A dificuldade de fazer ciência sobre nutrição
Para a área da nutrição evoluir, precisamos reconhecer as críticas e refletir qual(is) precaução(ões) devemos tomar para não cometermos os mesmos erros de outrora
Por Mauro Proença*
Não há nada que eu odeie mais nesse mundo do que falar minha profissão para estranhos. Sinto orgulho de ser nutricionista e ter escolhido, mesmo que por acaso, essa profissão maravilhosa. Entretanto, há sempre alguém mal-educado que faz o seguinte questionamento: “Nossa, mas você não pensa em fazer medicina?” ou, ainda pior, “você é jovem, ainda dá para fazer outra faculdade”. O problema não é a sugestão em si, mas a maneira como é feita – geralmente, acompanhada por um olhar de decepção. Esses comentários, além de deselegantes, apontam um desconhecimento crasso do tanto de empenho e estudo que é necessário para atuar na área.
A descrença na nutrição
Entendo, em parte, de onde vem tanta desconfiança na área da nutrição. É preciso admitir a complexidade de realizar ensaios clínicos em nutrição que sejam randomizados, duplo-cegos, com um bom número de inscritos e que perdurem por um longo período. Na maioria das vezes, o que temos são pesquisas epidemiológicas que, embora sejam importantes, não conseguem eliminar as variáveis de confundimento e estabelecer causalidade.
Isso fica nítido no artigo de IOANNIDIS, J. (2018), intitulado “The Challenge of Reforming Nutritional Epidemiologic Research”. O autor aponta a confusão que muitos jornalistas e nutricionistas fazem ao tratar como equivalentes estudos epidemiológicos e ensaios clínicos. Como o artigo é extremamente interessante e traz pontos fundamentais para uma análise séria, traduzo a seguir alguns parágrafos principais:
“Em uma recente metanálise de estudos de coorte prospectivos, quase todos os alimentos apresentaram associações estatisticamente significativas com o risco de mortalidade. Deficiências substanciais em nutrientes-chave (como vitaminas), consumo exacerbado e extremo de comidas, e a obesidade proveniente da ingestão excessiva de calorias podem, de fato, aumentar o risco de mortalidade. Entretanto, será que ingestões baixas de nutrientes específicos, alimentos ou padrões dietéticos com calorias similares afetariam a sobrevivência?
“Assumindo que as evidências apresentadas na metanálise representem uma associação causal ao longo da vida, para uma expectativa de vida de 80 anos, o consumo diário de 12 avelãs prolongaria a vida em 12 anos, beber três copos de café diariamente também prolongaria em 12 anos, e o consumo diário de uma laranja mandarina de 80g adicionaria cinco anos de vida. Em contrapartida, consumir um ovo por dia reduziria a expectativa de vida em seis anos e, caso opte por consumir duas fatias de bacon diariamente, sua vida será reduzida em uma década – um efeito mais devastador do que fumar. Podem esses resultados ser verdadeiros? Os autores frequentemente utilizam expressões que reportam causalidade quando tratam dos resultados obtidos nesses estudos. Mesmo quando os autores são cautelosos, os resultados ainda são apresentados pela mídia como causais.
“Essas estimativas implausíveis de benefícios ou riscos associados à dieta provavelmente refletem, quase exclusivamente, a magnitude do acúmulo de vieses presente neste tipo de pesquisa, com amplo viés residual de confusão e relato seletivo. (…) Além disso, destaca-se a complexidade em associar hábitos e padrões alimentares a outras variáveis que podem diferir em relação ao tempo, caso dos fatores sociais e comportamentais, duas variáveis que também afetam a saúde
(…)
“Os defensores do status quo da epidemiologia nutricional apontam para pequenos e ocasionais ensaios clínicos que corroboram os desfechos metabólicos encontrados nos estudos epidemiológicos. Contudo, é importante ressaltar que esses ensaios geralmente apresentam os mesmos vieses das pesquisas epidemiológicas nutricionais, o que pode ter afetado adversamente a percepção pública da ciência nutricional. Recursos para alguns desses estudos poderiam ter sido melhor empregados em ações que afetam a saúde diretamente, como o tabagismo, a falta de exercícios físicos, poluição do ar e as mudanças climáticas. Não obstante, o modelo perpetuado de nutrição epidemiológica provavelmente prejudica também a saúde pública relacionada à nutrição. Crenças infundadas que justificam comer mais alimentos, desde que sejam alimentos de qualidade, confundem o público e desviam a atenção de ações que poderiam auxiliar na prevenção e tratamento da obesidade”.
