Por Carlos Orsi*
Os quatro “X” e as reticências do título podem ser substituídos livremente pelo leitor. Vale “homeopatia” e “asma”; vale “acupuntura” e “dor nas costas”. Tá valendo, até mesmo, “fosfoetanolamina sintética” e “câncer”. Não me surpreenderia se houvesse exemplos por aí associando todo e qualquer par “pseudoterapia/doença” possível, concebível ou imaginável.
A explicação curta e grossa é que o ser humano é impressionável, e tende a fazer associações indevidas de causa e efeito. Mesmo que a cura seja real, o fato de uma recuperação ocorrer depois de um remédio ou tratamento não prova que o remédio ou tratamento causou a cura.
Praticamente todo mundo morre alguns minutos ou horas depois de tomar um copo de água, e nem por isso supomos que beber água seja a causa da morte.
A resposta longa pode ser algo como o texto que segue abaixo, e inclui a diferença entre causa, correlação e uma certa dose de latim.
Essa tendência para associações indevidas às vezes recebe o nome de falácia post hoc ergo propter hoc: “depois daquilo, logo por causa daquilo”. Se um evento significativo se segue a outro, então o anterior é tomado como causa do posterior: a sangria curou a febre, a cueca vestida do avesso me fez passar no Enem.
Experimentos conduzidos por psicólogos indicam que ilusões de causalidade são facilitadas por dois tipos de manipulação – densidade de efeito e densidade de causa. No caso de questões de saúde, uma densidade de efeito significa que a doença em questão tem uma alta taxa de remissão espontânea.
Em outras palavras, as doenças tendem a resolver-se sozinhas, ou os sintomas passam por ciclos de amenização. É por isso que fundamentalmente qualquer remédio para resfriado “funciona”, seja canja de galinha, pílula multivitamínica ou homeopatia: o resfriado ia passar de qualquer jeito!
Densidade de causa, por sua vez, acontece quando o número de pessoas tentando a pseudocura é elevado, o que aumenta a chance de surgirem exemplos de supostos “resultados positivos” que chamam a atenção do público. Modismos como a fosfoetanolamina se encaixam aqui, bem como as curas pela fé.
Para ficar num exemplo clássico: durante séculos, o templo de Esculápio em Epidauro, na Grécia, foi o principal centro de cura do mundo antigo. Doentes dirigiam-se até lá para se submeter a um ritual chamado incubação.
Nesse rito, os afligidos passavam a noite dormindo numa área especial do templo, o abaton, esperando que Esculápio, o deus da Medicina, lhes aparecesse em sonho e ditasse o tratamento adequado.
Arqueólogos já encontraram inúmeras placas votivas, contendo depoimentos de pacientes satisfeitos que gravaram, para a posteridade, seus sonhos divinos e curas maravilhosas. Hoje, o templo de Epidauro está em ruínas.
A despeito dos séculos acumulados de depoimentos positivos e relatos sinceros de cura, não se veem mais multidões ansiosas pela próxima incubação, e ninguém sugeriu (ainda) incluir passagem aérea pra Epidauro no SUS.
Além da ilusão de causalidade, outro fator que pode dar a impressão de que um tratamento inócuo (ou mesmo prejudicial!) está fazendo bem é a variabilidade natural da doença.
O estado de saúde de uma pessoa oscila naturalmente: um dia você acorda melhor, um dia pior; gripes leves e resfriados passam por conta própria; hematomas desaparecem; ressacas passam; dores crônicas se acentuam, depois diminuem; etc.
Se você está se sentindo mal hoje, há uma boa chance estatística de que vá estar melhor amanhã, ou depois, mesmo que não faça nada. Mas se você tomar um uísque, um passe de reiki ou uma vitamina C agora, talvez venha a atribuir essa melhora ao drinque (ou à vitamina, ou ao passe, ou a tudo).
O gráfico abaixo foi adaptado do ensaio The Psychology of Fringe Medicine (algo como “A Psicologia da Medicina Alternativa”), de autoria do jornalista Karl Sabbagh, que em 1993 havia publicado o livro Magic or Medicine?: An Investigation of Healing & Healers (“Mágica ou Medicina? Uma Investigação sobre Curas e Curandeiros”).
Gráfico sobre variabilidade natural das doenças
A linha serrilhada mostra a variação da qualidade de vida — a percepção de saúde — de um paciente sofrendo de alguma doença grave.
Ele mostra que, embora a tendência geral (a menos, claro, que haja um tratamento eficaz e a cura ocorra) seja de declínio, essa piora raramente é contínua: há momentos de aparente remissão, e há momentos em que tudo parece desabar.
O raciocínio é o seguinte: o paciente tende a abraçar alguma terapia alternativa quando está no desespero, em algum momento como o ponto “A” do gráfico.
Caso ele não morra, a mera variação natural, então, tende a levá-lo ao ponto “B”, e a melhora será atribuída ao tratamento. Caso ele morra — isto é, caso o ponto “A” seja, de fato, o início da derrocada final — basta dizer que a terapia foi aplicada “tarde demais”, ou que o paciente teve azar, ou lhe faltou fé.
Ilusões de causalidade, variabilidade natural e outros fatores que não mencionei aqui, como o efeito placebo, dificultam bastante o trabalho de determinar que tipo de tratamento, afinal, funciona mesmo para determinada condição – o que realmente vale a pena utilizar e encher o saco do paciente, em vez de apenas deixá-lo em paz.
Foi para contornar essa dificuldade que se criaram os métodos de teste pré-clínico e clínico duplo-cego, randomizados e com grupo placebo.
Esses são justamente os mesmos testes em que os tratamentos ditos “alternativos” ou “integrativos e complementares” são reprovados (se passassem, não seriam mais nem “alternativos” ou “complementares”, mas apenas tratamentos médicos).
É preciso reconhecer, no entanto, que hoje em dia não se pode mais dizer que não existem estudos apontando a eficácia de coisas como homeopatia ou imposição das mãos. Os estudos até existem!
Mas também é preciso lembrar que o fato de haver um punhado de estudos dizendo que XXXX funciona não anula o fato de que existem centenas ou milhares de estudos mostrando que XXXX é uma besteira, ou que revisões críticas dos estudos, com resultados positivos, sobre essas práticas mostram que a maioria deles tem péssima qualidade.
O consenso da comunidade científica — a preponderância da evidência — vale mais, em princípio, que qualquer artigo ou tese individual.
Isso não quer dizer que a ciência seja uma ortodoxia estática: isso quer dizer que alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias. E que evidências realmente extraordinárias precisam ter qualidade.
*Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da revista Questão de Ciência. Originalmente publicado neste link
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