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Progressivo: banda Mar Assombrado lança “Geografias estranhas”
O disco da banda pernambucana de rock progressivo foi lançado nas plataformas musicais digitais, com direito a um lyric video
Por Marcos Toledo
Um projeto mais do que pessoal que reúne rock progressivo com poesia. Para quem já o conhece, Mar Assombrado, combo músico-literário concebido e liderado pelo poeta, compositor e guitarrista André de Sena, apresenta seu terceiro álbum independente, Geografias Estranhas, obra que marca a combinação perfeita de uma proposta inovadora impulsionada há seis anos. O disco foi lançado nas plataformas musicais digitais, com direito a um lyric video exclusivo nas mídias sociais.
O mar é uma constante para quem vive em uma cidade litorânea como o Recife. No caso de André de Sena, entretanto, a leitura sobre a massa oceânica reflete seu olhar peculiar, e mais complexo, a respeito do universo da ficção – do fantástico e da fantasia, do onírico e não raro do horror. E Mar Assombrado é sua nau em uma épica aventura poético-musical.
Poesia, literatura e rock progressivo
Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor de livros de poesia, contos e ensaios, André de Sena possui uma experiência literária que lhe permite a construção de um conteúdo muito mais substancial com letras que transcendem a mera viagem psicodélica e o rock progressivo mais comum. Ambas as expressões se encontram, na mesma latitude e longitude – e se justificam na parceria, sendo ora uma o leme e a outra o timão da criação, e vice-versa -, por força da experimentação.
“O prog é rock, mas vai além do tradicional. Eu o amo por conta disso, por haver ampliado as portas”, justifica o compositor. “Dá elementos na falta de uma caracterização específica. Possibilita a mistura da literatura com a música abrindo um leque muito maior que talvez outros subgêneros mais castiços não conseguiriam.”
A harmonização dos dois ingredientes principais não acontece à toa. Tanto a literatura quanto a música possuem fórmulas especificas que resultam num conceito formal, o que não impede a experimentação. No caso da poesia e do prog, as possibilidades de experimentação são infinitas, com declamações se revezando com a voz cantada e sem as amarras do tempo da canção mercadológica. Parte-se de um modelo, de um esquema de música tradicional, como referência, mais a ideia é sempre ir além, em busca do novo.
“Há uma simbiose entre música – melodia e harmonia – e a poesia. Quando o poema, já pronto, entra na canção, há uma possibilidade de polissemia que se amplia”, explica o autor. A flexibilidade desse conceito permite, por exemplo, que os mesmos temas sejam executados por uma banda com uma dúzia de integrantes ou, por exemplo, por uma formação de quarteto de voz, flauta e percussão numa proposta artística sempre em aberto.
Prog e poesia também se amarram pelos nós da psicodelia – muito presente no progressivo clássico -, pela questão da polissemia. “Uma característica importante da psicodelia é o caos orquestrado, não apenas randômico. Os poemas são trabalhados dentro do imagismo, bem autorreferencial e que se aproxima do surrealismo”, afirma o autor.
“Esses níveis de aleatoriedade têm ligações com o imanentismo, que é uma poética voltada para si mesma, em que as palavras, os referentes, voltam-se para eles próprios e não para as referências. Isso faz com que se gerem níveis de aleatoriedade controlada com o próprio poema. O poema puxa a experiência para ele próprio que difere, na recepção, de uma pessoa para outra.”
O último lastro de estabilidade do projeto é o próprio mar – o Mar Assombrado. Claro, como já citado anteriormente, sob a ótica do autor. “O mar causa fascínio e horror também”, considera André de Sena. “É muito rico, mutável, vertical. Traz ambiência positiva, mas também horror. O ser humano conhece mais sobre outros cantos do universo do que sobre o fundo do mar, dizem os cientistas. O Mar Assombrado tem essa leitura, que é o horror que causa medo e que fascina. Não é um horror concreto – medo de tubarão, por exemplo. É um horror ontológico, existencial, mas atrativo. Minhas memórias ligadas ao mar são muito poéticas e também assombradas”, confessa.
“Eu sou um poeta. Não me considero músico de formação. O objetivo do Mar Assombrado é pegar essa poesia e a levar para o palco. A meta principal é transformar o rock num sarau literário, poético.”
Referências literárias
Para chegar a seu novo destino, a nau Mar Assombrado manteve a tripulação-base dos álbuns anteriores, com André de Sena (composições, poemas, arranjos, guitarras base e solo, violão e vocais), Marco Melo (guitarra solo e técnico de gravação e mixagem do projeto no Estúdio Carranca), Rafael Bernardo (contrabaixo elétrico), Douglas Brito (bateria) e Diogo Santana (teclados base e solo). Nesta terceira jornada, embarcaram ainda Daniel Félix (teclados solo), Pedro Huff (violoncelo), Henrique Albino e Gilmar Black (flautas transversais e saxofones) e Guto Santana (gaita), além das vozes de Emília Caldas, Vanessa Sueidy, Telma Scherer e Gleyce Vieira como artistas convidados.
Durante o processo de gravação a ideia é que cada um dos navegantes tenha sua autonomia objetivando-se gerar uma nova alquimia.
