Ciência e saúde

Positivismo? O livro “Que bobagem!” um ano depois, com Carlos Orsi

Positivismo é uma palavra engraçada, né? Porque ela é usada no discurso acadêmico, em certos setores, como um pejorativo (“Fulano é positivista”) sem que ninguém nunca pare para pensar exatamente o que positivista quer dizer

Por AD Luna

Em julho de 2023, chegava ao mercado editorial brasileiro o livro “Que Bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”. A obra é assinada por Carlos Orsi, jornalista, escritor e editor-chefe da revista Questão de Ciência, e Natália Pasternak, professora e pesquisadora da Universidade Columbia (New York), dos Estados Unidos, presidente do Instituto Questão de Ciência.

O livro “Que Bobagem!” gerou muitos debates que se desenvolveram nas semanas seguintes ao seu lançamento em diversos veículos de imprensa, redes sociais e canais do YouTube. Os debates giraram em torno dos conceitos de ciência e pseudociência.

Nosso convidado, Carlos Orsi, fala sobre o livro, um pouco mais de um ano depois dele lançado. Ele participou da edição #50 do programa InterD – ciência e cultura, transmitido, todas as quartas, às 20h, na Universitária FM do Recife. Ouça e leia a transcrição da entrevista.

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InterD: Faz mais de um ano desde o lançamento do Que Bobagem!. Que avaliações você faz do impacto da obra desde então?

Carlos Orsi: Acho que o impacto da obra, depois de um ano, é muito positivo. Conseguimos colocar no debate público, trazer à tona para a população brasileira, uma série de questões que antes ou só ocorriam dentro da academia ou que nem eram realmente discutidas no país. Principalmente a questão da psicanálise, mas não só ela.

É sempre muito importante, esse é o nosso principal objetivo, fazer a informação correta e completa sobre assuntos que interferem na vida das pessoas, ou pelos quais as pessoas se interessam, por questões de saúde, etc.

E o livro cumpriu esse papel e segue cumprindo esse papel.

InterD: Existe a ideia de lançar um volume 2? Caso sim, qual seria o foco e o modo de abordagem?

Carlos Orsi: Temos recebido alguns pedidos para fazer o volume 2. A gente até brinca [que] já tem até título, seria o Mais Bobagem. Mas isso não está nos nossos planos no momento.

Inclusive, estamos trabalhando aqui com a editora da Universidade de Columbia, numa coleção de livros sobre temas relacionados à ciência.

E temos alguns outros projetos para o Brasil ainda em estado de gestação. Quando estiverem mais bem formulados e tivermos uma ideia mais clara do que eles são e como vão sair, anunciamos.

InterD: Bom, observando diversos vídeos e textos críticos ao livro, a gente vê muita gente falando que o livro é “uma obra positivista”, e que vocês dois não entendem de filosofia da ciência, mais ou menos isso. O que vocês pensam a respeito?

Carlos Orsi: Positivismo é um termo muito amplo, não é? É difícil saber até a que as pessoas estão se referindo. O positivismo clássico de Augusto Comte, o positivismo lógico da escola austríaca, o empiricismo lógico dos austríacos que vieram para os Estados Unidos. Enfim, tem várias nuances e abordagens.

Mas não, nós não nos consideramos positivistas em nenhum sentido estrito. A nossa visão de epistemologia de filosofia da ciência está resumida, acho que de uma forma bem clara, na introdução do livro.

E eu realmente gostaria de deixar claro que a nossa visão de filosofia da ciência, do ponto de vista mais simplificado possível, está muito próxima do senso comum. Que é a ideia de que uma afirmação sobre como as coisas funcionam no mundo deve corresponder a como as coisas funcionam no mundo, e essa correspondência precisa ser testada e comprovada de alguma forma.

Esse é o nosso único critério, o nosso critério mais básico, mais fundamental. E é muito curioso ver que, realmente, tem muita gente em várias áreas que se pretendem científicas que discordam disso.

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InterD: Tempos atrás, Carlos Orsi já havia mandado aqui para a gente um depoimento falando sobre essa questão do positivismo, e como esse depoimento ainda não havia ido ao ar, pedimos a para divulgar aqui. 

Carlos Orsi: Olha, positivismo é uma palavra engraçada, né? Porque ela é usada no discurso acadêmico, em certos setores, como um pejorativo: “Fulano é positivista” sem que ninguém nunca pare para pensar exatamente o que positivista quer dizer.

No senso comum das pessoas que usam isso como pejorativo, provavelmente eles estão imaginando os momentos em que a autoridade da ciência foi invocada para basear políticas públicas preconceituosas, danosas, prejudiciais, como eu acho que o caso mais óbvio e clássico é o das práticas eugenistas, principalmente nos Estados Unidos e Alemanha, no início do século XX, ou o darwinismo social também, na Inglaterra do século XIX.

Aquela coisa de sobrevivência do mais apto, se você é pobre é porque você não é apto, enfim, uma série de absurdos que eram defendidos dizendo: “Ah, sinto muito que isso seja feio, cruel e doloroso, mas é assim que a vida é porque é o que a ciência diz.”

Quer dizer, então eu acho que as pessoas que usam positivismo como pejorativo estão pensando nisso, em alguns momentos históricos em que o argumento “isso é científico” foi usado como instrumento de opressão, de repressão e até de genocídio, como em alguns momentos. Mas positivismo não é isso. Positivismo é, a rigor, um movimento filosófico.

