Por Marcelo Yamashita *
Imagem de Ryan McGuire por Pixabay
Imagine que um colega te convide para dar uma volta e durante o passeio comece a chover, mas, ao invés de abrir o guarda-chuva e lamentar o evento fortuito, a pessoa comece a ficar realmente brava e a te culpar por “fazer chover”. Embora absurda, situações completamente análogas à situação descrita aparecem diversas vezes em trupes de haters que invadem as redes sociais e grupos de WhatsApp: “Você também só sabe é mesmo chover!”, diria Olímpico para Macabéa no livro “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector.
Uma coisa que aprendemos desde que lançamos o Instituto Questão de Ciência é ignorar os haters. O plural “haters” poderia ser traduzida como “odiadores” ou “aqueles que odeiam”, e é um termo que se refere a pessoas que postam comentários de ódio ou críticas sem muito, ou nenhum, critério.
É o chamado cyberbullying, que costuma ser retroalimentado por uma minoria barulhenta. Apesar de haver alguns debatedores incansáveis na revista Questão de Ciência, a regra “não alimente os trolls” é válida neste contexto porque, na grande maioria das vezes, a briga não te levará a lugar nenhum. Haters não estão interessados em estabelecer algum diálogo razoável.
A despeito de todo o desconforto causado pela situação imposta, podemos invocar a personagem Pollyana e aprender algo com a estupidez alheia. Podemos identificar características comuns a esses haters e também diversas falácias lógicas nas argumentações.
Normalmente, existe uma clara associação entre ignorância (genuína ou deliberada) sobre o assunto, agressividade e uma ignorância da própria ignorância (no caso da ignorância genuína). Isso faz com que essas pessoas se achem preparadas para opinar sobre qualquer assunto.
Já escrevi em outro texto que se as pessoas conseguissem entender que correlação é diferente de causação, boa parte das pseudociências sumiria espontaneamente.
Vários comentários baseiam-se na falácia conhecida como post hoc ergo propter hoc (depois disso, logo, causado por isso).
Isto está, de certa forma, relacionado à dificuldade que as pessoas têm em identificar o que deve ser levado em conta para resolver uma questão.
Existem problemas complicados envolvendo, por exemplo, a melhora na situação da saúde de uma pessoa em decorrência do uso de um medicamento.
Neste caso, não é possível recorrer a uma simplificação de desenhos rigorosos para o experimento. É necessário que se considere um teste duplo-cego com grupos controle e placebo.
A esquiva desse protocolo rígido causa apenas a ilusão de que é possível concluir algo do experimento. A análise de como um experimento pode ser mal feito já foi publicada nesta revista.
Mas se em alguns problemas a complexidade é inevitável, existem outros em que a simplificação é necessária. A dificuldade, porém, de se identificar o que é relevante e descartável é algo generalizado.
É comum vermos tomadores de decisão discutindo o sexo dos anjos em assuntos simples. Entre físicos, diríamos que algumas pessoas têm dificuldade para enxergar uma vaca esférica.
A vaca esférica é uma alegoria para dizer que um problema deve ser aproximado até o limite onde é possível resolvê-lo dentro de um tempo razoável, e com um resultado aceitável.
Veja que até um problema de livros de física básica como, por exemplo, um lançamento de uma bola de tênis, se tornaria insolúvel se considerássemos todos os detalhes envolvidos.
Imagine levar em conta todos os pelos da bola, a variação da temperatura e densidade do ar, todas as reentrâncias e deformações da bola etc. Além de tornar o cálculo complicado, toda essa precisão não faria muita diferença no resultado final.
O abandono da razão não se reflete apenas na raiva do vocabulário utilizado, mas nas diversas falácias argumentativas. O viés de confirmação é algo bastante comum. Trata-se de escolher somente os exemplos que sustentam a sua conclusão.
Suponha que você queira concluir que ao jogar uma moeda para cima ela sempre dará cara.
A conclusão é obviamente errada, mas ignorando todas as vezes que a moeda cai com coroa para cima você chegará na conclusão desejada.
Na caixa de comentários é comum vermos dezenas de links mencionados por uma pessoa apoiando uma certa conclusão e outra pessoa colocando outros links de outros lugares que endossam alguma outra posição.
Isso poderia até dar margem a uma discussão produtiva, mas o que normalmente acontece é criar apenas uma disputa de quantidade. Pouca gente lê o que o opositor colocou.
A atitude de colocar vários links também revela um outro problema, que é a falta de discernimento dos leitores sobre o que é bom e o que é ruim – algo que não pode ser resolvido de maneira simples, sem um projeto de educação científica envolvendo toda a sociedade.
Outra característica dos comentários raivosos é o ataque ad hominem. Não é raro que pessoas, ao negarem o debate franco de ideias, tentem desqualificar a figura do interlocutor através de xingamentos, quando a validade ou a veracidade de uma determinada fala independe da identidade do interlocutor.
É claro que a construção de uma hipótese é fortemente afetada pela formação das pessoas, ou seja, é natural que um doutor em física, com base nos vários anos de estudo de mecânica quântica, não defenda as besteiras que são ditas por um coach ou guru quântico. De qualquer maneira, são sempre as ideias que devem ser refutadas.
Vale lembrar aqui o lema da Royal Society of London, Nullius in verba (latim para “nas palavras de ninguém”). O lema expressa a necessidade de sempre verificar as afirmações através de fatos determinados por experimentação.
E, se não devemos nos basear nos chamados “argumentos de autoridade”, também não devemos desmerecer alguma ideia simplesmente por causa do orador.
Finalmente, vale notar que os haters aparecem independentemente da inclinação política. Tanto a esquerda como a direita possuem apego a alguma crença de estimação mostrando que, neste caso, vale o provérbio “muito para o leste, já é oeste”. No fim, todos os haters são apenas negacionistas dos fatos. E eles existem em todos os lugares.
* Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência
Artigo originalmente publicado na Revista Questão de Ciência com o título “Ódio e negacionismo são faces da mesma moeda”
O simples fato de vivermos no século XXI já nos faz beneficiários da ciência e dos seus frutos, mesmo que a gente não se dê conta dessa verdade.
Os objetos que nos dão conforto, que nos dão prazer, que nos transportam, que nos emocionam, que nos informam (até este livro) só existem da forma como existem por conta dos conhecimentos científicos.
O cidadão que ignora fatos científicos básicos pode se tornar presa fácil de curandeiros e charlatões, gente que mente para os outros e, não raro, para si mesma.
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