Samba e punk convivem harmoniosamente na Vila Carolina, em São Paulo
Pesquisa da USP analisa as disparidades e a boa convivência entre o samba e o punk no bairro da região norte da capital paulista
Por Camilly Rosaboni
Jornal da USP
Imaginar um espaço mutuamente convivido entre punks e sambistas pode ser difícil, mas Paulo José Khoury de Andrade não só fez essa análise, como desenvolveu o tema em sua dissertação de mestrado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, analisando a relação entre os dois estilos musicais em um bairro da zona norte de São Paulo.
Entre 2017 e 2021, Khoury produziu sua dissertação de mestrado intitulada Vila Carolina: um reduto de bambas e de punks, sob a orientação da professora Flávia Camargo Toni. O objetivo do trabalho era compreender o porquê de duas linguagens tão díspares se desenvolverem na mesma região, apresentando o bairro paulistano da Vila Carolina em sua relação direta com duas expressões culturais: samba e punk rock. O método de pesquisa foram entrevistas com nomes importantes dos estilos musicais do bairro.
O espaço da Vila Carolina fica localizado na zona norte da cidade de São Paulo, situado no distrito do Limão. Junto aos bairros de Vila Palmeiras, Vila Santa Maria, Vila Siqueira, Vila Carbone e as demais vilas vizinhas, formam uma grande marcha urbana. “Não tinha uma regra. Sambistas e punks estavam espalhados por esses loteamentos da região”, explica Khoury.
Acordes pesados e pandeiros
A ideia de pesquisa de Khoury veio de seu gosto pela música. O pesquisador conhecia a Vila Carolina como um bairro dos punks. Quando descobriu, por meio de uma música da escola de samba Camisa Verde e Branco, que a mesma região era referência para os acordes pesados e o batuque dos pandeiros, o pesquisador buscou analisar como se dava essa relação. “A música falava ‘Vila Carolina, reduto de samba’. Eu falei ‘é a mesma Vila Carolina dos punks?’, então eu fiz essa associação”, conta o pesquisador.
No entanto, essa não foi a primeira aposta de tema de Khoury, pois ele tinha receio de que os moldes tradicionais da USP limitassem sua ideia. “Eu pensava que a USP jamais ia querer falar de escola de samba, futebol de várzea e movimento punk, mas tive uma surpresa positiva”, ressalta o pesquisador.
Em entrevista ao Jornal da USP, Khoury conta sobre sua dificuldade em acessar documentos que contassem a história do bairro da zona norte paulistana. “Não tem muita gente que escreve sobre essa região de São Paulo e boa parte das pessoas que viveram esse processo, ou já estão bastante idosas ou já faleceram”, lamenta ele. Mas o pesquisador observa que outros registros foram deixados pelos moradores. “Eles produziram músicas, uma outra forma de mostrar a sua presença nesse canto da cidade”, conta.
O método utilizado para a pesquisa foram entrevistas com os moradores do bairro, feitas coletivamente, com as experiências de cada representante do estilo musical. “O Paulo nos adotou e nós o adotamos”, comenta Moizes Pires, um dos representantes do samba na pesquisa de Khoury.
Algumas entrevistas foram feitas em bares, já que esse costumava ser um espaço mútuo de convivência entre os grupos musicais. “Um lugar que sambistas e punks frequentam igualmente é o bar. Esse é um espaço dentro da Vila Carolina que fatalmente vai aproximar esses dois universos”, conta o pesquisador do IEB.
O samba
No século 20, o Largo da Banana, na zona oeste da capital paulista, era o berço do samba. Quando foi desfeito para integrar trechos da Avenida Pacaembu, muitos grupos musicais se deslocaram para bairros periféricos, como a Vila Carolina, contribuindo para que a força do samba crescesse nessa região.
Além disso, o samba da Vila Carolina é composto de várias referências no estilo musical, como as escolas de samba Camisa Verde e Branco, Sociedade Rosas de Ouro, Mocidade Alegre, Unidos do Peruche e muitas mais. A escola que teve uma ligação maior com o bairro foi a Portelinha de Vila Carolina, que já não existe mais.
Por volta de 1970, entre o retorno dos ensaios das escolas de samba, os participantes se reuniam para batucar em um grupo que, futuramente, iria se tornar a Portelinha. Apesar das rivalidades, “a Portelinha era a única escola que unia todos os ritmistas e sambistas”, conta Mauro Ezequiel, filho do fundador da Portelinha, Mário Ezequiel.
Entre sambas cantados esporadicamente, a ideia de criar uma escola de samba surgiu entre os moradores. “A gente subia e descia as ruas cantando nosso enredo, então viramos escola”, conta Mauro. Mas os subsídios eram reduzidos. “A prefeitura não ajudava. Como nós estávamos começando, o dinheiro tinha que sair da diretoria da escola”, conta ele. A verba passou a ser recebida quando a Portelinha começou a desfilar nos carnavais.
