O negacionismo climático foi incorporado na máquina de desinformação da extrema direita e se expandiu no meio rural
Por Giovana Girardi, Cristina Amorim, Álvaro Justen, Rafael Oliveira
Fonte: Agência Pública
O ano era 2016. O mais quente do registro histórico. Preocupado com os impactos do aquecimento global sobre o cultivo de soja, o então ministro da Agricultura Blairo Maggi, um dos maiores exportadores do grão, convidou o cientista Carlos Nobre para conversar com o conselho do grupo Amaggi. O ministro queria que o pesquisador fizesse uma palestra sobre o que a ciência já sabe sobre os potenciais danos das mudanças climáticas na produção agrícola, principalmente na Amazônia.
Nobre, um dos mais reconhecidos climatologistas do país e um dos maiores especialistas em Amazônia, se preparou para a missão. Conversou com outros pesquisadores, se debruçou sobre dezenas de trabalhos que traziam informações sobre a situação, elaborou a palestra e foi para Cuiabá (MT).
“Os representantes do conselho eram produtores de soja e estavam todos lá. E eu apresentei tudo, todos os riscos. Mostrei que as mudanças climáticas podem tornar toda aquela região sul da Amazônia e norte do Cerrado praticamente impossível para a manutenção de uma agricultura produtiva por causa do excesso de calor”, conta.
Nobre disse aos conselheiros da Amaggi que máximas acima de 40 ºC podem se tornar comuns naquela região, principalmente no inverno, e também na transição para o verão, que é quando se planta a soja. “Nessa temperatura, a soja tem baixíssima produtividade”, disse. E frisou: as mudanças climáticas aceleram muito a frequência de eventos extremos como secas. Já estamos vendo isso acontecer e tende a piorar.
Quando ele encerrou a apresentação e abriu para as perguntas, veio a surpresa. “Porque várias pessoas levantaram as mãos e todas falaram que não havia problema nenhum, que a soja aumenta a sua produção com o calor – o que é completamente falso – e que as mudanças climáticas não estão ocorrendo”, relata.
Meio chocado, Nobre se lembra de ter olhado para Maggi e vê-lo sem graça com a situação. Só um tempo depois ele descobriu o motivo da descrença da audiência. “Todos aqueles produtores de soja tinham recebido antes a visita dos negacionistas Luiz Carlos Molion e Ricardo Felício.”
Os nomes citados por Nobre são de dois expoentes no Brasil de um grupo pequeno, mas estridente, de pessoas ligadas à academia que negam que o planeta esteja aquecendo ou que atividades humanas seriam capazes de provocar isso. Questionam, ainda, o papel da Amazônia na distribuição de chuvas no país, a dimensão das queimadas e dizem que o desmatamento não afeta o clima. Não é de hoje que eles se contrapõem ao consenso científico, mas por décadas tiveram poucas aparições com mais destaque. Seu alcance mudou de patamar, porém, nos últimos anos.
Além de fazerem palestras pelo país a convite de associações do setor espalhando o mito de que o aquecimento global não existe – como no evento bancado pela Aprosoja-MT que antecedeu a fala de Nobre em 2016 –, eles foram alçados à categoria de especialistas por congressistas da bancada ruralista no Congresso. Conquistaram espaço em canais não só do agronegócio, como Canal Rural, Notícias Agrícolas, Terraviva e AgroMais, ambos da Band, mas também da extrema direita, como Brasil Paralelo e Revista Oeste.
O negacionismo climático foi incorporado na máquina de desinformação da extrema direita e se expandiu no meio rural. A percepção de cientistas e pesquisadores ouvidos pela reportagem é que uma parte do agronegócio – notadamente quem está na ponta: os produtores e suas associações – se tornou refratária à discussão séria sobre o clima. Virou terreno fértil para o negacionismo e a desinformação ambiental.
Em condição de anonimato, uma liderança do agronegócio afirmou à Agência Pública que o discurso negacionista “impregnou igual mantra” no setor, principalmente entre produtores rurais. “Produtores e lideranças de produtores. A Aprosoja não consome ciência, por exemplo. Já a indústria está mais alinhada com tendências globais”, disse.