“Pouca gente sabe, mas há música em que gravamos em separado, sem que alguns músicos tenham acesso à melodia que foi feita anteriormente. Fazemos isso para que cada um fique livre, sem estar amarrado a uma melodia tradicional, tendo em vista novos processos polifônicos”, revela André de Sena.
O que diferencia o prog poético do Mar Assombrado do free jazz, por exemplo, é justamente a referência literária. “Existe o conceito. Antes de gravar a faixa Ao Som dos Tritões, falei para Henrique Albino dos tritões mitológicos que chegam soprando um búzio para a passagem do cortejo de Netuno”, diz André de Sena.
“A imagem já existe, mas o improviso é dele. Há o improviso, mas a partir de um elemento que é bastante poético, que é a imagem”, completa.
Sobre a viagem da banda desde 2014, ano em que o projeto Mar Assombrado se iniciou, diz: “Começamos agora a colher os frutos. De lá para cá são apenas seis anos. Mas já temos três álbuns, bons, bem trabalhados. A abertura que o progressivo possibilita, nessa energia que o rock cria com a participação de instrumentos de música clássica, faz com que a dinâmica seja mais enriquecida. Mas isso não quer dizer que tudo seja possível. O fundamental é o conceito, é a imagem. Há uma sinergia entre som e imagem. As músicas são encaixadas como se o poema chamasse a música”.
Vozes femininas presentes em declamações
Outra peculiaridade neste álbum é a maior representatividade das declamações, feitas apenas por vozes femininas, com a exceção do próprio autor, que no resultado parece entoar os versos como se fosse um jovem e inocente poeta resignado diante das intervenções de vocais femininos maternalistas de uma tragédia grega.
“É quase como o aedo antigo com temor diante das Musas. Emilinha, Vanessa e Telma aparecem com o sortilégio das antigas deusas da arte. Na Grécia Antiga os poetas tinham medo delas, porque as Musas também os poderiam enlouquecer. Tâmiris, o Trácio ousou competir com elas e enlouqueceu”, considera o compositor.
Por fim, e também muito importante, convém avisar aos marujos de primeira viagem que a estética visual proporcionada pelo belo projeto gráfico assinado pelo ilustrador Alcides Burn mantém a proposta imagética dos discos anteriores, que inevitavelmente remetem mais ao clássico heavy metal do que ao prog. Uma identidade visual que funciona como um quadro em exposição numa galeria e representa uma fração do que os poemas e as músicas levam o ouvinte diante dela a imaginar. “Gosto muito da binomia. A capa de Alcides trabalha muito com isso. As capas do prog clássico são muito clean”, compara André.
“Alcides é especializado em metal. O Mar Assombrado pega essa estética do horror, do grotesco, para expor o lado sublime da música. Essa quebra de expectativa é muito enriquecedora, inesperada. Você nunca vai saber o que vai rolar no álbum. Eu dou o conceito e ele desenvolve. No primeiro disco há o barco. A partir do segundo, a visão é de dentro do barco.”
A arte expressa bem o que é a grande filosofia da banda: tudo é assombrado e passível de assombração. “Assombração não é um medo. É um horror, um fascínio”. Ad-miratio (admiração). É o estupor, que Aristóteles fala na Metafísica: ‘Toda filosofia surge com um espanto.’ Esse fascínio pela realidade está no mar e em todo canto. Buscamos essa binomia. As coisas só existem em confluência umas com as outras. O horrível e o sublime. Olhar as coisas com uma visão nova, outro significado. ‘Tornar conhecido o desconhecido e desconhecido o conhecido’, como diria Novalis. Mas, claro, acima de tudo, dentro de uma proposta fantástica, romântica e poética”.
O início da viagem até “Geografias estranhas”
Para os não iniciados, vale a pena conferir os dois trabalhos precursores – Entre as Ondas, sob as Árvores (2015) e Canções do Farol (2017), também disponíveis nos mesmos serviços de streaming – em cuja progressão percebe-se a evolução de um sarau experimental sem igual.
O que eram apenas ideias experimentadas desde o fim dos anos 1980, e ganharam calado a partir de 2014 – quando começou a ser gravado o primeiro disco -, ressurgem agora, no terceiro álbum do Mar Assombrado, tão evidentes e claras como uma viagem num oceano calmo em um claro dia de verão.
Se em Entre as Ondas, sob as Árvores havia ainda uma verve muito inspirada na pegada do hard prog; e Canções do Farol trouxe uma sonoridade com incursões mais trovadorescas chegando a flertar com o lirismo musical e as cordas acústicas, o novo Geografias Estranhas sintetiza todas essas experimentações com muito mais estofo de elementos acústicos, eletroeletrônicos, versos cantados e declamados, sopros de metais, mas também riffs vigorosos de guitarra. É o amadurecimento significativo de todas as ideias literárias e musicais.
“A poesia está se autoafirmando cada vez mais no Mar Assombrado”, nota André de Sena. “A música As Horas, por exemplo, é um poema de três páginas em versos alexandrinos clássicos com rock and roll. Geografias Estranhas é o mais poético dos três discos. O poema enriquece a música”, considera o autor.