Essa crítica épica é, possivelmente, a melhor maneira de explicar o motivo de tantos esquetes satirizarem a dicotomia dos nutricionistas ao santificar ou demonizar um alimento – spoiler: alimentos “milagrosos” ou “demoníacos” não existem.
Crítica às ferramentas
Como escrevi em outro artigo aqui para RQC, as ferramentas de pesquisa baseadas em relato pessoal são valiosas tanto no contexto clínico quanto acadêmico. No entanto, também apresentam enormes limitações que podem acabar influenciando os resultados das pesquisas.
Miller, T. et al. (2008) conduziram um ensaio clínico randomizado e controlado com o objetivo de avaliar o impacto do viés de aprovação social (tendência de buscar elogios por meio de respostas ou ações socialmente esperadas) em relação ao consumo de frutas e vegetais. Isso foi feito por meio de um breve questionário de frequência alimentar e um recordatório de 24 horas em mulheres.
A pesquisa contou com uma amostral final de 163 voluntárias, todas recrutadas pelo telefone e designadas aleatoriamente para um dos grupos de estudo. Aproximadamente dois ou três dias após o recrutamento, as participantes receberam uma carta informando sobre a próxima entrevista por telefone e fornecendo informações sobre o tamanho das porções de alimentos.
As voluntárias do grupo de intervenção receberam uma carta que continha gráficos coloridos de frutas e vegetais, incluindo o seguinte texto: “Frutas e vegetais coloridos fornecem uma ampla variedade de vitaminas, minerais, fibras e fitoquímicos que seu corpo utiliza para manter uma boa saúde e níveis de energia, proteger contra os efeitos do envelhecimento e reduzir o risco de câncer e doenças cardíacas. Os americanos devem consumir de cinco a nove porções de frutas e vegetais diariamente. Comer mais frutas e vegetais pode ser uma das coisas mais fáceis que você pode fazer para melhorar sua saúde”. As participantes desse grupo também receberam um ímã de geladeira e um adesivo.
O grupo controle, por sua vez, recebeu uma carta em preto e branco, sem o texto pró-frutas e sem os mimos (ímã e adesivo).
As entrevistas por telefone foram conduzidas dez dias após as voluntárias receberem a carta. Pediu-se que cada participante preenchesse um questionário de frequência alimentar com oito itens, um recordatório de 24 horas relacionado ao consumo de frutas e vegetais, além de responder a perguntas demográficas, a algumas questões sobre estado de saúde e a uma pergunta sobre crenças pessoais acerca da relação entre o consumo de frutas e vegetais e doenças.
Os pesquisadores observaram que as participantes do grupo de intervenção relataram um consumo médio relativamente maior de frutas e vegetais em comparação com o grupo controle. Não houve diferenças significativas entre os grupos no consumo de leite, batatas e doces (donuts, biscoitos, tortas).
Em resposta às questões do recordatório de 24 horas, verificou-se que as participantes do grupo de intervenção relataram um maior consumo de frutas e/ou vegetais no café da manhã, almoço, jantar e lanches no dia anterior, quando comparadas ao grupo controle.
Em relação às limitações, destaca-se que o estudo foi realizado com um baixo número de voluntárias e em um público específico (mulheres do estado americano do Colorado).
Os autores concluem que ambas as ferramentas de pesquisa no campo da nutrição, questionário e recordatório, são suscetíveis ao viés de aprovação social. Ou seja, é possível que as participantes do grupo de intervenção tenham de fato consumido uma quantidade elevada de frutas e vegetais, ou então exagerado o consumo declarado em resposta às mensagens positivas a respeito e para atender à expectativa implícita nessas mensagens.
Aprofundando o assunto, Archer, E. Marlow, M. e Lavie, C. publicaram um artigo em 2018 intitulado ‘Controversy and debate: memory-based methods paper 1: the fatal flaws of food frequency questionnaires and other memory-based dietary assessment methods’. Os autores argumentam que os métodos de avaliação dietética baseados na memória são inválidos e pseudocientíficos, e não devem ser utilizados na elaboração de políticas públicas. Os autores argumentam que métodos baseados na memória apoiam-se em duas falácias lógicas entrelaçadas: o erro de categoria e a reificação (“coisificação”). A primeira confunde a natureza das entidades avaliadas, tratando, por exemplo, impressões subjetivas como dados objetivos. Já a reificação consiste em tratar entidades abstratas como objetos concretos.
Na epidemiologia nutricional, a reificação ocorre quando valores energéticos e nutricionais são atribuídos a lembranças de ingestão de alimentos e bebidas, ocasionando uma pseudo-quantificação, ou seja, a transformação do relato subjetivo em dados quantitativos.
