Ciência e saúde

Ideia de separação entre o Homem e a Natureza teve contribuição da ciência moderna

“Há uma impressão que, em termos de consciência, nós estamos fora da Natureza. E, com a nossa razão, conseguimos compreender os mistérios dessa Natureza”

Por AD Luna

A mentalidade de separação entre o Homem e a Natureza teve contribuição da ciência moderna. É o que expõe Elika Takimoto. Ouça e leia trecho de entrevista com ela para o InterD – tanto o programa de rádio quanto o podcast.

Elika Takimoto é doutora em Filosofia pela UERJ, mestre em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pela UFRJ e escritora. Recentemente, ela lançou o livro “Como dialogar com um negacionista”.

Para acessar a entrevista completa, clique AQUI!

Há povos do planeta que sempre entenderam a espécie humana como parte integrante da Natureza, sem separação (é o caso de indígenas, budistas etc.). De onde veio a ideia de separação presente em boa parte da mentalidade ocidental?

Ouça “Ideia de separação entre o Homem e a Natureza teve contribuição da ciência moderna – Elika Takimoto” no Spreaker.

Excelente pergunta, obrigada por ela! A gente está tão imersa nessa cultura, que muitas pessoas não conseguem entender que há muitas formas diferentes de se visualizar, de se vivenciar, de compreender, de estudar o mundo.

É como você colocou, indígenas e budistas, de uma forma geral, só falam da Natureza como uma coisa só – independente e indiferente ao sujeito.

O ser humano inexiste se for separado do cosmos. Aliás, não faz sentido você pensar o ser humano separado do cosmos. 

E, de fato, quando o ser humano exerce ação sobre a natureza, ou seja, sobre o meio, o ser humano muda a si mesmo a si próprio, muda sua natureza íntima.

Ao mesmo tempo em que modifica a natureza externa, seja para melhor, seja para pior. É algo uno, a via é de mão dupla sempre.

Mas, voltando a sua pergunta, desde a revolução copernicana a Natureza foi vista na filosofia ocidental, de uma forma geral, como pura passividade, com a atividade sendo uma prerrogativa dos indivíduos.

De lá para cá, a gente construiu muitas estradas, muitas fábricas, muitas cidades, como se a natureza pudesse estar a serviço do ser humano – que só modifica essa natureza sem ser modificado por ela. E a coisa se aprofunda, com os filósofos da ciência também.

Filosofia e separação entre o Homem e a Natureza

Na doutrina da ciência de [Johann Gottlieb] Fichte – um filósofo alemão que veio depois de Kant -, mesmo o ato de por algo fora do eu…

Por exemplo, conceber um fenômeno da natureza como a força da gravidade, trata-se de algo a serviço do eu, de modo que a natureza só exista na medida em que a subjetividade se opõe a ela. Ou que um sujeito se põe a utilizar essa natureza para seus próprios fins.

O que estou querendo dizer é que não faltaram filósofos para confirmar a tese de que estamos fora da Natureza. Pelo menos no que se refere a esse negócio chamado de autoconsciência ou consciência.

Se o ser humano explora a natureza, conclui-se, ele é algo fora da natureza.

Há uma impressão que, em termos de consciência, nós estamos fora da Natureza. E, com a nossa razão, conseguimos compreender os mistérios dessa natureza.

Mas, na realidade, para muitas outras pessoas que vivem neste mundo, neste planeta, não há essa separação. Ou seja, o ser humano não está separado da Natureza.

Nesse contexto, na filosofia e na ciência modernas, começamos a ver o mundo como dualista, mecanicista. E a gente conduz a uma, vamos dizer, aniquilação da natureza.

Então, ela passa a ser algo mensurável e objeto de dominação, um mero instrumento para os seres humanos.

Me parece muito mais plausível entender a Natureza como uma totalidade extremamente complexa e que o ser humana faça parte dessa complexidade. 

Ou seja, logo, se a Natureza adoece, o ser humano adoece juntamente com ela – porque não é diferente dela. Não é algo afastado dessa Natureza.

