Ciência e saúde

Pseudociências: por que é preciso confrontá-las

No meio da comunicação científica, a constatação da existência do efeito rebote veio se somar a preocupações, legítimas e ainda mais antigas, quanto ao tom ácido de certas contestações das pseudociências

Por Natalia Pasternak e Carlos Orsi*

Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara

Minha cara minha cuca ficar odara

Deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara

Pra ficar tudo joia rara

(…)

 “Odara”, Caetano Veloso, 1977

O biólogo Jerry Coyne, autor do livro Por Que a Evolução É Uma Verdade, costuma dizer que, quando um artigo de divulgação científica tem uma pergunta como título, a resposta é sempre “não”. Este aqui é a exceção à regra.

Uma interrogação recorrente que encontramos aqui na Revista Questão de Ciência é se nossa proposta editorial básica, de apontar as inconsistências e os erros escabrosos das doutrinas, terapias, práticas, etc. que fazem parte da grande família das pseudociências, cumpre alguma função real e relevante no universo da comunicação científica.

Mesmo aceitando que o conceito de pseudociência é útil e válido (o que um de nós já defendeu em outro artigo), a pergunta é pertinente, num sentido bem empírico: afinal, confrontar pseudociências ajuda a tornar a sociedade mais racional? Criticar ideias pseudocientíficas reduz mesmo a adesão das pessoas a elas e, por tabela, o dano que as pseudociências causam?

A resposta automática (alguns diriam, ingênua) é: sim, claro. A pessoa acredita em bobagem, você explica pra ela que é bobagem, ela para de acreditar. Uma visão um pouco mais sofisticada da cognição humana, no entanto, parece sugerir que as coisas não são assim tão simples.

Há alguma pesquisa, por exemplo, que aponta a existência de um “efeito rebote” na comunicação: às vezes, quando tentamos explicar os fatos para alguém que está convencido do contrário – aquecimento global e evolução são casos clássicos — a pessoa, depois de ouvir nossos argumentos, termina ainda mais convicta de seu ponto de vista errôneo.

No meio da comunicação científica, a constatação da existência do efeito rebote veio se somar a preocupações, legítimas e ainda mais antigas, quanto ao tom ácido de certas contestações da pseudociência – é plausível, afinal, que chamar uma pessoa de ignorante ou idiota não ajude a torná-la mais receptiva à mensagem que se deseja passar.

Essa combinação de fatores acabou levando algumas pessoas a acreditar que a única divulgação científica realisticamente possível seria aquilo que, em homenagem a Caetano Veloso, decidimos chamar de “divulgação odara” – supernovas estonteantes, bactérias bioluminescentes, borboletas lindas, peixes coloridos, invenções fantásticas.

Mesmo reconhecendo que pseudociências podem ser um problema, os aderentes da linha só-odara-salva tendem a acreditar que a divulgação científica, feita dessa forma resplendorosa, pode ter uma espécie de efeito osmótico, educando o público a respeito dos modos e métodos da ciência, tornando-o menos suscetível a pseudociências no médio-longo prazo. E sugerem que a prevalência de crenças pseudocientíficas no mundo atual é prova de que a estratégia de confronto fracassou.

Há, claro, uma série de erros nessa cadeia de raciocínios.

Primeiro, confundem-se riscos (efeito rebote, tom inadequado) com inevitabilidades. A resposta racional ao risco de afogamento não é evitar piscinas a todo custo, é usar boias e, depois, aprender a nadar.

Existem diversas pesquisas sobre comunicação de ciência, vieses cognitivos, resiliência de sistemas de crença, que podem ser mobilizadas para melhorar a apresentação dos argumentos contra pseudociências. Mesmo neste mundo de sensibilidades exacerbadas, ainda é possível dizer a uma pessoa que ela está enganada sem, necessariamente, ofendê-la.

Segundo, confundem-se os públicos-alvo: mesmo pressupondo que é inútil tentar mudar o ponto de vista de um astrólogo profissional, há o ponto de vista das pessoas  que iriam consultá-lo, se não recebessem uma orientação melhor a tempo. Ou os pais, informados de que os conselhos do naturopata não valem o desgaste dos tímpanos em ouvi-los, podem decidir vacinar os filhos, afinal.

Se o astrólogo pode se ofender com uma tirada sarcástica ou uma frase como “astrologia é igual a terraplanismo”, o consulente em potencial pode ter a curiosidade aguçada pelo humor – e buscar mais informação. Existem estudos que indicam que é possível “vacinar” pessoas contra crenças falaciosas.

Existem, aliás, estudos que sugerem que, mais do que teimosia ideológica ou apego emocional – que seriam os principais motores do “efeito rebote” – crenças falsas persistem por uma espécie de preguiça, ou inércia, mental, definida como a falta de estímulo para refletir melhor sobre a questão colocada. Nesse contexto, uma declaração provocadora, uma alfinetada, talvez forneça o incentivo necessário.