Mas a existência da Portelinha durou pouco, sendo desfeita em 1986, por problemas de gestão. “A Portelinha teve uma vida curta pelo potencial que ela tinha”, lamenta Moizes. Mesmo favorecendo a integração entre os grupos de músicos, a administração pode ter enfraquecido a ordem interna da escola de samba. “Apesar desse potencial, a má administração foi a principal responsável pelo fim da escola”, explica Khoury.
Ao Jornal da USP, Khoury conta que o samba mudou com o tempo. Os instrumentos foram adaptados à vida urbana e os temas mudaram. “As escolas de samba passam a dar destaque para uma sonoridade média e aguda, diferentemente do que acontecia nas senzalas, com batuques de sonoridades mais graves”, afirma ele. “Antes os temas falavam sobre plantio, colheita, e hoje os temas são outros”, complementa.
Moizes, como um dos representantes do samba na pesquisa da Khoury, contribuiu para o estudo por meio das memórias que detinha sobre o bairro em seu Facebook Memórias De Vila Palmeiras E Região. “O Moizes tem uma função de embaixador das memórias dessa região”, admira Khoury. Nessa rede social, Moizes também ajuda a comunidade a obter alimentos, cadeiras de roda e muito mais.
Além disso, Moizes direcionava as pessoas certas que poderiam conversar com Khoury sobre a pesquisa. “Por acaso, quando ele falou que era punk rock, eu falei que conhecia o fundador desse movimento: o Ariel Uliana Júnior”, conta Moizes.
O punk
O movimento punk é originário do Hemisfério Norte, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Apesar disso, encontrou grande força em terras brasileiras, como o bairro de Vila Carolina. “Há muitos exemplos que a gente pode usar para relacionar a Vila Carolina com o samba. Mas, por outro lado, é na Vila Carolina que vai nascer uma linguagem, estética e sonoridade totalmente diferentes, que é o punk rock”, conta Khoury.
Em meados de 1970, gangues do punk se organizavam pelo bairro, com estilos bastante característicos. “A gente conhecia a outra gangue até pelo jeito de andar, de se vestir e as músicas que escutavam. A gente já sabia identificar”, conta Ariel, representante do punk descrito na pesquisa de Khoury, relembrando das rivalidades existentes entre os punks.
O bairro da Vila Palmeiras foi o lar de Ariel durante toda a sua vida, juntamente ao rock. A princípio, escutava o rock comercial, que passava nas rádios nos anos de 1960. Na década seguinte, passou a escutar e produzir rocks que falavam da realidade social vivida pelas pessoas, quanto à violência policial, as guerras no mundo, as doenças, mas também as particularidades da juventude e dos bairros que frequentavam. “A gente não via as bandas retratarem a realidade que a gente via. Então a gente começou a fazer um som diferente”, conta Ariel.
Ariel participou de algumas bandas, como o grupo Restos de Nada, sua primeira banda formada. Com ela, participou dos festivais A Um Passo do Fim do Mundo, que celebravam o movimento punk, com 54 bandas em dois palcos paralelos, entrevistas com público, músicos, escritores e artistas. Além disso, fez parte da primeira gangue punk da Vila Carolina, a Carolina Punk.
Convivência harmoniosa
Apesar dos estilos diferenciados, samba e punk produziam seus sons com muita harmonia social e musical. Os grupos se reuniam em diferentes partes do bairro de Vila Carolina, mas com muito respeito às especificidades de cada estilo de música. “Existia um estigma de rivalidade entre samba e punk, mas aqui dentro não tinha”, conta Moizes, referindo-se ao bairro de Vila Carolina.
Entre melodias leves e pesadas, os estilos musicais se relacionavam pelas letras produzidas. “A gente fazia música rebelde, para questionar o que estávamos vivendo, e o samba era a mesma coisa, porque ele falava do cotidiano que a gente passava, mas com uma sonoridade diferente”, conta Ariel.
Paulo afirma que o punk e o samba continuam com a mesma força de antes. “O punk continua produzindo gerações e gerações de muleques atrevidos, contestando a situação em que vivem. E o samba continua sendo o maior patrimônio cultural que o Brasil produziu”, observa ele.
O conhecimento sobre a riqueza cultural da música no bairro de Vila Carolina se encontra, em grande parte, espalhado pelos acervos e memórias dos moradores. “O samba da Vila Carolina está um pouco pulverizado, assim como a história da Portelinha. Mas ela existe e está na cabeça deles”, expõe Khoury, referindo-se aos moradores do bairro. “É algo muito oral, falta virar documental”, afirma Ariel.
A pesquisa de Khoury foi uma das poucas iniciativas de juntar os dois estilos musicais e suas representatividades no bairro e registrar as memórias vividas pelos moradores. “Muitas pessoas do samba e do punk já foram embora. Então, se ele não tivesse feito esse trabalho, as histórias orais teriam se perdido”, observa Ariel.
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