Ciência e saúde

O que é uma prática pseudocientífica

Se a eficácia é comprovada, mas a teorização que a explica é estapafúrdia, eis aí uma prática pseudocientífica

Por Adriano Facioli*

Vou lhes contar aqui um pouco sobre como percebo a produção de conhecimento, seja ela científica ou não. 

Penso que a Filosofia trabalha com conceitos. Basta-lhe a consistência interna. Não carece de campo empírico, porque não faz alegações empíricas sobre o mundo. Deve proceder com rigor e é um campo sistemático e válido de conhecimento.

Quando faz alegações sobre o mundo, o faz com base nos conhecimentos já estabelecidos. Assim transforma e produz novos conceitos e categorizações. Não é ciência. E mesmo assim tem método, consistência e validade como um campo de conhecimento sistemático.

Alegações empíricas

Porém, quem faz alegações empíricas, sobre o mundo, tem que testar empiricamente essas alegações. Não há outro jeito.

Quem alega que uma técnica é mais eficaz do que outra, ou que devemos proceder de tal modo e não de outro, está fazendo alegações sobre o mundo, que precisam ser devidamente testadas e com a melhor metodologia disponível.

É isso que faz a ciência e, nas mais diversas áreas, existe uma hierarquização da consistência e solidez de métodos para tal. Assim, é fundamental que hipóteses e alegações sejam sempre sistematicamente testadas. E quando uma hipótese não é confirmada, por mais que se tenha apego a ela, deve ser descartada.

Existe uma etapa do trabalho científico que está mais atrelada à construção de hipóteses. E esta etapa demanda, por vezes, instrumentos próprios ou mais próximos da atividade filosófica. Nesta etapa há inclusive o papel importante da criatividade.

A ciência, contudo, não pode se restringir a esta etapa, na qual são erigidos constructos hipotéticos. Para ser ciência é necessário que se complete o ciclo. E este ciclo da produção do conhecimento científico só se completa com a testagem rigorosa e sistemática dessas hipóteses.

Protociência ou prática pseudocientífica

Um campo de conhecimento que tenha se paralisado na produção de constructos hipotéticos, e que ainda não avançou de modo sólido na testagem de hipóteses, não tem condições de ser considerado científico, e isso não é necessariamente demérito. 

Isso é o que muitos classificam como protociência.

Então o mais problemático não é o fato das hipóteses ainda não terem sido devidamente testadas. É mais problemático se essas hipóteses não forem testáveis ou se nesse campo existir resistência para que sejam testadas. E isso é o que pode ser classificado como uma prática pseudocientífica.

Se existe alegação de eficácia e esta mesma eficácia nunca foi devidamente testada, essa alegação é pseudocientífica.

Se a eficácia é comprovada, mas a teorização que a explica é estapafúrdia, eis uma outra prática pseudocientífica.

Cafuné

Suponha que um cafuné, de seu tutor, seja comprovadamente eficaz para acalmar um gato em uma determinada situação de ansiedade moderada.

A alegação de que é eficaz, em condições específicas, já devidamente testada (pelos métodos mais consistentes disponíveis) é científica. 

Porém, suponha que alguém queira explicar essa eficácia com base em uma suposta interação com energias cósmicas curativas das mãos de alguém que se pauta pelo pensamento positivo.

Esta segunda alegação não é científica. Por quê? Porque, nas inúmeras variáveis que propõe, ainda não foi devidamente testada.

Então é importante não confundir a eficácia de uma determinada técnica com a explicação de sua eficácia, porque essas duas coisas podem estar em campos totalmente diferentes. 

Como se caracteriza uma prática pseudociêntífica

Portanto, prefiro falar em práticas pseudocientíficas do que, necessariamente, em pseudociência. Porque mesmo as ciências já estabelecidas podem ser usadas por meio de práticas pseudocientíficas que, na minha compreensão, são caracterizadas por: 

  1. Resistência sistemática à testagem.
  1. Usos reiterados da falácia de apelo à autoridade, sempre convocando um mestre fundador como referência irrefutável.
  1. Inexistência de ceticismo. E assim se repetem constantemente as teses de algum ídolo fundador, sem qualquer tipo de questionamento ou de proposição de testagem mínima para se compreender melhor as alegações que eram feitas por esse ídolo quase-guru.
  1. Uso abusivo de hermenêutica. Quando as tentativas de melhor compreensão dessas alegações se dão geralmente no campo hermenêutico, somente com a produção de mais sentidos em cima de alegações já cristalizadas e não com investigação empírica sólida.
  1. Viés de confirmação. Quando o debate e as pesquisas da área geralmente servem mais para confirmar as alegações estabelecidas pelos ídolos fundadores do que para realmente se compreender o objeto de estudo.
  1. Teorias intactas. Quando as teorias do campo em questão pouco se alteram no tempo, com propostas originais se mantendo incólumes. Como se as proposições da física antiga se mantivessem intactas até hoje, dois mil anos depois.
  1. Valorização da opacidade do discurso. Porque infelizmente há autores e até tradições que escolhem o obscurantismo discursivo como instrumento de poder. Turvam as águas para parecer que são profundas. Confundem a complexidade do objeto com complicação do discurso, e se esquecem que a racionalidade demanda, antes de tudo, clareza mínima para que seja publicamente demonstrável e compartilhada.
  1. Extensões e confusões conceituais. Quando conceitos comuns são constantemente estendidos e renovados, se distanciando completamente do que significam na linguagem ordinária.

Clareza da linguagem

PS: Sobre todos os itens citados cabem desenvolvimentos mais pormenorizados e talvez eu pudesse até mesmo elencar mais elementos para essa lista.

Eu gostaria, porém, de fazer um adendo especial ao item 7. 

Sinto que os esforços acadêmicos para produzir conhecimento a partir de autores que se expressam de modo menos inteligível, são muitas vezes até louváveis. Mas não há como justificar obscurantismo com a alegação de que sua escrita era mais poética, por exemplo. 

Quem deseja produzir conhecimento, deve primar pela clareza da linguagem, evitando-se assim extensões e confusões conceituais nefastas à produção científica e até mesmo filosófica do conhecimento.

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* Adriano Facioli é escritor, psicólogo formado pela USP, mestre e doutor em psicologia clínica pela UnB, professor na Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal

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