Por AD Luna
@adluna1
“A crítica perdeu completamente a credibilidade na última década, junto a outros filtros da indústria musical, como as gravadoras e canais tradicionais de divulgação”. Caso fosse proferida por algum músico ou leitor de caderno ou revista cultural, esta frase poderia ser interpretada como revanchista. No entanto, por ter sido dita por um crítico musical (no caso, o também músico e produtor Alex Antunes), ela ganha outros contornos, especialmente se levarmos em conta o contexto no qual a música e seus meios de distribuição e divulgação encontram-se inseridos atualmente. Num mundo onde o acesso a opiniões e informações encontra-se amplamente difundido, qual o papel do crítico musical?
“Em tempos de proliferação de bens musicais, o crítico ainda funciona como um filtro, alguém que nos permite navegar em meio à tempestade de lançamentos musicais”, afirma Jeder Janotti Júnior, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE e organizador do livro Dez anos a mil: mídia e música popular massiva em tempos de internet. Para Jeder, apesar de manter o papel de guia, os críticos perderam o poder de fazer músicos e leitores se identificarem mutuamente em comunidades de conhecedores (e colecionadores) especializados.
Sobre o surgimento da atividade crítica musical, o pesquisador aponta três marcos: o aparecimento da cobertura da cena norte-americana de jazz por jornalistas brancos, fãs do gênero, que discutiam a qualidade das obras através do conhecimento da genealogia de gêneros, e o surgimento das revistas Melody Maker, em 1926, e Rolling Stone, no final dos anos 1960.
“Talvez devamos acrescentar um quarto marco, a crítica (se não me engano, em 2004) do primeiro disco do Arcade Fire, que saiu no site Pitchfork. Segundo o jornalista pernambucano Bruno Nogueira, esse foi o primeiro sucesso discográfico fora das estratégias de resenhas e lançamentos tradicionais da indústria fonográfica”, complementa Jeder.
Com passagens pela Folha de S. Paulo, Carta Capital, portal Ig, além de colaborações para as revistas Trip, Bravo, Cult, Caros Amigos e Fórum, Pedro Alexandre Sanches vê o conceito de crítica musical (ou de qualquer crítica) como algo bastante abstrato e se sente desconfortável quando alguém o denomina como tal. Ele diz acreditar cada vez menos na crítica musical como algo que tenha o objetivo de apontar supostos “defeitos”, caminhos ou convencer alguém de qualquer coisa.
Na visão de Sanches, a crítica funciona melhor como ferramenta de compreensão da realidade, de análise e de compartilhamento coletivo de pensamento.
“É mais legal saber como a música influencia e é influenciada pelo mundo em que está mergulhada do que entender de música. Este tempo de redes sociais virtuais é excelente pra tirar os críticos do castelo, da torre, do isolamento – crítica solitária ou feita pra influenciar a cabeça do criticado é boba, fútil, mesquinha”, analisa.
Ex-integrante da banda paulistana Akira S & as Garotas que Erraram e curador de festivais independentes, Alex Antunes diz nunca ter se considerado um “especialista encastelado”, mas uma espécie de pensador e agitador contracultural. Ele identifica pontos de ligação entre o cenário da atual cultura digital com o jornalismo pop de guerrilha.
“Venho de uma época que teve algo do jornalismo gonzo de Hunter Thompson – no qual se despreza a noção de neutralidade e objetividade – e algo do fanzinismo punk e pós-punk, onde o jornalista é tão militante quanto os músicos, só que numa outra frente. Essa posição sempre foi compreendida e apreciada pelos músicos inquietos e não-arrivistas”, avalia o jornalista, que já escreveu para as revistas Rolling Stone, Bizz e para o caderno de cultura da Folha de S. Paulo.
Uma das questões mais controversas do papel do crítico musical se dá nas suas relações ou no entendimento que os criticados têm a respeito do seu papel. Muitos músicos simplesmente não gostam de ser analisados negativamente e alguns reagem até com certa agressividade diante disso.
“Quando se leva para o pessoal, ou se faz algum comentário por demais cáustico, é de se esperar uma reação. Em meu caso específico, evito ao máximo me desviar do que estou comentando (o disco, a música). No geral, durante esses 35 anos de crítica sistemática, tive poucos atritos com músicos. Muito mais, e bem mais, com fãs”, conta José Teles, que escreveu para o Jornal do Commercio, entre 1986 e 2020.
Pedro Alexandre Sanches já passou por situações um pouco mais complicadas. Ele relata que, certa vez, o vocalista Toni Garrido se mostrou tão irritado com comentários escritos pelo jornalista sobre o Cidade Negra que até chegou ao ponto de dizer para uma conhecida de Sanches que lhe “daria umas porradas caso o encontrasse pessoalmente”. Felizmente, o ato de violência não se consumou e os dois resolveram a situação de maneira amigável e civilizada, a partir de conversas trocadas pelo Twitter.
Em outras situações, o constrangimento se deu com duas estrelas da MPB. “Lembro de Djavan me perguntando cara a cara se eu namorava e me chamando de mal-amado, nitidamente magoado com algo que eu tinha escrito”, conta. Com Elba Ramalho, o imbróglio se deu por telefone. “Ela dizia: ‘você não gosta de mim!’. E eu tentando explicar, de modo não sei se coerente, que eu nem a conhecia e não tinha nem como gostar nem como desgostar dela”, conclui.
Em relação à crítica musical brasileira, José Teles diz que no passado era bem melhor. “Em gerações anteriores, sobretudo na dos anos 1970, os críticos juntavam conhecimentos adquiridos na escola com o que aprendiam nos discos, no contato com artistas. Eles tinham embasamento cultural e havia uma abrangência bem mais ampla de conhecimento da história da música”, explica. Como exemplos de bons profissionais em destaque naquele período, ele cita Tárik de Souza, Ana Maria Bahiana, José Emílio Rondeau, Maurício Krubusly e José Ramos Tinhorão.
Já Pedro Alexandre Sanches acha que é preciso se buscar, com urgência, modelos mais criativos e novos de se analisar o trabalho alheio. Seria igualmente importante estabelecer relações transparentes entre críticos, artistas, público e até empresas de comunicação.
“Acredito que a crítica brasileira padece do mesmo problema que a mídia nacional como um todo: ela se apequena, se auto-desmoraliza a todo momento. Os críticos fazem isso seja metendo o pau demais, ou babando ovo indiscriminadamente, ou seguindo a boiada sem tentar raciocinar pela própria cabeça”, argumenta.
Sandhes também aproveita para cutucar outros atores presentes no processo das interrelações musicais. “Por vezes, as ligações entre artistas e fãs me parecem extremamente doentias. Pode parecer que isso não é assunto do crítico. Mas ele pode, sim, ser um intermediador também aí. Até porque nada me tira da cabeça que críticos são, acima de tudo, fãs (mais ou menos enrustidos)”.
Jeder Janotti afirma que uma boa crítica é aquela que apresenta os motivos pelos quais seu autor classifica determinada produção musical como boa ou ruim. “É muito diferente fazer uma simples afirmação de gosto, como isso é bom ou ruim, de saber explicitar e discutir os motivos pelos quais o leitor deve ou não perder tempo para ouvir determinada obra em especial”, aponta.
Publicada originalmente no Jornal do Commercio, em 05 de maio de 2011.
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