Por Carlos Orsi*
Imagem de Gerd Altmann por Pixabay
Em seu monumental livro-texto sobre a psicologia da superstição, “Believing in Magic”, o psicólogo americano Stuart Vyse aponta que um dos principais determinantes da crença em superstições é “o desejo universal do ser humano por autonomia e controle”. Ele cita o trabalho pioneiro do antropólogo Bronislaw Malinowski, que no famoso ensaio, “Magic, Science and Religion”, notou que o pensamento mágico aparece “sempre que os elementos de acaso e acidente, e o jogo emocional entre esperança e medo, têm amplo espaço”.
Sobreviver – oxalá, prosperar – no Brasil das últimas duas décadas tem sido, fundamentalmente, um “jogo emocional entre esperança e medo”. Perder este jogo regido por acaso e acidente significa não somente a ruína econômica, mas principalmente, para o pequeno empresário e o trabalhador “por conta”, também ruína pessoal e familiar. Não surpreende, portanto, que cada vez mais pessoas se sintam atraídas por propostas supersticiosas.
A galáxia das superstições é vasta, assim como são inesgotáveis as roupagens que o pensamento supersticioso – a crença num elo causal entre eventos não-relacionados – pode assumir, e as linguagens de que pode se apropriar.
Cada época tem seus próprios filtros mentais. Há dois mil anos, luzes estranhas no céu evocavam a ideia de anjos; hoje, de extraterrestres.
Dependendo do extrato sociocultural em que se vive, apelos diretos à superstição, ou mesmo às formas de religiosidade que se aproximam dela, tendem a ser mal vistos, mal aceitos e, até, alvo de chacota. A despeito disso, a ânsia por autonomia e controle, frente ao acaso e ao desconhecido, segue premente. A saída é disfarçar o pensamento supersticioso como esoterismo sofisticado – ou ciência. Ou ambos.
“Não encontramos magia quando o resultado é certo, confiável e sob controle estrito de métodos racionais e processos tecnológicos”, prossegue Malinowski, em seu texto clássico.
O ensaio é de 1925, sete anos após a publicação, nos Estados Unidos, de um curioso volume intitulado “The Kyballion”, supostamente um apanhado de antiga sabedoria esotérica da escola greco-egípcia de Hermes Trismegisto.
Hermes é uma figura mítica; a origem do mito, uma fusão de figuras dos panteões grego e egípcio, é incerta, mas os textos atribuídos a ele – e que chegaram até nós – datam dos primeiros séculos da Era Comum, embora pensadores medievais tenham especulado, erroneamente, que seriam os escritos de uma espécie de grande mestre primordial, o professor que teria instruído Moisés no caminho do monoteísmo.
Essa imagem de fundador primevo da sabedoria ocidental ainda é cultivada em certos círculos esotéricos, e é dela que o Kyballion se vale, ao enunciar, como seu primeiro princípio, que “O TODO é MENTE; o Universo é Mental”.
A implicação sendo a de que, mudando pensamentos, muda-se a realidade física: uma validação venerável, milenar e com ares filosóficos, do princípio supersticioso do pensamento mágico: a ideia de que pensar faz acontecer.
No entanto, o autor do livro, assinado, misteriosamente, por “Três Iniciados”, era americano e chamava-se William Walker Atkinson (1862–1932).
Atkinson tinha uma série de outros pseudônimos, incluindo Yogi Ramacharaka, e foi um dos pais do movimento de autoajuda que ficou conhecido como “New Thought” (“Novo Pensamento”), todo ele fixado no preceito de que os pensamentos criam a realidade, que o ser humano se define pelo que pensa de si mesmo e de seu lugar no mundo.
Esta é uma afirmação que carrega uma infinidade de nuances de significado, dos mais metafóricos ao estritamente literal.
Pode querer dizer tanto que autoconfiança é um pré-requisito do sucesso; que quem se concentra numa meta tende a prestar mais atenção nas oportunidades de conquistá-la; como afirmar que o pensamento positivo faz mágica.
