Por AD Luna*
A medicina baseada em evidências ainda encontra muitas resistências entre médicos brasileiros e estrangeiros. Essa é uma das conclusões a que chegou José Alencar. O cardiologista é autor do livro “Manual de Medicina Baseada em Evidências”, lançado pela Editora Sanar.
Em entrevista concedida ao programa de rádio InterD – música e conhecimento, veiculado na Universitária FM do Recife, Alencar dirigiu críticas à formação e à postura apresentada por diversos colegas durante a pandemia da covid-19.
Leia trechos da entrevista e, logo abaixo, a íntegra em player de áudio.
Ouça “O que é Medicina Baseada em Evidências, com o médico José Alencar #” no Spreaker.
Vou ser bem sincero. Eu tive um susto quando vi, nessa pandemia, como estavam interpretando mal os artigos científicos. Mas mal, assim, em um nível básico, muito baixo mesmo.
Você pensa: “não é possível que as pessoas estão achando que um remédio funciona por causa de um artigo como esse, né?”
O nível era baixíssimo e me assustei. Pensei que as pessoas, os médicos em geral, tinham conhecimento melhor de medicina baseada em evidências do que aquilo que eu estava vendo no início da pandemia.
Então comecei a tentar ensinar, nas minhas redes sociais, como é que se interpreta um artigo científico.
Desde os pontos mais básicos: quais são os artigos que valem a pena ser lidos, quais os que não valem a pena, qual é a pirâmide da medicina baseada em evidências.
Ou seja, quais são os artigos que são bons e quais os artigos são ruins.
Por exemplo, tem muita gente que usou o argumento, para defender terapias ineficazes, de que tomou [um remédio x] e se curou.
Ou de que doutor tal usou nele, e está curado, ou que o político tal usou o remédio e está curado. Então, isso significa que funciona.
Veja, isso é evidência, né? Só que não é uma evidência boa, é uma evidência fraquíssima em medicina. ‘Porque a chance de se curar do coronavírus já é muito alta. O coronavírus, na população geral, tem uma mortalidade em torno de 2%.
Essa mortalidade é maior em pacientes com fatores de risco, que já chegam a um hospital. Mas ela é menor também nos pacientes mais jovens.
Somando tudo e fazendo a média, é 2% de mortalidade. Então, como é que você pode afirmar que, porque você tomou o remédio, você se curou de uma doença que apresenta 2% de chance de matar e 98% de chance de as pessoas se curarem dela?
Esse tipo de evidência, que foi muito ventilada, é muito rasteira. E ela pega muito para leigos, para jornalista que não tem uma boa formação em medicina baseada em evidências. Ou está enviesado, com algum conflito de interesse para noticiar o que quer noticiar.
Pegou muito também, no começo da pandemia, que as pessoas tinham uma necessidade de ter alguma coisa para tomar, um remédio que seria a cura. Como se a medicina se resumisse só a remédios.
Achavam que a cura viria de um antimalárico, de um vermífugo. Quer dizer, coisas sem plausibilidade nenhuma.
Então, a medicina inteira é baseada em evidências, com certeza. Mas evidências más e evidências boas.
O intuito de um manual de medicina baseada em evidências é o de exatamente empoderar o leitor a tentar identificar qual é essa evidência boa, que vale a pena ser lida. Qual é a evidência que vale a pena mudar minha conduta, que eu tenho um maior grau de certeza que está fazendo bem para meu paciente.
E qual é a evidência que é ruim, que não quer dizer nada, que cientificamente não tem peso nenhum.
Qual é a evidência que foi só inventada, fraudada por algum pesquisador para me enganar. Ou fraudada porque alguém queria, por algum conflito de interesse, ficar rico com aquela pesquisa.
Enfim, é para proteger o leitor de cair nessas pegadinhas que existe o Manual de Medicina Baseada em Evidências.
Não existe ditadura nenhuma da medicina baseada em evidências. Existe um conceito que é ético, moral, é moderno também.