Os autores argumentam ainda que métodos baseados na memória não conseguem aferir o consumo dietético; no máximo, coletam informações referentes à percepção de quanto foi ingerido. Partindo dessa perspectiva, seria ingenuidade acreditar que relatos verbais ou textuais podem fornecer estimativas precisas de comportamentos passados.
Ainda mais importante, os autores destacam que as pessoas podem mentir ou alterar seus padrões dietéticos quando precisam descrever o que comem, e em que quantidade. Isso foi observado, por exemplo, na pesquisa de Macdiarmid e Blundell de 1997, intitulada “Short Report Dietary under-reporting: what people say about recording their food intake”. Ali, de uma amostra de 100 participantes, quarenta e seis admitiram ter alterado suas dietas em razão do estudo. Desses, vinte atribuíram a mudança a uma maior conscientização sobre o que estavam comendo, além de se sentirem envergonhados ou culpados por registrar determinados alimentos ou quantidades.
Foram registradas declarações como: “Isso me fez ficar consciente a respeito do que estava comendo… seria uma ótima maneira de estimular uma pessoa a fazer dieta” e “eu não me atrevi a escrever todos os biscoitos que geralmente eu como”. Além disso, dezoito voluntários alegaram que pesar e registrar todas as comidas ingeridas exigia muito esforço, era difícil ou inconveniente.
Voltando ao artigo de Archer e colaboradores, apesar do tom belicoso empregado, alguns pontos suscitados merecem, sim, serem levados em consideração. Entretanto, é necessário destacar a resposta elaborada por Calvo, N. e González, Á.:
“Os primeiros dois argumentos feitos por Archer, et al., que invalidam os métodos por estarem baseados nas falácias lógicas do erro de categoria e reificação, não passam de uma tese baseada em uma filosofia nominalista. O entendimento atual da ciência defende que os métodos de avaliação dietética auto-relatados não tentam mensurar o imensurável, mas objetivar o subjetivo, para lidar com exposições tão importantes e desafiadoras quanto os hábitos alimentares. Esse procedimento não é surpreendente, visto que muitos médicos o utilizam no dia a dia para quantificar, por exemplo, a dor, a ansiedade ou o luto dos seus pacientes, por meio de questionários, escalas ou definições operacionais.
“(…) Inúmeros estudos de validação, comparando questionários de frequência alimentar com outras ferramentas padrão-ouro (como a mensuração objetiva de biomarcadores e análises metabolômicas), mostraram correlações aceitáveis, permitindo o uso desses questionários em pesquisas epidemiológicas.
“Um dos principais objetivos dos métodos de avaliação autorrelatados (SR-Ms) na pesquisa nutricional é ranquear os participantes de acordo com sua exposição, e não fornecer uma medida exata do total consumido (…) os SR-Ms, apesar de suas limitações, são instrumentos válidos na epidemiologia nutricional”.
Archer e colabores publicaram uma tréplica, afirmando que a resposta não invalidava os argumentos propostos – convido todos a lerem os três artigos na íntegra, pois além de uma discussão rica, proporcionam um ótimo exercício de reflexão.
Nutrição: como avançar?
A despeito de defender os ensaios clínicos randomizados como o padrão-ouro, tenho minhas dúvidas de que a simples substituição de pesquisas epidemiológicas por essa outra metodologia conseguiria solucionar o problema da nutrição epidemiológica. Nesse quesito, minha posição fica no meio termo, concordando com alguns pontos levantados pelo artigo “Understanding Nutritional Epidemiology and Its Role in Policy” de autoria de Satija, A. et al.
Os autores esclarecem alguns mal-entendidos sobre nutrição epidemiológica, abordam os desafios da área, discutem a utilidade da ciência nutricional na orientação de políticas públicas e apontam que mesmo o modelo clássico do teste clínico randomizado e duplo-cego (ECR), usado na avaliação de medicamentos, pode gerar resultados enganosos se transplantado, sem maiores reflexões, para a área da nutrição. Por exemplo, cegamento (quando, idealmente, nem o voluntário e nem o pesquisador sabem o que está sendo consumido) e conformidade (a garantia de que os voluntários vão seguir à risca as regras do estudo) são de implementação complexa, senão quase impossível, quando o assunto é dieta.
Também concordo com as recomendações feitas no simpósio online “Toward more rigorous and informative nutritional epidemiology: The rational space between dismissal and defense of the status quo”, que ocorreu em 2020: (1) Desenhos metodológicos mais robustos; (2) Melhores medições; (3) Análises mais fortes; e (4) Execução e Relato mais robustos.