Atkinson punha-se neste último campo. Um dos livros mais famosos que publicou com seu próprio nome tinha como título “Thought Vibration, Or the Law of Attraction in the Thought World” (“Vibração do Pensamento, Ou a Lei da Atração no Mundo dos Pensamentos”), onde afirma que “pensamentos são uma força – uma manifestação de energia – com um poder de atração magnético”, e algumas linhas à frente: “quando pensamos, fazemos rodar vibrações de um grau altíssimo, mas tão reais quanto as vibrações de luz, calor, som, eletricidade”.
Essas vibrações, segundo ele, têm uma força tremenda.
“Não apenas nossas ondas de pensamento influenciam a nós mesmos e outros, mas têm um poder de atração – atraem para nós os pensamentos dos outros, coisas, circunstâncias, pessoas, ‘sorte’, de acordo com a característica do pensamento mais importante em nossas mentes”.
Esta é, claro, a mesma “Lei da Atração” alardeada por Rhonda Byrne em seu best-seller esotérico de 2006, “O Segredo”.
O livro de Atkinson é de 1906, e ele já fazia uso (indevido) de conceitos e ideias que apareciam na fronteira da física de sua época, como “raios de luz invisíveis”. Cem anos depois, Byrne e outros autores, como Amit Goswami e Deepak Chopra, tinham todo o campo da física quântica para brincar (e distorcer).
A física do século 20 mostrou que matéria e energia são intercambiáveis. Processos radioativos, onde núcleos atômicos instáveis decaem emitindo radiação, necessitam desse ingrediente para que a energia não seja criada do nada. Além disso, partículas subatômicas apresentam uma natureza dual onda-partícula que é fascinante. O mundo subatômico apresenta ainda outra faceta, que é a questão probabilística: diversas propriedades das partículas são medidas em termos de médias.
A dualidade onda-partícula é ainda mais estranha. Um experimento famoso, que demonstra o caráter dual do elétron, mostra que ele se propaga como onda, mas quando é obrigado a se manifestar, é partícula. Entenda aqui que essas manifestações se dão através de “observações”, que nada mais são do que algum tipo de medição, e aí abre-se espaço para uma enorme confusão linguística, envolvendo não só o conceito de observação, como também os conceitos de “vibração” e “energia”.
Goswami e Chopra misturam “observação” no sentido de “interação subatômica” com “observação” no sentido de “alguém vê”, e vendem a ideia de que o Universo só assume uma forma definida quando alguém repara nele. Que consciência cria realidade. Que, enfim, o pensamento mágico-supersticioso é endossado pela física mais avançada.
Por exemplo, um ebook intitulado “Quantum Sorcery Basics” (“O Básico da Feitiçaria Quântica”), assinado por alguém que usa o pseudônimo “Magus Zeta”, afirma que “a força mais poderosa do Universo é o Observador. Cada evento que acontece no Universo (…) tem um número infinito de estados quânticos possíveis, até que o Observador dê sua olhada”. Em “Quantum Healing” (“Cura Quântica”), Chopra escreve que “consciência cria realidade”.
Mas a ciência mostra exatamente o contrário. Um experimento recente se propôs a testar, mais uma vez, princípios fundamentais da mecânica quântica. A medição, envolvendo uma previsão teórica conhecida como “desigualdade de Bell”, dependia crucialmente do arranjo de um grupo de detectores de partículas: era necessário garantir que os equipamentos não fossem influenciados por alguma coisa presente nas imediações (inclua-se aí a observação dos cientistas ou qualquer pensamento mágico).
Para evitar isso, o arranjo dos detectores foi definido de acordo com sinais que chegavam de estrelas distantes 600 anos-luz da Terra – ou seja, os sinais passaram os últimos 600 anos viajando pelo espaço, sem nenhum tipo de contato com o que acontecia aqui, no Sistema Solar. E a mecânica quântica funcionou perfeitamente, a despeito da total ausência de interferência humana; a não ser, claro, que alguém tenha previsto esse experimento pelo menos 600 anos dele acontecer.
“Vibração” e “energia” sofrem uma descontextualização ainda mais radical. Quando um locutor esportivo diz que “a torcida está vibrando na maior energia positiva”, ele certamente não quer dizer que as pessoas na arquibancada passam por convulsões provocadas por um fluxo súbito de pósitrons, elétrons com cargas positivas.