As pessoas que falam em ditadura estão atuando numa medicina do começo do século passado, quando tratávamos infarto deixando os pacientes deitados na cama. A gente não dava remédio nenhum para os pacientes e a mortalidade do infarto agudo nessa época era mais que 50%.
A medicina baseada em evidências transformou a mortalidade do infarto agudo em 3% hoje. Olha a redução da probabilidade de morrer de uma doença como um infarto. Tudo baseado em evidências.
Se a gente quer evitar essa ditadura, proposta por alguns, a ditadura da medicina baseada em evidências, então vamos fazer medicina como se fazia no começo do século passado.
Era uma medicina que não havia evidência nenhuma, era tudo na base do “eu acho, do isso faz sentido”.
Era na base do “eu faço isso porque eu aprendi assim, porque meu professor me ensinou assim, e eu faço isso porque eu tenho feito nos meus pacientes e funciona”.
Essa era a medicina do século passado e não é mais o que vivemos atualmente. Hoje tentamos garantir a todos os pacientes, terapias as mais bem testadas possíveis, para que seja ético, para que seja humano.
E para que seja verdadeiramente eficaz a evolução da nossa medicina. E não só para que seja uma maneira de as pessoas se alavancarem, mostrarem o método paternalista de ser médico e falar que existe ditadura e não existe ditadura alguma.
Quem fala isso já está, inclusive, demonstrando uma imensa incapacidade de entender um pouco mais sobre o que é medicina baseada em evidências. Acho que não passa disso.
E, infelizmente, a formação do médico brasileiro cai muito nesse problema porque ela não tem, em muitos cursos, um ensino formal da medicina baseada em evidências.
Veja, na minha faculdade mesmo, quando fui aluno, o que eu tinha uma cadeira de bioestatística. Uma cadeira que praticamente me obrigava a aprender estatística sei lá por quê.
Na época que fiz a cadeira, eu não tinha nem ideia do que estava fazendo. Eu estava decorando fórmulas apenas para chegar na prova, aplicá-la e ter a sorte de acertar.
A medicina baseada em evidências, é baseada em matemática também, cálculos estatísticos, mas não deve ser ensinada dessa maneira para o médico. É muito mais eficaz que se ensine para o médico que existe uma medicina também enviesada por evidências.
Nós temos que aprender, na graduação, a interpretar um artigo científico, a saber qual aquele que precisa ser lido e o que não precisa.
Nós temos que saber um pouquinho da estatística. Não para sermos pesquisadores. Se eu quiser ser pesquisador, vou fazer um doutorado, um curso em pesquisa clínica.
Eu quero ler um artigo e entender exatamente o que está escrito. Quero saber se o valor de P é tão importante assim ou não é tão importante assim.
Então, o ensino de medicina baseado em evidências é muito falho no Brasil. Na verdade, o País tem um ensino mecanicista, que é o oposto da medicina baseada em evidências.
É um ensino muito baseado exatamente nisto, no “o que eu fiz e deu certo”, e é repassado para o aluno dessa maneira.
Ora, como é que o aluno vai conseguir ter um pensamento crítico, se ele aprende sempre assim, se não tem outro exemplo de aprendizado? Se ele não tem ninguém durante o curso inteiro dele que fale: “cara, não é assim que se faz medicina, não é na base do ‘eu fiz e deu certo'”.
“Eu fiz e deu certo” não significa nada. É uma evidência fraquíssima. Eu tenho que ter evidências mais fortes para confirmar isso.
Depois o aluno chega na prova de residência e precisa marcar uma alternativa entre cinco, como se medicina fosse assim, tão simples como marcar uma alternativa. E que não houvesse resultados falsos, não houvesse incerteza na medicina.
Isso faz o aluno ficar mais confiante ainda na medicina mecanicista dele, quando passa numa prova como essa de residência. Ele se acha o melhor médico do planeta Terra, porque decorou os rodapés de livros, mas não consegue pensar criticamente no que está marcando.