Positivismo, na verdade, é aplicado para dois movimentos filosóficos. O primeiro positivismo, o positivismo clássico é o de Auguste Comte na França, século XIX – que acabou virando uma coisa meio maluca, com igrejas para adorar a razão e outras coisas do gênero. E que influenciou muito o pensamento brasileiro, de uma certa parte da elite brasileira no século XIX, sempre com releituras muito curiosas, dada a história do nosso país.

E depois do positivismo clássico, por assim dizer, de Auguste Comte, ocorreu o movimento dos positivistas lógicos na Áustria, início do século XX, que acabou desembocando no empiricismo lógico, na década de 1950.

Mas por que todas essas coisas são chamadas de positivistas? Qual era a relação entre o positivismo de Comte, com o positivismo lógico dos austríacos, com o empiricismo lógico, que acabou florescendo mais nos Estados Unidos?

Eu acho que, se dá para imaginar alguma linha condutora nisso, é uma preocupação com o rigor com que se busca definir o que pode e o que não pode ser considerado conhecimento. A responsabilidade embutida em dizer que eu sei, ele sabe, ou “isto é um conhecimento”, em oposição a “isto é uma opinião”, “isso é um palpite”, “isso é o que eu acho”, “isso são vozes da minha cabeça”.

Uma coisa que costumo dizer é que o ser humano é muito bom para identificar problemas reais e chegar a soluções falsas. Então, por exemplo, acho que a solução do Comte para essa questão era meio maluca. Acho que os positivistas lógicos da Áustria tiveram algumas boas ideias, que os empiricistas lógicos tiveram ideias ainda melhores. Todas são altamente criticáveis, todas têm seus problemas, nenhum deles realmente resolveu a questão de uma forma cabal. Estamos discutindo isso até hoje.

Mas eu acho que essa preocupação de que tipo de afirmação merece ser levada a sério… Por que a gente leva um relatório da ONU sobre aquecimento global mais a sério do que a gente leva os tweets do Carlos Bolsonaro sobre o mesmo assunto? Quer dizer, o que dá a alguém o direito de afirmar que sabe alguma coisa e que o mundo deveria levar o que ele está falando a sério?

Acho que, nesse sentido, a gente é acusado de positivista quando alguém chega dizendo: “não, mas tem essa erva que é usada há 2 mil anos” e você fala “tá, mas cadê o teste clínico?”

Ou quando chega também um ensaio maravilhosamente bem escrito, uma retórica fantástica, dizendo que a mente humana é feita de três partes, e aí você pergunta: “Tá, mas e daí? Cadê o experimento? Como isso se reflete em termos de neurônios, e tudo mais?” Aí você está sendo chamado de positivista, porque você está questionando o status daquelas alegações, o direito dessas alegações de serem consideradas conhecimento.

Para mim, o espírito do positivismo é esse: questionar a arrogância de afirmar que se sabe algo. “Como você sabe? Por que você sabe? Quem disse que você sabe? Me mostre como você sabe.” E, nesse sentido, o positivismo está muito longe de ser pejorativo. Eu acho que é a coisa mais responsável que qualquer ser humano preocupado com a sobrevivência da espécie, com a justiça na sociedade, com o equilíbrio do ecossistema e com o respeito às diferentes culturas pode fazer: insistir nessa pergunta: “Como você sabe?”

Dizer que algo é conhecimento é uma afirmação extremamente pesada, exige um profundo senso de responsabilidade. O meu palpite não é conhecimento; conhecimento é outra coisa. Muitas vezes, na vida, somos obrigados a agir com base apenas em palpites ou opiniões, porque não há tempo para produzir o conhecimento necessário e precisamos tomar decisões rápidas.

Mas reconhecer isso não significa admitir que o conhecimento é impossível ou que qualquer palpite vale por conhecimento. Não é falta de respeito dizer para alguém que aquilo que ele acha que é conhecimento não é apenas um palpite.

Eu acho que, para mim, o positivismo é um profundo respeito pela palavra “conhecimento”. Nesse sentido, não me sinto nem um pouco ofendido quando me chamam de positivista. A natureza do conhecimento é importante demais, é um rótulo importante demais para ser aplicado a qualquer coisa.

InterD: Bom, muitíssimo obrigado, Carlos Orsi! Já deve ter vindo aqui umas quatro vezes, eu acho. Muito obrigado, sempre é muito bom tê-lo aqui. Você teria algo mais a acrescentar?

Carlos Orsi: Agora, enquanto eu terminava de gravar a última resposta, minha coautora apareceu e sugeriu uma consideração extra. É basicamente lembrar que o livro Que Bobagem? tem 12 capítulos, e o capítulo sobre psicanálise acabou sendo o que chamou mais atenção, atraindo mais críticas e polêmicas, etc.

Mas existem outros 11 capítulos que também atraíram críticas e polêmicas, embora em menor intensidade. Seria muito interessante que os leitores, especialmente aqueles que ainda não leram o livro, mas só ouviram falar, conhecessem esses outros 11 capítulos e prestassem atenção neles.

Gostaríamos de realmente convidar o público a conhecer o livro em sua totalidade, desde a introdução até a última página do último capítulo.

InterD: Bom, o livro Que Bobagem? tem 334 páginas e aborda 12 temas que, na visão de Carlos Orsi e Natália Pasternak, não passariam pelo crivo da ciência. São eles: astrologia, homeopatia, acupuntura, curas naturais, curas energéticas, modismos de dieta, psicanálise e psicomodismos, paranormalidade, discos voadores, pseudoarqueologia, antroposofia e poder quântico. 

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