Para Carlos Orsi, falsificações do passado histórico e da realidade factual, a exemplo de Ratanabá, fazem parte da mentalidade dos anos Bolsonaro: vão da escravidão repaginada em luta meritocrática à negação das queimadas, à construção de falsas controvérsias em torno de vacinas e urnas, passando pelo saudosismo revisionista da ditadura
Por Carlos Orsi*
Há evidência de ocupação humana na Amazônia que data de pouco mais de dez mil anos atrás, e sinais do que poderíamos chamar de “primórdios da civilização” — agricultura, cerâmica — que surgem por volta de dois mil anos depois.
Daí e até a chegada dos europeus, a arqueologia e a antropologia revelam um conjunto de sociedades sofisticadas e complexas, incluindo centros urbanos (ainda que muito diferentes da estereotípica cidade do Velho Mundo) no Xingu e um polo de poder político e cultural onde hoje fica a cidade de Santarém, no Pará.
A Amazônia pré-cabralina é fantástica e fascinante em si (quem quiser mais detalhes encontra um ótimo material a respeito no livro “1499”, do jornalista Reinaldo José Lopes), e certamente não merece ser alvo de mistificações construídas a partir de clichês retirados, com pequenas adaptações cosméticas, de romances vitorianos, histórias em quadrinhos e teorias de conspiração. Que é exatamente o que a “lenda” de Ratanabá (uso a palavra “lenda” entre aspas porque se trata de criação individual deliberada, não de peça do folclore) é.
Como obra de ficção, seria um livro ruim — derivativo, sem viço, originalidade ou criatividade, cheio de erros histórico-geográficos que destruiriam a suspensão de descrença de qualquer leitor um pouco mais bem informado. Como candidato a “fato científico”, o conto de Ratanabá representa algo que, para roubar uma das frases favoritas do físico e diretor do Instituto Questão de Ciência Marcelo Yamashita, “não chega nem a estar errado”.
Vamos, então, ver quais os problemas que assombram a fictícia Ratanabá, que teria sido a “capital do mundo” há 450 milhões de anos – e entender o aparente paradoxo de uma ficção ruim disfarçada de verdade ser um reflexo perfeito do Brasil atual.
A data em si é absurda: há 450 milhões de anos, no período Ordoviciano, a criatura mais semelhante a um ser humano disponível no planeta Terra eram os peixes ósseos (“semelhante” só porque eram vertebrados).
As formas de vida animal mais abundantes consistiam nos invertebrados marinhos, como cefalópodes (polvos, lulas), gastrópodes (mariscos) e equinoides (estrelas-do-mar). Na terra firme, ainda não havia nem sequer árvores — que só entram em cena uns 100 milhões de anos mais tarde.
Levando em conta a deriva continental, as áreas onde hoje se encontram as cidades amazônicas de Manaus (AM), Santarém (PA) e Porto Velho (RO) estavam, na época, perto do Polo Sul. América do Sul e África eram uma só massa.
Os proponentes da “hipótese Ratanabá” tentam contornar esse pequeno incômodo afirmando que os construtores e moradores da cidade eram ETs (a “civilização Muril” que teria chegado à Terra 600 milhões de anos atrás). Mas essa é uma “solução” apenas aparente, já que aumenta, e não diminui, o número de alegações extraordinárias que requer evidência.
Falando em evidência, a que se oferece em apoio ao “ratanabanismo” é um tanto quanto constrangedora e, se levada a sério, na verdade contradiz a narrativa de alienígenas que estiveram por aqui milhões de anos antes do surgimento das primeiras aves e mamíferos.
Por exemplo, em uma “live” conduzida em fevereiro do ano passado (cujo registro encontra-se disponível no YouTube), os principais promotores da ideia, o empresário Urandir Fernandes de Oliveira e a escritora Isah Pavão, exibem imagens do que seria um artefato cerimonial do povo de Ratanabá, uma espada — muito, mas muito mesmo, semelhante às espadas ornamentais de bronze que se encontram com facilidade à venda em lojas de artigos de decoração de gosto duvidoso, ou no comércio de antiguidades.