Ele aponta que isso tem reflexo direto na representação política do setor, especificamente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Na opinião dessa liderança, a FPA atua hoje sem embasamento técnico. “Como a gente ganha tudo [na arena do Congresso], não precisa de embasamento técnico. Como tem muita força política, o setor está encostado. Ninguém está de fato fazendo política pública. A representação ficou só para o lobby. A única ‘ciência’ que eles usam é a que serve para o lobby. Já quem quer fazer política pública e se baseia em ciência é visto de modo negativo, como ‘ambientalista’. E, enquanto o setor não acredita, ele não muda, não se adapta e ignora outras possibilidades.”
Por dois meses, a Pública, com o apoio do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , analisou anúncios na Meta (Facebook e Instagram), vídeos no YouTube e outros conteúdos publicados em redes sociais e em sites noticiosos ou não, com o objetivo de rastrear quem está por trás da disseminação do negacionismo climático e da desinformação ambiental no país.
As fontes primárias da desinformação são basicamente um trio formado pelas duas figuras citadas por Nobre – Ricardo Felício, professor de geografia da Universidade de São Paulo (USP), e Luiz Carlos Molion, meteorologista e professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) – e pelo agrônomo Evaristo de Miranda, recém-aposentado da Embrapa, que se tornou guru ambiental do agronegócio e de Jair Bolsonaro.
O palco deles, além das associações do agronegócio que os convidam para palestras, são os canais digitais ligados ao setor e à extrema direita. Miranda e Felício, por exemplo, são colunistas fixos e fontes frequentes de reportagens da Revista Oeste, publicação lançada em março de 2020 que se define como “a primeira plataforma de conteúdo cem por cento comprometida com a defesa do capitalismo e do livre mercado”.
Molion é colaborador frequente do Notícias Agrícolas, que se descreve como “um dos mais importantes meios de comunicação do agronegócio brasileiro”, com “comunicação direta com os produtores rurais”. O site diz criar “um espaço com ampla diversidade de opiniões e informações”, mas, conforme pesquisa da Pública na busca avançada do Google, enquanto um negacionista como Molion tem de fato amplo espaço – foram encontradas 250 menções ao nome dele –, além de outras reportagens com questionamentos ao aquecimento global, há pouco espaço para pesquisadores que levam o problema a sério. São só 29 menções a Nobre, por exemplo, apesar de no campo científico a situação ser inversa: Molion tem 46 artigos publicados em periódicos, segundo seu currículo Lattes, enquanto Nobre contabiliza 190.
Foi no Notícias Agrícolas que foi publicada, em 2019, logo no início do governo Bolsonaro, uma carta que Molion, Felício e outros negacionistas – alguns sem nenhum vínculo com ciência – enviaram para o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com cópia para vários outros membros do governo. Conforme o resumo feito pelo site, trata-se de um documento “contestando a posição de ambientalistas que defendem restrições na economia no sentido de minimizar os efeitos de ‘mudanças climáticas’”.
Molion e Miranda aparecem com frequência no Canal Rural. Em maio, o agrônomo foi o entrevistado, por cerca de uma hora, do PodPlantar, um programa de videocasts da empresa Sementes Jotabasso em parceria com o Rural, durante a Agrishow, a maior feira do agronegócio que ocorre todos os anos em Ribeirão Preto. Este ano, o evento foi símbolo do entrevero entre o setor e o governo Lula.
Miranda também é colunista de canais especializados da Band para o setor – o Terraviva e o AgroMais –, além de ser frequentemente entrevistado pela Band News TV. Já Felício é figurinha constante em programas de direita no YouTube. Uma entrevista que deu para o programa Conversa Paralela, da produtora Brasil Paralelo, em agosto do ano passado, para dizer que o “aquecimento global é uma farsa”, já alcançou mais de 1,1 milhão de visualizações.
Produtora de documentários e programas conservadores, a Brasil Paralelo se tornou um dos principais veículos de desinformação do país, na opinião de especialistas que investigam o assunto. No campo socioambiental, um dos vídeos considerados mais danosos é o “Cortina de Fumaça”, de 2021, que nega o desmatamento da Amazônia, fala que há “muito alarde” sobre queimadas e que “não existe uma floresta sendo destruída, mas uma floresta sendo preservada”.