Do mesmo modo, dizer que uma pessoa tem “uma energia inesgotável” – isto é, que é simpática, transmite entusiasmo, parece estar sempre de bom humor – não significa que ela nunca vai precisar de um carregador para o celular.
Energia emocional e a “energia” que aparece nas equações da física quântica, e que é um constituinte básico da realidade material à nossa volta, não são a mesma coisa, embora compartilhem o nome e um parentesco metafórico. Afirmar que, “segundo a física quântica”, os pensamentos devem “vibrar na frequência da prosperidade” para atrair dinheiro revela uma confusão conceitual comparável à de achar que Coca-Cola é um tipo de cola feita à base de cocaína.
Ver-se ao sabor da sorte e do acaso produz a tentação de aderir a superstições, e a linguagem do “New Thought”, seja em seu estado esotérico bruto ou revestida de uma pátina quântica, dá a oportunidade de praticar superstição de forma sofisticada, sem incorrer imediatamente nos ônus sociais e psicológicos associados. É óbvio que o mundo ia se encher de gente vendendo isso.
E vendendo caro. Há quem ofereça por aí sessões de “treinamento vibracional quântico” com direito a “reprogramação de DNA” por algumas centenas (ou milhares, no caso de acesso VIP) de reais.
Um livro disponível gratuitamente online, intitulado “Como Cocriamos nossa realidade”, dá até a “frequência vibracional” dos estados emocionais. Vergonha vibra a 20 Hz. Controlando seus pensamentos e emoções o indivíduo conseguiria “elevar sua vibração”, e voilà! O trecho seguinte, da mesma obra, mostra o grau de confusão entre realidade e metáfora:
Em sua obra sobre superstições, Stuart Vyse reconhece que nem toda crença mágica é necessariamente deletéria: em alguns casos, superstições ajudam a manter a serenidade necessária para que seja possível enfrentar o inesperado da melhor forma. Mas ele destaca que há superstições danosas e custosas.
Cita o caso de um estudante que fazia questão de só entrar para fazer prova depois de encontrar uma moeda no chão – um sinal de que teria sorte no exame. A obsessão chegou a um ponto em que o jovem passava horas percorrendo calçadas e jardins em dias de prova.
No caso do complexo formado por “New Thought”, esoterismo à la “O Segredo” e autoajuda “quântica”, além dos gastos com livros, treinamentos, palestras, vídeos, etc. e da propagação de erros fundamentais sobre ciência, há ainda um preço psicológico alto a ser pago.
Existem, por exemplo, estudos que mostram que visualizações positivas – o tal “ter um sentimento profundo” de que já se é dono de um carro BMW – mais atrapalham do que ajudam a atingir o objetivo, e podem favorecer o desenvolvimento de problemas como depressão.
Para não dizer que não há resultados menos decepcionantes, trabalho publicado no Journal of Marketing vê benefícios da visualização positiva, mas que “os efeitos benéficos existem apenas quando a meta já está bem próxima”.
Outros estudos, e livros como “Smile or Die” (“Sorria ou Morra”), de Barbara Ehrenreich, mostram como a pressão de patrulhar constantemente os próprios pensamentos e emoções, bloqueando e erradicando qualquer semente de negatividade, fingindo que nada de ruim jamais acontece e forçando-se a só pensar (“atrair”) o que é positivo, pode ser estressante e desestabilizante.
E como esse tipo de filosofia torna muito fácil culpar vítimas – de recessões econômicas, de atos de violência, e até mesmo, em sua forma mais cruel, culpar pacientes de terem provocado, em si mesmos, doenças muitas vezes terminais, como o câncer.
*Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência
Artigo originalmente publicado sob o título “O mundo mágico e perigoso da superstição quântica”
O simples fato de vivermos no século XXI já nos faz beneficiários da ciência e dos seus frutos, mesmo que a gente não se dê conta dessa verdade.
Os objetos que nos dão conforto, que nos dão prazer, que nos transportam, que nos emocionam, que nos informam (até este livro) só existem da forma como existem por conta dos conhecimentos científicos.
O cidadão que ignora fatos científicos básicos pode se tornar presa fácil de curandeiros e charlatões, gente que mente para os outros e, não raro, para si mesma.
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