O que são os cuidados paliativos? Médica pernambucana explica [VÍDEO]
Os cuidados paliativos são tema do InterD TV. Em entrevista ao músico e jornalista AD Luna, a médica pernambucana Lívia Interaminense, da unidade Recife, falou sobre as principais características dessa área da medicina, da atenção com pacientes e familiares e das perspectivas do setor no Brasil. Assista à entrevista na íntegra e leia a transcrição. Colaboração: Emanuelle Vital, assistente social – manuvsouza@hotmail.com .
INTERD: O que são os cuidados paliativos?
LÍVIA INTERAMINENSE: “Cuidados paliativos” vêm do termo “paliar”, que significa “manto”, “proteção”. A OMS, no ano de 2019, atualizou o conceito, e o cuidado paliativo é a atenção, o cuidado ofertado a todo paciente que é portador de uma doença que ameaça a continuidade da vida, no qual esse paciente porta sintomas descompensados.
Não só os sintomas físicos, orgânicos, mas psicológicos, sociais e espirituais. E tanto esse paciente quanto sua família podem receber o cuidado integral, com o intuito de aliviar e prevenir esse tipo de sofrimento, seja orgânico ou seja mental, e espiritual também.
E o que não são cuidados paliativos?
As pessoas tendem a confundir com… algo paliativo é quando você está fazendo uma gambiarra. Cuidado paliativo não é gambiarra, não é um jeitinho que a gente está dando para resolver uma coisa enquanto a gente está atrás da solução definitiva, por assim dizer.
E também cuidado paliativo não é quando não tem mais nada a se fazer. As pessoas, muitas vezes, colocam como se fosse ou tudo ou nada. Tudo é investimento pleno e nada é cuidado paliativo. Não é sobre isso.
A gente faz muita coisa. A gente tenta ofertar ao máximo ao paciente e à sua família dignidade. Cuidado dele de uma forma integral, para que ele possa viver aquele período tão difícil da melhor forma possível.
E como é que isso funciona na Florence?
A Florence oferece o que a gente chama de “hospice care”. O hospice care é um conceito dentro dos cuidados paliativos de uma dedicação aos pacientes que estão nos últimos dias de vida. O hospice care americano, que é o padrão, fala até de seis meses. E os pacientes vão para a instituição para passar seus últimos meses nessas instituições.
Mas, aqui na Florence, a gente diz que é para se passar, na verdade, os últimos dias, que são os dias em que, geralmente, o paciente está em mais sofrimento, com descompensação dos sintomas, com muito sofrimento, também, pelo lado da família, que precisa de um apoio de equipe interdisciplinar para poder vivenciar e ofertar ao paciente o melhor cenário.
Então é esse tipo de cuidado que a gente oferece aqui. Temos médicos 24 horas para poder medicar o paciente da melhor forma possível, e temos a equipe interdisciplinar, onde a gente aborda todo tipo de sofrimento, o psicológico, a questão respiratória, a questão motora – que muitas vezes está muito dolorosa, fatigada –, o acolhimento nutricional, a fonoaudiologia para poder deglutir da melhor forma possível, a psicologia para acolher os sofrimentos
Mas não é só a psicologia que trabalha nesse foco, é todo mundo, olhando um pouco do sofrimento dentro da sua área de atuação para amenizar aquele sofrimento de uma forma plena para o paciente, para que ele possa vir a falecer de uma forma natural, já que sua situação é irreversível, é incurável. E, o que ele merece de fato, nos últimos dias de vida, é uma morte sem sofrimento e tendo sua família acolhida dentro de todo esse cenário.
E também há uma preocupação com as crenças ou não-crenças religiosas das pessoas?
Com certeza. É um ponto importante nos cuidados paliativos, seja no hospice care, que são os cuidados de fim de vida, ou seja, todo o tempo que o paciente tem de vida, portando uma doença que ameace a continuidade dessa vida.
O sofrimento espiritual pode existir, independente de crença e religião. E aí a gente fala muito da espiritualidade em si, onde a gente tenta trabalhar essa questão existencial, independente da religião que o paciente porta.