Somente no período entre 31 de março e 27 de junho deste ano, a reportagem contabilizou 31 aparições dos três cientistas negacionistas na mídia – em colunas semanais e entrevistas – e em eventos presenciais. Mas a disseminação desse conteúdo vai muito além deles e foi incorporada por deputados e senadores da FPA, além de influenciadores ligados ao agro e à extrema direita.
É um comportamento que foi apelidado pela equipe do NetLab, liderada pela pesquisadora Marie Santini, de “infodemia socioambiental”, em que a desinformação ambiental se tornou “uma das pautas centrais na propaganda política da extrema direita brasileira, servindo de argumento para o desmonte da proteção do meio ambiente e o avanço sistemático de atividades extrativistas no Brasil”. Essa explicação está em um relatório lançado pelo grupo no começo do ano, após análise do debate socioambiental entre janeiro de 2021 e novembro de 2022, os dois últimos anos da gestão Bolsonaro.
Em geral, os pesquisadores captaram políticos e influenciadores endossando teorias negacionistas e defendendo ações do governo nas questões ambientais. No período eleitoral, disputas sobre os números do desmatamento da Amazônia e propaganda positiva sobre a atuação do agronegócio brasileiro foram predominantes.
A pedido da Pública, o NetLab complementou o levantamento, incluindo postagens dos primeiros meses deste ano. Sob o governo Lula, o conteúdo dos anúncios na Meta mudou um pouco. Passaram a focar, por exemplo, em fatos políticos em debate, como a CPI do MST, ou a discussão sobre o marco temporal para terras indígenas. Foram detectados vários anúncios da FPA, pagos pelo Instituto Pensar Agro, com desinformações sobre o agro, por exemplo, além de críticas à política ambiental do novo governo.
Santini e os colegas Débora Gomes Salles e Carlos Eduardo Barros deram atenção especial à desinformação veiculada em anúncios pagos, que alcançam “de forma sistemática e segmentada, os públicos mais vulneráveis nessas plataformas”.
Por conta da falta de regulamentação jurídica, a transparência desse tipo de negócio ainda é baixa no país. Somente Google e Meta possuem acervos públicos que indicam os anúncios veiculados no Brasil, mas “ainda com graves lacunas na transparência de dados que permitam responsabilizar quem publica conteúdos falsos e, muitas vezes, criminosos”, aponta o grupo. O YouTube, por exemplo, apesar de ter uma política que visa conter a divulgação de negacionismo climático, continua ganhando dinheiro com isso.
Nas duas plataformas, os pesquisadores do NetLab identificaram anúncios de entidades que se relacionam de alguma maneira com o agro com “informações distorcidas e falaciosas sobre o impacto da ação humana no clima e no meio ambiente”. O material foi dividido em dois principais tipos de conteúdos com potencial de produzir falsas crenças sobre esses temas: anúncios promovendo teorias da conspiração que apresentam todo tipo de pauta ambientalista como alarmismo ou exagero de “fanáticos do clima”; e anúncios que buscam apresentar uma “ciência alternativa” àquela que aponta graves níveis de desmatamento e mudança climática.
No primeiro caso, eles destacam como exemplo anúncios da produtora Brasil Paralelo promovendo o “Cortina de Fumaça” e da Revista Oeste sobre reportagem das “ameaças da governança global”. “Eles não questionam diretamente evidências científicas, mas retratam a emergência climática como se fosse mera politicagem ou narrativa manipulada para mascarar interesses ‘globalistas’ de ONGs, veículos da imprensa e governos estrangeiros”, explica o trio de pesquisadores do NetLab.
“Ou seja, para desqualificar uma pauta baseada no conhecimento científico, esses anúncios tentam arrastar a disputa da opinião pública para fora do campo da ciência, como se o que estivesse em jogo não fossem evidências, mas sim narrativas”, complementam.
No segundo caso, o NetLab destaca a ocorrência de anúncios que “afirmam não haver nenhuma relação entre o agronegócio brasileiro e a destruição do bioma amazônico ou qualquer outro”. Eles citam como exemplo uma postagem que o deputado federal Rafael Pezenti (MDB-SC) impulsionou na qual afirma que “quem acredita nisso [que o agronegócio desmata] é retardado ou mal (sic) caráter”.
