Gastar o tempo das aulas de Ciências com criacionismo é desperdício capital e intelectual
Por João Lucas da Silva*
As descobertas científicas foram, aos poucos e de modo não intencional, derrubando-nos dos pedestais em que nos colocamos. O modelo heliocêntrico nos tirou do centro do Universo. Depois, as descobertas sobre as dimensões do Universo, tanto no tempo quanto no espaço, fizeram-nos perceber que somos muito pequenos e efêmeros. Mas nenhuma dessas rupturas foi mais brutal e sofre mais resistência até hoje do que o estabelecimento de nossa ancestralidade compartilhada com todas as formas de vida da Terra.
Ao invés de criaturas especiais, criadas em separado do restante da natureza, somos parte integral dela. Descendemos de, e somos, primatas. Não me surpreende que haja resistência à aceitação das conclusões da biologia evolutiva, portanto. Não se trata apenas de uma questão de letramento científico. Seres humanos são multifacetados, e sabemos que outros fatores, que não a razão pura, influenciam a formação e a sustentação de crenças.
Por isso, não me surpreendi ao saber que um candidato à prefeitura da cidade de São Paulo, Pablo Marçal (PRTB), fez afirmações no mínimo equivocadas sobre evolução. Segundo reportado pela mídia, Marçal teria dito que a Teoria da Evolução “é uma forma de tirar a existência de Deus”.
Ele pode, claro, ver as coisas dessa forma, mas o fato é que muitos cientistas de renome são religiosos e mantêm uma crença em algum tipo de divindade, ao mesmo tempo em que não negam a evolução. Ou seja, Marçal propôs uma falsa dicotomia. Não é binário assim: você pode crer em alguma força sobrenatural e reconhecer a evidência a favor da evolução.
Ele ainda teria dito que:
“Darwin é um cara que teve um problema de paternidade, se revoltou contra Deus. É um dos maiores cientistas do mundo, mas fez a gente acreditar que a gente é ancestral do primo do macaco, por causa de um polegar opositor. Sendo que, se você for olhar no reino animal, o coala também tem um polegar opositor. Desde quando eu era aluno de escola pública, eu nunca acreditei que eu era primo ancestral de macaco”.
Darwin ficou, sim, muito abalado com a morte de uma de suas filhas, Anne Elizabeth, em 1851, mas isso não o tornou ateu, nem o fez necessariamente desistir do Cristianismo, ou odiá-lo. Segundo J. Van Myhe e M. J. Pallen, que avaliaram essa possibilidade, há “pouca ou nenhuma evidência que a sustente”. Adicionalmente, concluem que “há evidências suficientes de que a perda de fé de Darwin ocorreu antes da morte de Annie”.
Aliás, Darwin nunca foi necessariamente ateu. Embora não gostasse de expor suas visões sobre o assunto, em carta para John Fordyce datada do dia 7 de maio de 1879, portanto 20 anos após a publicação de “A Origem das Espécies”, Darwin escreveu que lhe parecia “um absurdo duvidar que um homem possa ser um ardente teísta [ou seja, crente em Deus] e um evolucionista” e esclareceu:
“Em minhas flutuações mais extremas, nunca fui um ateu no sentido de negar a existência de um Deus. — Penso que, de modo geral (e cada vez mais à medida que envelheço), mas nem sempre, que agnóstico seria a descrição mais correta da minha mentalidade”.
Marçal também se equivoca quando diz que Darwin “fez a gente acreditar que a gente é ancestral do primo do macaco, por causa de um polegar opositor”. Não, Darwin nunca disse isso. Na verdade, temos ancestrais em comum com todos os primatas (todos os seres vivos, para ser mais específico), mas nenhum “macaco” ou “primata” moderno é nosso ancestral, nem nós somos ancestrais de nenhum deles.
E os dados que nos permitem inferir, por exemplo, que somos primatas, vão muito além de um simples polegar opositor, mas passam pelo estudo detalhado da anatomia, fisiologia, bioquímica, genética etc. Muitas fontes de dados independentes apontam para a mesma conclusão: somos primatas, e nossos parentes vivos mais próximos são os chimpanzés.
O candidato segue tratando o fato biológico da evolução como uma “crença” que pode ser acatada ou descartada por uma questão de gosto – não de evidência. Não é nenhuma proposição radical minha, nem novidade, presumir que um tipo de negacionismo atrai outros.
Começa ignorando fatos sobre a origem e evolução das espécies, daí logo depois passa-se a negar outros aspectos fundamentais do mundo explicados pela ciência. Afinal, se é “sobre crer”, então eu acredito no que quiser e sigo em frente, sem consequência alguma. Pode ser assim que as coisas funcionam. Mas em um universo alternativo, não no que vivemos.
Finalmente, ele disse:
“Eu defendo o estado laico, só que a gente não é um estado ateu. Por que na escola nós não fazemos as crianças pensarem? Tem duas, três, quatro, dez teorias. Vamos pensar para a gente chegar numa conclusão?”
Também defendo a laicidade do estado, embora saiba, por minha vivência dentro das escolas, que ela é frequentemente violada. Mas não é violada devido ao ensino da evolução, claro. O ensino do criacionismo no Brasil, contudo, seria muito provavelmente enviesado, favorecendo um setor religioso muito específico, embora numericamente dominante — o Cristianismo. Duvido que seria ensinada qualquer versão de criacionismo Hindu nas escolas.
O principal responsável pelas propostas do candidato para a educação, Anthony T. Wright, ainda teria afirmado o seguinte: “Acho que tem que apresentar as teorias: tem de apresentar a Teoria da Evolução, e que existe também a Teoria do Design Inteligente, que é muito interessante”. Carlos Orsi, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, já discutiu sobre criacionismo na escolas aqui (recomendo a leitura), mas irei tecer alguns comentários.
A simples existência de visões alternativas não implica que tenham o mesmo peso, ou seja, que expliquem a realidade igualmente bem. E outra coisa: o tempo em sala de aula é precioso, como quem já foi professor sabe muito bem. Eu poderia citar muitas teorias interessantes, porém erradas. Deveriam os professores ensiná-las como se fossem igualmente relevantes? Não, evidentemente.
Não existe equivalência entre Evolução e Criação: o criacionismo é uma péssima alternativa, que carece de base científica e evidências. Gastar o tempo das aulas de Ciências com criacionismo é desperdício capital e intelectual.
O criacionismo pode ser discutido nas escolas? Talvez sim, mas devo dizer que é uma opinião minha. Creio que em aulas de história da ciência, epistemologia e ensino religioso, o criacionismo poderia ser debatido. Assim, ficaria claro que o assunto está sendo abordado por razões históricas, epistemológicas ou relativas à fé. O que não devemos fazer é validar o criacionismo como uma alternativa científica, pois simplesmente não é.
*João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade
Originalmente publicado na Revista Questão de Ciência
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