Os participantes do evento fizeram diversas recomendações em quatro áreas: (1) desenhos metodológicos mais robustos; (2) medições melhores; (3) análises mais fortes; e (4) execução e relato mais robustos. Um exemplo de sugestão apresentada em cada área:
1. Desenhos metodológicos mais robustos: considere o que o desenho metodológico proposto é capaz e incapaz de encontrar. Essa consideração é essencial para o entendimento dos pontos fortes e das limitações que a pesquisa apresenta.
2. Melhores medições: ferramentas de autorrelato podem ser úteis em algumas ocasiões; no entanto, sempre que possível, devem ser utilizadas em conjunto com meios objetivos de validação de evidência; caso a situação indique que a ferramenta é inválida ou inadequada, ela deve ser evitada. Por fim, aumentar o acesso a informações sobre medições objetivas, seus usos apropriados e custos relativos poderia facilitar sua utilização.
3. Análises mais fortes: a relação dos fatores dietéticos com um grande número de fatores de confusão em potencial, como idade, sexo, educação e renda, deve ser determinada, e padrões uniformes devem ser desenvolvidos para incluir e tratar tais aspectos.
4. Execução e relato mais robustos: para promover interpretações cientificamente apropriadas, os pesquisadores deveriam evitar os “spins” (distorção da comunicação científica para tornar um resultado mais “sexy” ou interessante) em publicações científicas e comunicados de imprensa, além de identificar limitações associadas às descobertas da pesquisa.
Alguém poderia apontar que o suporte financeiro do Beef Checkoff – programa nacional de marketing e pesquisa com o intuito de aumentar a demanda de carne tanto no mercado interno quanto externo – ao simpósio e o pagamento de mil dólares de honorários a alguns convidados pode ter influenciado as recomendações. Entretanto, é inegável que a incorporação das recomendações pode ser benéfica. Além de resultar em dados mais fidedignos, isso diminuiria a desconfiança de muitos pesquisadores.
Como Santo Agostinho escreveu em suas “Confissões”, “do mesmo modo que os amigos bajuladores nos corrompem, muitas vezes os adversários mais ferozes nos corrigem”. Para a área da nutrição evoluir, precisamos reconhecer as críticas e refletir qual(is) precaução(ões) devemos tomar para não cometermos os mesmos erros de outrora.
*Mauro Proença é nutricionista
Originalmente publicado na Revista Questão de Ciência.
REFERÊNCIAS
IOANNIDIS, J. The Challenge of Reforming Nutritional Epidemiologic Research. JAMA. 2018;320(10):969–970. Disponível em: https://statmodeling.stat.columbia.edu/wp-content/uploads/2018/08/jama_Ioannidis_2018_vp_180095.pdf.
MILLER, T.Effects of social approval bias on self-reported fruit and vegetable consumption: a randomized controlled trial. Nutr J 7, 18 (2008). Disponível em: https://nutritionj.biomedcentral.com/articles/10.1186/1475-2891-7-18#citeas.
ARCHER, E.; MARLOW, M. e LAVIE, C. Controversy and debate: Memory-based Methods Paper 1: the fatal flaws of food frequency questionnaires and other memory-based dietary assessment methods. J Clin Epidemiol. 2018 Dec: 104:113-124. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30121379/.
MACDIARMID, J. e BLUNDELL, J. Dietary under-reporting: what people say about recording their food intake. Eur j Clin Nutr 51, 199-200 (1997). Disponível em: https://www.nature.com/articles/1600380#citeas
CALVO, N. e GONZÁLEZ, M. Controversy and debate: Memory-Based Dietary Assessment Methods Paper 2. J Clin Epidemiol. 2018 Dec: 125-129. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0895435617313859
ARCHER, E.; MARLOW, M. e LAVIE, C. Controversy and debate: Memory-Based Dietary Assessment Methods Paper 3: Nutrition’s ‘Black Swans’: Our reply. J Clin Epidemiol. 2018 Dec: 130-135. Disponível em https://www.jclinepi.com/article/S0895-4356(18)30329-9/fulltext
SATIJA, A. et al. Understanding nutritional epidemiolgy and its role in policy. Adv Nutr. 2015 jan 15;6(1):5 – 18. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25593140/
BROWN, A. et al. Toward more rigorous and informative nutritional epidemiology: The rational space between dismissal and defense of the status quo. Crit Rev Food Sci Nutr. 2023;63(18): 3150-3167. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34678079/
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