O então candidato pagou à Meta entre R$ 500 e R$ 599 para impulsionar esse conteúdo e alcançou entre 150 mil e 175 mil impressões. O anúncio também convoca o público a “combater as mentiras divulgadas sobre o agro” e diz que os agricultores e pecuaristas brasileiros preservariam uma área de floresta equivalente a 16 países. O mesmo discurso aparece na publicidade da Brasil Paralelo, veiculada na Meta.
É um dado que deriva de um estudo de Evaristo de Miranda, de quando ele ainda estava na Embrapa. A pesquisa virou uma espécie de “bíblia” do agro, mas é bastante criticada por outros cientistas da área, que o acusam de distorcer cálculos e gerar falsas controvérsias. Em meados deste mês, o próprio Miranda afirmou que “o agronegócio não desmata”, em um anúncio pago do Canal Rural e veiculado no Google para promover a entrevista concedida ao PodPlantar, da Jotabasso.
Nessa entrevista, ele lança mão de mais um dado não corroborado por outros pesquisadores: de que R$ 3 trilhões estariam imobilizados em propriedades rurais no Brasil por causa da área que precisa ser mantida preservada em cumprimento do Código Florestal. Ele apresentou esse cálculo pela primeira vez em 2018, em palestra do Foro de Agricultura da América Latina, considerada um marco da desinformação ambiental iniciada antes mesmo de Bolsonaro ser eleito. O vídeo principal soma mais de 440 mil visualizações no YouTube, mas há diversos cortes dele espalhados pela rede que aumentaram seu alcance.
Em vídeo curto publicado no Dia Mundial do Meio Ambiente deste ano no canal Terraviva, ele voltou a citar o dado. “Hoje, 5 de junho, é o Dia Mundial do Meio Ambiente. Deveria ser também aqui no Brasil, um dia para se homenagear o mundo rural, em particular os produtores rurais. Porque não existe neste país ninguém que dedique tanto tempo, tantos recursos à preservação do meio ambiente quanto o produtor rural e mesmo assim muito maltratado nesse tema”, enaltece.
Pouco mais de duas semanas depois, o dado foi repetido pelo presidente da Aprosoja, Antonio Galvan, em artigo no Notícias Agrícolas. A reportagem encontrou várias outras menções a esse dado, que não tem respaldo da academia, na voz de influencers do setor em entrevistas à Brasil Paralelo, por exemplo.
No começo de maio, foi a vez de outro político, o senador Marcio Bittar (União Brasil-AC), impulsionar anúncio na Meta citando outro número difundido por Miranda – de que 66% do país se mantém preservado. Esse é um dos dados mais alardeados tanto por representantes da bancada ruralista quanto por apoiadores do setor. “O Brasil, que tem 66% do seu território intacto, enquanto a Inglaterra tem apenas 10% de floresta nativa”, disse Bittar ao criticar cobranças que o rei Charles III, da Inglaterra, fez a Lula.
Nesse caso, trata-se de promover uma interpretação distorcida a partir de um dado real. De fato, o país tem cerca de 66% do território com vegetação remanescente, mas ela está bem longe de estar intacta ou “tal qual Pedro Álvares Cabral encontrou quando chegou ao Brasil” ou como era “no tempo de Adão e Eva”, como dizem entrevistados do “Cortina de Fumaça”.
Estudos com análise de imagem de satélite mostram que boa parte desses remanescentes já sofreu algum tipo de degradação. Pesquisa liderada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) publicada no início deste ano na revista científica Science, uma das mais importantes do mundo, mostrou que só na Amazônia cerca de 40% do que sobra da floresta já sofreu algum tipo de degradação, o que reduz sua capacidade de prover todos os serviços ambientais e fica muito mais sujeita à destruição pelo fogo, por exemplo.
Bittar chamou atenção nos últimos anos por alçar Molion e Felício à categoria de referências em clima. Ele convidou os dois para participar de um evento promovido pelas comissões de Relações Exteriores (CRE) e de Meio Ambiente (CMA) do Senado em maio de 2019. O vídeo da TV Senado disponível no YouTube com as três horas do evento já teve mais de 44 mil visualizações. O canal próprio do senador publicou um vídeo menor de uma conversa dele com os dois no mesmo dia que teve mais quase 8 mil visualizações.