A gente está aqui para respeitar os desejos, os valores, as crenças independente de religião, assim como cor, gênero, raça, isso não existe. A gente está aqui para respeitar a todos e poder ofertar, no fim da vida, um melhor cenário de dignidade porque estamos diante de uma situação grave, que a gente não pode reverter, mas que o paciente e sua família merecem ser cuidado, com todas as particularidades e individualidades de cada um.
Você falou sobre a família. É uma parte importante, também, a ser cuidada, que é a família.
Com certeza. As doenças que ameaçam a continuidade da vida, a partir do seu diagnóstico… a gente tem o grande exemplo do câncer, o tabu do câncer… quando você diz “câncer”, as pessoas já dizem “pronto, vai morrer” mesmo que isso não vá acontecer.
Mas, de fato, o câncer quando está na sua fase avançada, ou seja, com metástase, a gente entende que ela virou agora uma doença crônica e, por ser uma doença grave, isso vai levar, em algum momento, o paciente a vir a falecer. Então, nesse cenário, nesse momento do diagnóstico, não só o paciente quanto a sua família sofre e precisa também ser acolhida.
E é uma forma de, acolhendo os dois juntos, podermos amenizar o sofrimento dos dois. Porque muitas vezes o que existe? Nem o paciente quer falar de seu sofrimento porque sabe que a família está sofrendo, e nem a família quer falar nada porque tem medo de somar mais sofrimento ao paciente. Então isso por vezes acaba afastando o paciente e a família, numa questão de hiperprotecionismo e falha de comunicação, que na verdade afasta e não aproxima.
Muitas vezes, a nossa missão está justamente nisso. Acolher os dois, entender suas dores e trabalhar, enquanto equipe, para sempre aproximar e fortalecer os dois. E nunca para afastar. Então por isso que a gente fala dessa questão de equipe. Porque cada um vai coletando, dentro do seu campo de atuação, quais são essas dores, suas percepções.
E a gente se junta, senta, compartilha as vivências junto com aquele paciente e a família, e pode ir planejando projetos, vamos dizer “estratégias”, para ofertar àquele paciente e à sua família para ir sanando essas dores, esses sofrimentos, para que isso tudo passe da forma menos sofrida possível. Porque sempre vai existir um sofrimento.
Mesmo que ele seja acolhido, não quer dizer que o paciente vai morrer sem sofrer, que a família vai se despedir daquela pessoa sem sofrer. Não, o sofrimento ele existe. A gente só não pode permitir que esse sofrimento não seja acolhido e cuidado. Então é essa a posição da gente quando falamos desses cuidados de fim de vida.
A Florence existe, também, na Bahia, em Salvador, não é isso?! Por que escolheram o Recife como segunda clínica?
Um dos sócios fundadores, que é o Lucas [Andrade], teve a ideia de montar esse serviço – o primeiro serviço de hospice care no Nordeste – e ele é de Salvador, por isso ele montou lá. Mas ele já entendia desde o início, ele já sabia que o Recife era uma grande cidade na área de saúde. Recife é a referência em saúde no Nordeste.
O número de hospitais que nós temos, o número de especialidades médicas… a área de saúde do Recife é muito forte. Então é por isso que fomos a segunda capital escolhida para a inauguração da primeira filial da Florence, justamente devido a esse grande mercado que existe aqui na cidade do Recife, nessa potência, vamos dizer assim.
Por que você adentrou esse universo dos cuidados paliativos? O que foi que te chamou atenção?
Eu costumo dizer que fui uma privilegiada. Entrei cedo na medicina, nunca entrei com o desejo de salvar vidas, de ser a melhor médica… eu sempre tive o desejo de ser uma boa médica, fazer o meu trabalho da melhor forma possível e com dignidade para com aquele que eu estivesse atendendo.
E aí, depois, eu fiz a clínica médica, porque, quando a gente sai da faculdade, a gente sai com muitas inseguranças, sempre com muitas dúvidas. E, quando eu estava no final da clínica médica, eu descobri a geriatria.