Terceiro, não é suficiente apontar a popularidade atual das pseudociências para demonstrar que o método do confronto é inútil. Não conhecemos a condição contrafactual – qual seria a popularidade das pseudociências sem o confronto – e a crítica ignora a diferença de potência e de meios entre os campos (todos os jornais têm uma coluna de horóscopo; revistas de dieta e bem-estar propagam bobagens às grosas). Além disso, a objeção pressupõe uma expectativa exagerada: o fato de ainda haver mosquitos no mundo não torna os inseticidas inúteis.

Um teste prático

Por fim, a ideia de que a divulgação-odara basta para reduz a vulnerabilidade da população a pseudociências, por osmose, não tem apoio nas evidências. O que reduz a crença em pseudociências é – surpresa! – a crítica direta às pseudociências, desde que bem feita.

E nada como um trabalho científico para ilustrar isso. Segundo Dyer e Hall (2018), é preciso dar nome aos bois. Autores de um estudo extenso sobre crenças injustificadas, esses pesquisadores constatam que a mera compreensão da ciência, e de seus métodos, não leva à rejeição de pseudociências.

O estudo foi feito com estudantes universitários, que responderam a um questionário detalhado sobre crenças pessoais que variavam de fenômenos paranormais e medicina alternativa a monstros como o Pé Grande e óvnis, e comparou os efeitos de dois tipos de instrução – um curso regular de metodologia científica e um curso específico sobre a diferença entre ciência e pseudociência – na redução da prevalência de crenças injustificadas entre os alunos.

As questões de pesquisa a que o estudo se propunha a responder eram:

Será que um curso de pensamento crítico que focaliza especificamente as pseudociências pode reduzir crenças injustificadas? E um curso de metodologia científica, que não aborde diretamente pseudociências? 

Será que existem categorias de crenças injustificadas que são mais fáceis de reduzir do que outras?

Existem diferenças qualitativas entre os estudantes (diferenças demográficas, indicadores acadêmicos, ideologias) que afetam a capacidade de abandonar essas crenças?

Os pesquisadores aplicaram o questionário a dois grupos teste e dois grupos controle. O primeiro grupo teste foi formado por estudantes de um curso que tratou especificamente da diferença entre ciência e pseudociência, onde os alunos foram apresentados às falácias mais comuns, ao uso de retórica inapropriada, aos vieses cognitivos e ao uso indevido de estatística. Ou seja, esse curso dava nome aos bois, e identificava o que é ciência e pseudociência, ao mesmo tempo em que ensinava os alunos a pensar de forma racional e crítica.

O segundo grupo teste foi formado pelos estudantes de um curso regular de metodologia científica, que ensina como a ciência é feita, mas sem mencionar pseudociências. E os grupos controle participaram de cursos da área de ciência, sem qualquer relação com o ensino de método científico ou pensamento crítico.

Os resultados foram analisados levando em conta o perfil dos alunos. Os questionários foram respondidos no início e ao final dos cursos, para medir a possível redução de crenças injustificadas e tentar responder às três questões de pesquisa acima.

Os nomes e os bois

Respondendo à primeira questão, o estudo mostrou que o grupo que participou do curso de pseudociência foi o que mais reduziu suas crenças injustificadas. Sobre o tipo de crenças, as mais fáceis de reduzir são as envolvendo medicina alternativa, monstros, poderes paranormais e fantasmas, e as mais difíceis, aquelas sobre teorias da conspiração. As diferenças demográficas entre os estudantes mostraram correlação significativa com as respostas ao questionário na fase pré-teste, mas não na redução de crenças após o curso.

Trata-se de um resultado empírico que desfere um golpe significativo no mito, muito acalentado no mundo da divulgação científica odara, de que, no combate às pseudociências, é mais eficiente apenas dar as ferramentas necessárias para que o cidadão chegue às suas próprias conclusões do que somar, a essas ferramentas, uma explicação clara de por que focinho de porco não é tomada.

A área onde houve maior redução de crenças injustificadas foi a de pseudociências em saúde. Isso é uma ótima notícia. Considerando que a medicina integrativa e complementar é uma área que pode trazer consequências graves para a saúde pública e para o cidadão, parece-nos que vale a pena investir em prover informação adequada e explícita sobre essas práticas, expondo-as como o que realmente são, sem eufemismos, e sem temer que a exposição clara e desassombrada da verdade vá ofender alguém.

*Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora nacional do festival de divulgação científica Pint of Science para o Brasil e presidente do Instituto Questão de Ciência

*Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

Publicado originalmente na Revista Questão de Ciência sob o título “Confrontar pseudociências faz sentido?”

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