Agora relator da CPI das ONGs, Bittar convidou Molion e Miranda para prestarem depoimento na comissão.
O sociólogo Jean Miguel, professor associado ao Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, publicou um artigo no começo do ano passado analisando a relação entre o negacionismo climático e o que ele chamou de “impedimento da governamentalização ambiental no Brasil”.
Para ele, não é possível cravar que o principal bastião do negacionismo no Brasil é o agronegócio. Estudando o fenômeno por uma perspectiva histórica, ele vê relação com outros elementos caros à extrema direita, como patriotismo, armamentismo, soberania, religiosidade (a ideia de que o ser humano ganhou de Deus a natureza para usufruir dela).
O pesquisador aponta, no entanto, que há um elemento muito pragmático na forma como uma parcela do agronegócio incorporou o negacionismo não só do aquecimento global como também da ciência que revela os impactos da devastação ambiental, em especial pelo desmatamento.
“É uma forma de produção da ignorância planejada para atingir leis ambientais específicas. Não é toda a ciência que é atacada por negacionistas, mas aquela ciência que faz parte do processo regulatório das leis ambientais e dos acordos internacionais. Aquela ciência que cria um certo processo de regulamentação ambiental, que dá fundamento objetivo para o aconselhamento político nas decisões ambientais”, disse à Pública.
Ele afirma que a meteorologia, por exemplo, é importante para o agro, por isso Molion encontra tanto espaço para falar com esse público. Suas palestras – em entrevista à BBC, ele disse serem 50 por ano – em geral começam com as estimativas de curto prazo sobre como estará o clima para a lavoura na próxima estação, mas depois descambam para o negacionismo. Molion diz que vai ocorrer um resfriamento do planeta nas próximas décadas – contrariando todas as estimativas que apontam para o oposto disso.
“Mudança climática não interessa para o setor quando ela reforça a necessidade de ação contra o desmatamento ou reforça as regras para proteção ambiental dentro da propriedade”, continua Miguel. O pesquisador defende que essa negação não ocorreu de modo contínuo na história recente, mas foi particularmente atuante em momentos em que algo importante na esfera ambiental estava acontecendo, como, por exemplo, a conferência Rio+20, em 2012, que marcava os 20 anos da Rio-92 e trazia a expectativa de acordos internacionais mais robustos de proteção ao ambiente.
Naquele ano, nos meses que antecederam a cúpula, diversos veículos de imprensa deram espaço para quem negava o aquecimento, em uma tentativa controversa de trazer “equilíbrio” para o debate, tratando os dois lados com pesos iguais, quando essa não é a realidade da ciência do clima. Há um consenso científico em torno do tema. Quem nega o aquecimento global ou que ele seja causado pelas atividades humanas e emissões em excesso dos gases de efeito estufa é uma minoria de 1% da comunidade científica mundial.
Foi assim que Ricardo Felício, que nunca publicou um artigo científico sequer sobre a questão climática em toda a sua carreira, foi parar no programa do Jô Soares – evento que alimentou toda uma geração de conspiracionistas. Ele disse que “não tem prova científica do aquecimento global”, que “não há elevação do nível do mar” e que “a Floresta Amazônica se reconstituiria em 20 anos após ser desmatada”.
Foi também em 2012 que foi aprovada no Congresso a reformulação do Código Florestal, a mais importante lei ambiental do país, que define as regras para a proteção da vegetação dentro das propriedades privadas. Nessa mudança, quem teve protagonismo foi Evaristo de Miranda, que convenceu todo mundo de que sobrava pouca terra para a produção no Brasil diante de tanta área que era protegida de alguma maneira. Isso é contestado pela maioria dos pesquisadores da área no país, mas foi encampado pela bancada ruralista.
Para Miguel, esses discursos ganharam tração em momentos-chave da história recente, mas foi com o bolsonarismo que os negacionistas encontraram “solo fértil”. “É uma visão de mundo coerente, um modo de vida completo, e o negacionismo vai estar lá também”, diz.