Cartesianismo e ideia de separação entre o Homem e a Natureza

A ciência moderna ajudou muito [construir] essa visão dualista. E a escola, tal como foi concebida, não tem ajudado nada no sentido de formar cidadãos e cidadãs que pensem sobre tudo isso.

Pelo contrário, o que a gente vê na educação moderna, é o que não é científico, o que não está calcado no cartesianismo, no mecanicismo, é desconsiderado no currículo escolar.

Quando falo de cartesianismo aqui, eu me refiro a algo que tenha ligação direta com o filósofo francês René Descartes.

Ele estabelece uma separação objetiva entre Deus, mundo e Homem – e, no caso deste último, entre o seu corpo, que é a sua extensão (a res extensa), e a sua mente, uma substância pensante, a alma – o que ele chama de res cogitans.

Ou seja, o Universo com Descartes – que foi contemporâneo de Galileu e Newton – foi dividido num processo objetivo no espaço e no tempo, por um lado e por outro lado, a alma em que se reflete aquele processo.

O espaço-tempo é algo que acontece fora de nós e essa distinção – olha que interessante – não pode mais servir de ponto de partida para a ciência que temos hoje.

Física quântica

A física quântica mostrou que a ciência já não é uma espectadora, colocada em frente da natureza, mas reconhece-se a si mesma como parte da interação entre ser humano e Natureza.

O que estou querendo dizer é que o método científico, que consiste em abstrair, explicar e ordenar os fenômenos, adquiriu consciência das limitações que lhe impõem o fato de a sua intervenção modificar e transformar o seu objeto. Até o ponto em que o método não pode se separar do objeto.

Os físicos quânticos mostraram que a imagem científica do Universo – ou seja, a natureza de um lado e o ser humano estudando essa natureza, de outro – deixa sim de ser uma verdadeira imagem da natureza.

Mas, como física quântica não é de uma forma geral ensinada nas escolas, o que é ensinado de fato é uma física mecanicista – todo currículo parece que o conhecimento é algo separado da Natureza, é algo que o ser humano faz independente da sua relação com a Natureza – essa discussão toda não está dentro das escolas e muito menos nos botequins, nas praças, nas praias.

Acho que a pandemia nos têm feito pensar muito sobre tudo isso. E o que não faltou nesse mundo foram indígenas e budistas nos alertando que – vamos colocar assim – a Natureza ia dar um retorno do que a gente estava fazendo com ela. Na verdade com nós mesmos, como estamos vendo aqui e agora.

Veja também

“Ciência e cultura são tratadas de forma separadas”, critica Elika Takimoto

Natalia Pasternak na CPI da covid-19: “O que queremos dizer com ciência”

A convivência entre religião e ciência é possível?

    Contato

    Recent Posts

    Joanah Flor, Diablo Angel, Luan Estilizado, Raí Saia Rodada e Zezo no Giro Musical

    Joanah Flor lança “Olhos de Avelã” no Dia Internacional Contra a LGBTfobia; Lajedo celebra 76…

    20 horas ago

    Laura Barker, diretora do NY Brazilian Film Festival, estreia como fotógrafa com ensaio inédito da atriz Priscila Reis

    Radicada em Nova Iorque há mais de uma década, Laura Barker é diretora e produtora…

    23 horas ago

    Bebé e Felipe Salvego apresentam show inédito e intimista em São Paulo

    Apresentação marca nova fase da cantora e revela faixas do próximo disco No dia 20…

    2 dias ago

    Fest Crew ocupa o centro de São Paulo com dança e muita arte

    Festival gratuito celebra trajetórias periféricas e queer no Centro de Referência da Dança, em 14…

    2 dias ago

    Ana Cacimba celebra a ancestralidade e a resistência negra com o single “Preto velho”

    Escute aqui: https://umg.headmedia.com.br/pontodepretovelho Ana Cacimba lança o single “Preto Velho”, uma interpretação contemporânea de um ponto…

    2 dias ago

    Artigos científicos relatam benefícios da observação e do contato com a natureza

    Pela análise dos artigos, foi verificado que a grande maioria deles (94,03%) relata resultados positivos…

    2 dias ago