Eventos que poderiam ser compreendidos como corriqueiros através de uma simples conversa com cientistas são impulsionados à categoria de fato extraordinário para se encaixar em narrativas fantasiosas mais apropriada a roteiro de uma série de TV graças ao sensacionalismo jornalístico
* Por Marcelo Yamashita
Vira e mexe publicamos um texto questionando alguma ação desastrada da imprensa. Seja por falta de conhecimento ou sede de cliques, a publicação sensacionalista vai de encontro à própria missão do veículo noticioso, que é a de informar: mesmo fato reais (digamos, a existência de pirâmides no Egito) podem ser comunicados de modo a propagar ignorância (ao insinuar-se, por exemplo, que as pirâmides foram construídas por discos voadores). Na prática, pouco importa por qual motivo a bobagem foi publicada, seja por ignorância do redator ou por busca de audiência, a imagem do jornalismo é maculada da mesma forma.
Eventos que poderiam ser compreendidos como corriqueiros através de uma simples conversa com cientistas são impulsionados à categoria de fato extraordinário para se encaixar em narrativas fantasiosas mais apropriada a roteiro de uma série de TV. Nessa categoria entram, por exemplo, as chamadas Agroglifo: marca misteriosa em plantação de trigo continua visível após colheita em SC, no G1, e Adolescentes são encontrados desmaiados em escola após jogo ‘com espíritos’, no UOL.
Apesar do título, o primeiro factoide não tem nada de “misterioso” e é completamente dispensável a menção a “ufologistas e entidades extraterrestres” encontrada no corpo do texto. Agroglifos são figuras de grandes dimensões feitas em plantações por meio do achatamento das plantas – um processo trabalhoso, mas trivial.
Desde 1970, houve um aumento dos desenhos em plantações. Em 1991, Doug Bower e Dave Chorley, de Southampton, Inglaterra, anunciaram que vinham fazendo a “pegadinha” dos desenhos há quinze anos. Eles disseram que planejaram a brincadeira tomando cerveja em um pub. Um artigo sobre agroglifos pode ser encontrado aqui.
A segunda ação do sensacionalismo jornalístico, criado para atrair a atenção do público com uma chamada sobrenatural, remete ao extinto jornal sensacionalista Notícias Populares. Mencionar, neste caso, um tabuleiro Ouija e que o prefeito da cidade “não descarta a possibilidade de que os desmaios tenham sido causados pelo jogo” é dispensável, já que o próprio texto, no segundo parágrafo, informa que o motivo do incidente foi uma intoxicação alimentar dos adolescentes.
Esta revista já publicou um artigo sobre o tabuleiro Ouija e o popular jogo do copo. A brincadeira consiste em reunir mais de uma pessoa para encostar o dedo sobre um objeto que pode se mover livremente sobre uma superfície. O objetivo da diversão é que o objeto responda a perguntas verbalizadas pelos participantes. A resposta ao questionamento é formada a partir da aproximação do copo ou de outro objeto dos símbolos disponíveis sobre a mesa – letras do alfabeto, números e as palavras “sim” e “não”.
A despeito de toda a névoa mística em torno do tabuleiro Ouija (e variações com copos, canetas, compassos etc.) existe uma explicação muito mais simples para o movimento dos objetos do que apelar para espíritos obsessores que, após invocados, decidem por atormentar a vida das pessoas. A explicação trivial para oráculos baseados em pêndulos que giram, copos que andam e hastes que se movimentam tem uma origem comum: chama-se efeito ideomotor. O fenômeno psicológico foi descrito em 1852 por William Carpenter.
O efeito consiste em efetuar movimentos musculares involuntários, na maioria das vezes imperceptíveis, que respondem à expectativa de quem os realiza. Desta forma, não é nenhum espírito zombeteiro que está mexendo o copo sobre mesa, mas as próprias pessoas que colocaram o dedo sobre ele o movimentam de maneira involuntária. Para fazer um teste, basta colocar óleo ou outro lubrificante sobre a superfície onde se apoiam os dedos e o copo para de se mexer (você também poderia se perguntar: se é o espírito que movimenta o copo por que é preciso encostar o dedo?).
Tanto no caso dos agroglifos como no caso Ouija existem explicações simples que dão conta dos fenômenos – não há necessidade de supor a existência de extraterrestres ou de violações das leis da física para chegar a uma resposta – pluralitas non est ponenda sine neccesitate (a pluralidade não deve ser posta sem necessidade). Essa frase em latim ilustra o princípio da “Navalha de Ockham”. Grosso modo, se existem várias hipóteses que podem explicar um mesmo fenômeno, é provável que a mais simples esteja correta – nos agroglifos e jogo do copo, os ETs e os espíritos não chegam sequer a ser hipóteses plausíveis.
É bem possível que os próprios jornalistas que redigiram os textos sensacionalistas não acreditem nas bobagens que seus textos insinuam. Trata-se de uma realidade deplorável do jornalismo, mas o fato é que é perfeitamente possível produzir material noticioso impecável do ponto de vista técnico – no sentido de que os eventos observáveis descritos realmente ocorreram, e as fontes ouvidas foram citadas de forma correta – e, ainda assim, desinformar.
Para tanto, basta apresentar os eventos de modo capcioso e escolher fontes inadequadas. Além disso, uma leitura cínica dos princípios da objetividade e da imparcialidade jornalística dá ao redator um álibi para publicar atrocidades e manter-se “inocente”: afinal, está apenas transmitindo o que lhe foi dito ou mostrado.
Mas correção técnica e objetividade, embora importantes, são meios, não fins; certamente não são escudos válidos para esconder mercantilismo grosseiro e nem para defender publicações que contradizem o objetivo maior da atividade jornalística, que é oferecer ao público a informação mais relevante da melhor forma possível.
Como já escrevemos em outro texto desta revista, “o sensacionalismo jornalístico não existe para informar, mas entreter. Um dos recursos usados por esse tipo de jornalismo é, exatamente, o da sensacionalização da ciência, construindo estereótipos que reduzem descobertas científicas a anedotas de botequim e levam o público à indiferença. Nenhum engajamento vale esse preço”.
*Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência
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