Nesse contexto, a disseminação desses discursos em canais do agro e da extrema direita serve para legitimá-los. “O negacionismo passa a ser legitimado como narrativa científica. Dentro da ciência eles não têm legitimidade, mas na interface com o agronegócio eles adquirem essa legitimidade”, completa,
O anonimato na hora de falar contra os argumentos do negacionismo climático brasileiro é uma condição quase unânime para quem lida diretamente com atores do mundo agro – mesmo quando a intenção é ampliar a produtividade no campo. O receio é que apoiar a boa ciência – e, por consequência, expor a relação direta entre práticas predatórias como o desmatamento com as mudanças climáticas – feche portas.
É o caso de um profissional com passagem por empresas do setor que pediu à reportagem que não fosse identificado. “Se falo sobre sustentabilidade e clima, a pessoa já olha de volta com desconfiança, como se fosse uma nova forma de colonialismo. Ela reproduz o que é inventado, e o que se repete vira verdade”, afirma. “É uma barreira muito grande a vencer antes de debater como transformar a agricultura para melhor.”
Outra pessoa entrevistada que atua junto ao agro e que também pediu anonimato descreve a disseminação de desinformação no setor como regra. “Quando falo de mudanças climáticas, a primeira coisa que respondem é: ‘Você pode me explicar, mas não vai mudar minha opinião’.”
A posição tem um efeito prático negativo para o próprio agronegócio. Como Nobre tentou alertar na reunião com o conselho da Amaggi, as mudanças climáticas já afetam a produtividade agrícola. A cientista Ludmila Rattis, ligada ao Woodwell Climate Research Center, dos Estados Unidos, e ao Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), publicou em 2021 um estudo na revista Nature Climate Change demonstrando que 30% das áreas produtoras de soja e milho do Centro-Oeste saíram do ideal climático para a produção. Segundo suas projeções, se as alterações continuarem, até 70% das propriedades dessa região estarão em áreas impróprias para o cultivo nos próximos 20 anos.
“Muitos agricultores que poderiam se adaptar acham que essas instabilidades que estamos assistindo nos últimos 20 anos vão passar”, conta Ludmila. “Se você não usa a palavra clima e pergunta ‘A temperatura está diferente? A chuva mudou um pouquinho?’, eles dizem que sim. Mas, na hora que usa a palavra clima, eles falam que não tem mudança. E aí atrapalha muito a adoção de práticas mais adaptadas à nova realidade climática.”
A cientista tem buscado caminhos para convencer sobre os riscos que as mudanças climáticas colocam sobre a produção brasileira. “O que reverte essa situação são os ganhos financeiros que práticas agrícolas mais sustentáveis têm, e quando planilhas e gráficos são mostrados. Não é só bom para o ambiente, é bom para o seu bolso também. Essa é a maior arma que a gente tem hoje contra o negacionismo climático.”
Assim como Ludmila, o pesquisador Phillipe Käfer, responsável pelo programa do Brasil do laboratório de inovações financeiras do Climate Policy Initiative, vê como o negacionismo atrapalha a adoção de sistemas mais sustentáveis de produção rural. “Sabemos, que a agropecuária não somente afeta o clima em razão de suas emissões, como também é afetada pelas alterações nos regimes naturais de chuvas e temperatura. A resistência em reconhecer a relação impede que o setor seja protagonista na mudança e ainda ser remunerado por isso.”
Por outro lado, conta, tem crescido o interesse sobre agricultura regenerativa, com insumos biológicos, rotação de culturas e outras práticas que trazem mais fertilidade para o solo e ajudam o produtor a lidar com as questões climáticas.
Ou seja, para adaptar a agricultura brasileira às mudanças climáticas e evitar perdas graves para os produtores, parece que a chave é não falar sobre mudanças climáticas.
O engenheiro agrônomo Marcos Jank, que foi executivo de associações de classe, como a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), e de empresas do setor, como BRF, e hoje coordena o Insper Agro Global, está apostando numa estratégia oposta, que é justamente criar esse diálogo. Ele está coordenando a elaboração de um novo curso chamado Agro e Meio Ambiente, que tem como objetivo trazer o agronegócio para entender as mudanças climáticas e se preparar para lidar com elas.