Para além da semelhança com o reles artesanato humano, chama a atenção o fato de que a empunhadura da espada é decorada com a imagem em relevo de um pássaro — o perfil de um condor andino — que, ora bolas, ainda não existia durante o suposto apogeu da tal civilização muril, 450 milhões de anos atrás.
Anacronismos tolos como esse, somados a demonstrações assombrosas de ignorância, repetem-se o tempo todo no discurso dos profetas de Ratanabá: por exemplo, estruturas como o Forte Príncipe da Beira, em Rondônia, construído originalmente no século 18, uma obra muito bem documentada em sua época (e alvo de estudos históricos recentes) são descritas como vestígios da suposta civilização muril.
Também, a existência, em várias partes do mundo, de fortificações com muralhas pontiagudas ou em forma de estrela é apresentada como um “mistério” que requer intervenção alienígena para ser desvendado. Na verdade, o surgimento desse tipo de fortificação na Europa (e sua exportação para as colônias ultramarinas), uma resposta estratégica ao uso de pólvora e artilharia nos conflitos da Era Moderna, é extremamente bem documentado na história militar.
Um livreto sobre Ratanabá disponível em PDF na internet, “Conexões entre os povos Muril e a cidade perdida da Amazônia”, alega, assim como diversas postagens ratanabistas em redes sociais, que quando o povo muril foi embora, milhões de anos atrás, alguns ficaram na Terra, miscigenaram-se e tornaram-se os ancestrais de certos grupos indígenas da Amazônia.
Um problema básico, para além do fato de que os primeiros humanos disponíveis para miscigenação só apareceram na face da Terra vários milhões de anos depois do suposto abandono da “capital do mundo”: ETs deixando descendentes com humanos?
Como Carl Sagan já disse décadas atrás, a probabilidade de um ser humano ter filhos com uma petúnia é infinitamente maior do que a de reproduzir-se com um extraterrestre; pelo menos, nós e a petúnia evoluímos no mesmo planeta, temos ancestrais comuns e ambas as espécies usam DNA para guardar informação genética.
A sugestão de que a espécie humana (em sua totalidade, ou alguma população específica) seria fruto do cruzamento de alienígenas com primatas pré-humanos foi proposta originalmente por Erich Von Däniken na primeira edição do absurdo “Eram os Deusas Astronautas?”, e apelidada (não por Däniken) de “Teoria dos Astronautas Tarados”. E este não é o único tema antigo reciclado no conto de Ratanabá.
A ideia de uma “capital do mundo” subterrânea, reservatório de sabedoria milenar e de conhecimentos científicos extraordinários, surgiu entre esoteristas europeus no século 19.
Em 1884, o ocultista francês Saint-Yves D’Alveydre (1842-1901) resolveu aprender sânscrito, e o professor que contratou, uma figura misteriosa — provavelmente um embusteiro — assinava as lições que passava ao discípulo como “Hardjji Scharipf Bagwandass, da Grande Escola Agartthiana”.
Para encurtar a história, em 1886 Saint-Yves, talvez sob a influência de Scharipf, publicou um livro “revelando” ao mundo a existência de Agarttha, cidade subterrânea localizada na Ásia Central, habitada por grandes mestres e detentora de conhecimentos e tecnologias maravilhosos, incluindo luz a gás cuja fumaça não polui, mas purifica, o ar (um padrão em utopias esotéricas é que as maravilhas tecnológicas encontradas lá sempre refletem a tecnologia e o jargão da época em que o autor vive: Agarttha tinha luz a gás, Ratanabá tem “bioplasma”).
O tema logo disseminou-se do ocultismo para a literatura popular, e o total de histórias de aventura, fantasia e ficção científica em que o intrépido protagonista descobre uma cidade perdida, habitada por sábios e cientistas com tecnologias “para as quais o mundo ainda não está preparado”, publicadas nos últimos 120 anos deve ser imensurável.
Nos quadrinhos, é legião o número de super-heróis que receberam seus poderes após visitar algum reduto secreto na Mongólia ou no Tibet.