Ele consegue marcar porque decorou e [acaba se situando] no pico da curva da ignorância de Dunning-Kruger, se achando muito bom. Mas não sabe quanta medicina ainda tem que aprender, especialmente se ele abraçar o paradigma da medicina baseada em evidências – que é sobre interpretar criticamente aquilo que ele só decorou.
A medicina baseada em evidências é muito forte no Canadá, onde praticamente foi inventada. Lá existe até residência.
Mas em outros países conseguimos perceber, especialmente nesta pandemia, que há uma enorme dificuldade em abraçar os conceitos da medicina baseada em evidências.
Essa dificuldade vem de vários fatores que eu já até citei aqui. Mas ela vem também do fator do paternalismo médico.
A medicina baseada em evidências requer que o médico seja mais humilde e reconheça, muitas vezes, a incerteza diante do paciente.
Isso é inaceitável para muito médico que chega de carrão no consultório, bem engomadinho, e que promete tudo ao paciente, quando o que ele está fazendo não passa de uma incerteza.
Na verdade, o que está curando os pacientes é só a história natural das doenças e não o próprio médico.
Reconhecer tudo isso é inadmissível para muitos e muitos colegas que simplesmente fizeram o consultório crescer baseado nesse paternalismo, baseado [na ideia] de que era ele que estava curando os pacientes e aquele exame ali acabou detectando determinada doença mas que, na verdade, ele está inventando uma. E pede um exame que não serve pra nada, só que não tem nenhuma doença associada àquele exame.
Então, ele pede e fala: “está alterado aqui, você está doente, vou passar esse remédio”. E o paciente vai ficar sadio para sempre, porque ele não tem doença nenhuma.
Então é muito fácil, extremamente fácil atuar dessa maneira e enganar as pessoas dessa forma.
A medicina baseada em evidências requer que a pessoa seja mais ética nesse sentido. E isso é muito difícil para muitos [médicos] no mundo inteiro.
Acho que, quando falou isso, ela percebeu que a linguagem do livro abraça muito essa incerteza. Ela abraça muito mais uma filosofia ética do entendimento da medicina, e vai muito contra a medicina que se propaga, a medicina que inclusive é famosa no Brasil.
É essa medicina paternalista, mecanicista, de falsas promessas, que não reconhece o papel da história natural da doença, que nunca reconhece que um exame pode ser falso, que inventa doenças que não existem para tratar com remédios que são desnecessários.
Enfim, como a medicina brasileira está muito baseada em tudo isso, o País de fato não está pronto para esse livro.
Muitos médicos e muitos cidadãos vão ficar estarrecidos com algumas das informações que vão ler no livro, porque vão perceber que muito do que achavam que era verdadeiro na verdade, não é. Não passa de uma enganação.
Na verdade, não passa de uma enganação e nós estamos prontos para lançar essa mudança cultural necessária, porque no livro nós tratamos de maneira muito clara, muito simples, muito direta sobre esses temas.
Estamos tentando mudar esse paradigma brasileiro, da atuação da medicina, do paradigma antigo, do século passado, ultrapassado, mecanicista, para o paradigma da medicina baseada em evidências.
Então, uma parte dessa mudança cultural vai passar pelo nosso livro, eu espero. Espero que ele seja o pontapé inicial para muitos estudantes de medicina, muitos médicos, irem ainda mais longe no conhecimento sobre esse assunto.
Espero que eles interpretem cada vez com mais qualidade as evidências científicas, para que, quem sabe, no futuro nós tenhamos uma sociedade e também uma medicina que conversem melhor, que falem a verdade um para o outro e assim atuem de maneira mais ética.
O que é MBE? Quais as vantagens e desvantagens de atuar nesse formato? Onde encontrar as melhores evidências? Por que há estudos bons e estudos sem força estatística? Como interpretar um estudo diante do que você já conhecia sobre aquele assunto? Como interpretar um exame diante do paciente?
Navegando pelo livro, você vai aprender os princípios básicos da medicina baseada em evidências. Vai entender como se testam medicamentos e vacinas. Vai aprender como se faz uma comparação justa, com ensaios clínicos randomizados, e por que eles precisam ser duplo-cegos, e com grupo placebo.
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