Questionado pela Pública sobre como pretende fazer essa abordagem considerando o negacionismo que prevalece em parte do setor, Jank reconheceu que há uma dificuldade enorme de concertação. Mas afirmou acreditar que, em termos práticos, o negacionismo vai acabar sendo sobreposto pela necessidade de mudanças impostas pelas pressões que estão sendo colocadas mundialmente sobre as cadeias produtivas.
Ele admite, porém, que hoje o produtor rural vê a questão climática como um passivo. “Quando na verdade deveria ser um ativo. O produtor deveria ser o primeiro a defender o fim do desmatamento ilegal. Por causa da lei, não porque o [presidente da França, Emmanuel] Macron quer, ou porque o [presidente dos Estados Unidos, Joe] Biden quer, mas porque é fora da lei. Tem de ser combatido. E o agro deveria ser vocal sobre isso. Mas não é”, diz.
Com esse comportamento, argumenta Jank, o produtor não está enxergando as oportunidades que lidar com o problema podem trazer. “Na minha visão, a única coisa que é ameaça é o lado vilão do Brasil com desmatamento ilegal. É uma ameaça que, se não for resolvida, nada vai dar certo. A gente vai continuar sendo visto pelo lado vilão. Agora, se a gente reduzir o desmatamento e se a gente incorporar – seja através de incentivo, seja com política pública, seja com mercados de carbono – modelos produtivos de baixo carbono, a gente tem chance de ir muito mais longe do que os nossos concorrentes. Mas ainda existe uma dificuldade imensa do produtor enxergar isso.”
Todas as pessoas, veículos e instituições citados nesta reportagem foram procurados pela reportagem. Somente quatro deram retorno até a publicação.
Aleksander Horta, chefe de redação do Notícias Agrícolas, afirmou: “O jornalismo do Notícias Agrícolas é pautado pela premissa de ouvir especialistas que sejam experientes o bastante para tratarem dos temas propostos, como é o caso do Dr. Luiz Carlos Molion e a climatologia. Nosso papel, enquanto repórteres, é apenas o de promover debates, ouvir contraposições e garantir que nossa audiência tenha sempre, e constantemente, informações responsavelmente apuradas.”
Também disse que as reportagens apontam “a existência de uma linha de pesquisa contrária e intensamente divulgada sobre o chamado ‘aquecimento global’ (termo que mais tarde, por conta de contestações, viria a ser substituído por ‘Mudanças Climáticas’) e promover o debate sobre o tema que – gostem ou não, certo ou errado – tem embasamento técnico e científico minuciosamente elaborado pelo Dr. Molion que, diga-se de passagem, não está sozinho nesta discussão.” Leia a resposta na íntegra.
Molion apenas fez referência à resposta que o Notícias Agrícolas nos enviou e disse que não teria tempo para atender à reportagem porque daria uma palestra presencial nesta quinta-feira, 29, em Goiás. “Quem sabe em uma outra oportunidade em que eu tenha tempo disponível. Acho que você deveria ver esses assuntos com um olhar mais crítico e não aceitar tudo que você ouve. Sucesso!”, acrescentou.
Em nota, o Grupo Bandeirantes de Comunicação afirmou que os veículos do conglomerado (como Terraviva e AgroMais) “estão sempre abertos a ouvir as mais diversas opiniões em todos os setores, proporcionando constantemente uma cobertura ampla e diversificada. Evaristo de Miranda é colaborador dos canais por assinatura, assim como tantos outros profissionais que expõem seus mais diferentes pontos de vista”.
A Brasil Paralelo chegou a procurar a Pública pedindo mais explicações sobre o conteúdo, mas disse que preferia não se manifestar.
* Esta reportagem foi produzida com o apoio do programa Disarming Disinformation, do International Center for Journalists (ICFJ), e financiada pelo Instituto Serrapilheira. O Disarming Disinformation é um esforço global de três anos com financiamento principal do Scripps Howard Fund.
* Uma reportagem da Deutsche Welle, feita em colaboração com a Pública, detalha como esses negacionistas, ligados a instituições respeitadas, se apoiaram numa ciência bastante questionada e se tornaram porta-vozes da desinformação ambiental no país.
Reportagem originalmente publicada na Agência Pública
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