Ratanabá é o mito do Eldorado sul-americano recauchutado sob a forma de um transplante, para o Brasil, do clichê vitoriano da “cidade perdida do Himalaia”. Essa transferência geográfica é algo que talvez merecesse pontos de originalidade — só que não. A manobra já tem mais de 100 anos. Foi antecipada em obras de ficção como “A Rainha do Ignoto” (1899), de Emília Freitas (1855-1908), “A Filha do Inca” (1930), de Menotti Del Picchia (1892-1988) e, mais a propósito, “A Cidade Perdida” (1948) de Jeronymo Monteiro (1908-1970).
A distorção delirante de fatos históricos, seja para gerar cliques em vídeos monetizados, vender livros ou promover destinos turísticos já é um problema grave o bastante em si: deseduca, cria falsas expectativas e dissemina uma visão equivocada do que é pesquisa histórica e científica.
Quando a distorção é usada para promover bandeiras políticas autoritárias, xenófobas e o negacionismo ambiental, a situação fica ainda pior.
Antes de Ratanabá, o empresário Urandir Ferreira era mais conhecido por ter apresentado ao mundo o “ET Bilu”, ter produzido um “documentário” terraplanista (o que pode explicar sua ignorância em relação à deriva continental) e protagonizado um vídeo onde afirma que é impossível ocorrerem queimadas na Amazônia porque, afinal, a floresta é úmida (sério).
Se este último ponto já sugere uma ampliação do negacionismo astronômico e geográfico dos terraplanistas para o ambiental dos bolsonaristas, o contexto de Ratanabá transforma a impressão em certeza. A moral da história, na fábula da “capital do mundo” proposta por Urandir, é de que potências estrangeiras, o movimento ambientalista, ONGs e os “governos passados” (Bolsonaro excluído, portanto) estão a serviço de uma grande conspiração global (os “governos do caos”) para desapropriar a Amazônia e pôr as mãos na tecnologia bélica da civilização muril.
O aquecimento global também seria uma farsa, cortina de fumaça para que os “governos do caos” usem suas tecnologias secretas de modificação climática contra eventuais desafetos.
Nesse ponto, a narrativa torna-se incompatível não apenas com a realidade (o que já era desde o início) mas também consigo mesma: por que um povo puro, desenvolvido, ultra-civilizado, sábio, etc., etc., precisaria de armas de destruição em massa?
Eram caçadores-atiradores-colecionadores, por acaso? Se os “governos do caos” são assim tão poderosos e até controlam o clima, por que precisam agir por meio de ONGs, jornalistas, subterfúgios? Por que ocorrem desastres ambientais nos países ocidentais desenvolvidos, os supostos donos dessa tecnologia climática?
A trama se desmancha ainda em vários outros pontos. Num momento, a localização da cidade perdida é um segredo absoluto; em outro, recebemos informações razoavelmente precisas sobre sua localização (150 metros abaixo do solo, num local marcado por três obeliscos ou cruzeiros, situado a 250 km da cidade amazonense de Lábrea – dados mencionados aos 27-28 minutos da “live”). E assim por diante.
Na mesma “live”, Urandir Ferreira, que coleciona homenagens recebidas em Casas Legislativas, passa um bom tempo agradecendo o apoio de políticos. No início da última semana, foi alvo de generosos elogios proferidos pelo ex-secretário nacional de Cultura Mario Frias, uma das figuras homenageadas no vídeo de 2021.
A convergência entre negacionismo, pseudociência, pseudo-história, populismo, nacionalismo e autoritarismo é algo que já aconteceu em outros países. Trata-se de um processo que o Brasil vive desde o início do atual governo, agravado durante a pandemia.
Falsificações do passado histórico e da realidade factual fazem parte da mentalidade dos anos Bolsonaro: vão da escravidão repaginada em luta meritocrática à negação das queimadas, à construção de falsas controvérsias em torno de vacinas e urnas, passando pelo saudosismo revisionista da ditadura. Ratanabá nunca existiu, mas como projeto e ideia é a capital intelectual do Brasil de Bolsonaro.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de “O Livro dos Milagres” (Editora da Unesp), “O Livro da Astrologia” (KDP), “Negacionismo” (Editora de Cultura) e coautor de “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares)
Publicado originalmente na Revista Questão de Ciência
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