Eu tinha uma boa relação com os idosos. Eu gostava de cuidar de idosos. E aí, na geriatria, quando estava fazendo a residência de geriatria, eu conheci os cuidados paliativos. Então foi tudo muito natural. Mas, vamos dizer, eu estou com 11 anos de formada, na minha época de formação, as pessoas não falavam de cuidados paliativos.
Na minha época de especialização, falava-se muito pouco e eram poucas as pessoas interessadas. Então eu vi uma oportunidade. Já que é uma coisa que eu me identifico, que eu posso fazer um trabalho bom, eu vou tentar novamente a residência, vou fazer uma nova residência. Foi minha terceira residência.
Eu já tinha feito clínica, geriatria e iria para a terceira residência. Seria o quinto ano já de especialização, fora os seis anos da faculdade. E também pensei em já fazer o mestrado, então passei mais esse ano estudando os cuidados paliativos e, cada vez que a gente vai estudando, a gente só vai se apaixonando.
Então digo que fui privilegiada porque foi um caminho traçado por Deus, parece. Porque fui identificando sinais, me identificando cada vez mais com a área e cá estou, como geriatra e paliativista. E super feliz com o que eu faço no meu dia a dia.
Tendo em vista o que acontece no país hoje em dia, qual a sua expectativa para o desenvolvimento dos cuidados paliativos no Brasil?
A Academia Nacional de Cuidados Paliativos é a organização brasileira que trabalha tanto com a disseminação do conhecimento sobre os cuidados paliativos quanto com o reconhecimento público de para que serve os cuidados paliativos.
Eles têm feito um trabalho, vamos dizer assim, plausível, louvável, que é, junto com as repartições públicas, falar cada vez mais sobre o que são os cuidados paliativos e a sua necessidade na assistência à saúde.
Então, em 2018, no final de 2018, a gente teve a publicação da resolução 41 da comissão tripartite, que é, justamente, as diretrizes para os programas de cuidados paliativos a nível do Sistema Único de Saúde. E, no ano passado, em 2021, saiu, também, a resolução do MEC de que a residência médica em cuidados paliativos, que era de um ano, passa a ser de dois anos.
E o que isso representa? Representa que estamos num caminho para sermos reconhecidos como especialidade, porque somos área de atuação, não somos especialistas, apesar de existir o “sou uma médica paliativista”, a especialidade, em si, ainda não é reconhecida. Então isso é um passo para ser reconhecido como especialidade.
Com esse reconhecimento é que a questão do mercado de saúde, seja na saúde pública, seja na saúde suplementar, começa a reconhecer o nosso trabalho como uma especialidade médica.
Então isso vai valorizar, e muito, a nossa atuação. Fazer com que mais pessoas procurem essa formação, não só médicos como os profissionais da parte multiprofissional, os fisioterapeutas, dentistas, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos. Isso faz fortalecer esse tipo de cuidado.
Agora, assim, não é um cuidado para todo mundo. Precisa ter dom? Não, a gente tem como aprender a cuidar de fato das pessoas. Mas temos que entender que a gente tem que gostar muito do que faz porque não é um dia a dia fácil. Tem dias bons e dias ruins, como qualquer outra profissão.
Mas precisa-se de um amor a mais pelo que se faz, porque, de fato, a gente vai estar com as pessoas que vão estar passando pelos momentos mais difíceis de suas vidas, então isso requer muito amor pelo que se faz. Mas existem pessoas com esse perfil e a gente vai conquistar cada vez mais essas pessoas para poder ofertar esse tipo de cuidado para os pacientes e suas famílias.
Muito obrigado pela entrevista e pela sua escolha, que está amenizando o sofrimento de muita gente.
Verdade. Obrigada. Agradeço a oportunidade de falar. Nós paliativistas somos entusiastas. Quanto mais somos chamados para falar, mais queremos falar. Disseminar esse conhecimento tão importante e retirar os tabus que existem acerca dos cuidados paliativos.
Quando vem assim um profissional ou vem alguma matéria, algumas vezes as pessoas ainda ficam “vão falar sobre morte.”. E não é sobre morte. É sobre cuidado, é sobre zelo, é sobre qualidade de vida dessas pessoas que estão em suas fases de vida tão sofridas.
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