esconder da “massa”; identificá-las, portanto, é privilégio de uma minoria mais inteligente, cética e bem-informada do que o “povo ovelha”, lobotomizado pela mídia. Os crentes do Reset Freestyle estão “por dentro”, todos os demais estão “por fora”.

Ao contestar a mudança climática, o Reset Freestyle valida a crença pré-existente dos negacionistas climáticos, que tiram conforto da crença de que a evidência de que estão errados foi, na verdade, forjada.

Por fim, a conspiração oferece a elite globalista como objeto de ódio.

Fantasias conspiratórias não carregam o fardo da coerência: um dos vídeos a que assisti sobre a conspiração das enchentes insinua, num momento, que as tempestades foram causadas deliberadamente e, em outro, que talvez nem tenham acontecido, ou que a situação está sendo exagerada pela mídia – um insulto direto às vítimas.

Nos Estados Unidos, um conspiracionista que acusou as vítimas de um massacre escolar de terem, na verdade, promovido uma encenação foi condenado a pagar mais de US$ 1 bilhão em indenizações às famílias caluniadas. Seria didático se algo semelhante ocorresse por aqui.

Publicado originalmente na Revista Questão de Ciência

*Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP), “Negacionismo” (Editora de Cultura) e coautor de “Pura Picaretagem” (Leya), “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares) e “Que Bobagem!” (Editora Contexto)

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