Manifesto condena pseudociência “quântica” em universidade federal
Por Carlos Orsi *
Questão de Ciência
A criação de uma disciplina intitulada “Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde” para o curso de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), cuja ementa abraça temas como “noções básicas sobre Ayurveda, Fitoterapia e Fitoenergética, Florais de Bach e Saint Germain, Mandalas, Medicina Tradicional Chinesa, Meditação e Yoga”, todas práticas sem nenhuma conexão com a física quântica legítima e, em muitos casos, desprovidas de comprovação ou, mesmo, plausibilidade científica, vem causando reações ainda tímidas no meio acadêmico e científico brasileiro.
Os professores de Física da própria FURG decidiram, porém, que não poderiam ficar calados – atitude de rara coragem, um raio de luz em meio à cultura de complacência, compadrio e corporativismo que impera no sistema universitário brasileiro –, e produziram o manifesto que reproduzimos, na íntegra, abaixo.
Sobre o mesmo assunto, a Revista Questão de Ciência publicou editorial recente.
Manifesto dos docentes de Física do Instituto de Matemática, Estatística e Física (IMEF) da FURG, contra o ensino de pseudociências no curso de Enfermagem da FURG
Nós, docentes da área de Física do Instituto de Matemática, Estatística e Física (IMEF) da Universidade Federal do Rio Grande – FURG,
Gostaríamos de registrar a preocupação do nosso grupo de professores e pesquisadores quanto ao teor da ementa da disciplina “Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde” para o curso de Enfermagem da FURG, segundo a Deliberação nº 08/2020 da 2ª Câmara do COEPEA. A ementa se utiliza da nomenclatura particular da Teoria Quântica (ver detalhes abaixo sobre seu contexto e desenvolvimento) vinculada a práticas de saúde e/ou enfermagem, que não têm suporte científico de correlação ou vínculo com a Teoria Quântica, e em qualquer contexto conhecido é suportado por esta.
A ementa e a bibliografia apresentadas configuram pseudociência, ao contrário do atual panorama científico em que a Física e a Teoria Quântica estão inseridos. Não deveriam compor uma ementa de um curso cuja base conceitual e prática é científica, como a Enfermagem, exceto no desenvolvimento de uma análise crítica dos (pseudo)métodos propostos. Na presente forma apresentada, a ementa configura uma associação perniciosa e errônea de uma teoria com ampla base científica e pseudociências.
A Teoria Quântica diz respeito ao tratamento de sistemas microscópicos e de fenômenos que ocorrem na escala do muito pequeno. Assim, trata do comportamento e do movimento de partículas nesta escala. A palavra quantum está relacionada à unidade mínima constituinte de um sistema, e foi inicialmente usada por Planck para descrever o comportamento da radiação emitida por um corpo aquecido.
Assim, a gênese fala sobre a energia ser quantizada, associando energia e frequência da radiação. No entanto, a própria constante de proporcionalidade entre estas grandezas mostra a característica microscópica da teoria.
Avançando no tempo, a analogia de que a matéria exibiria efeitos ondulatórios, da mesma forma que a luz, levou a Teoria Quântica a ser utilizada para explicar fenômenos envolvendo a matéria.
No entanto, estes efeitos são pouco pronunciados para corpos macroscópicos, como o corpo humano. Assim, generalizações da Teoria Quântica para sistemas maiores são pouco úteis e não encontram nenhum amparo científico para sua aplicação.
Apesar disso, percebemos um uso indiscriminado do termo “quântico” para caracterizar processos e situações que pouca ou nenhuma relação trazem com a Teoria Quântica, estudada no escopo da Física. Assim, questionamos a utilização do termo como nome de disciplina do curso de Enfermagem – Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde – uma vez que não existe uma relação clara entre o que a ementa apresenta – Contribuições da Teoria Quântica – e a prática de saúde.
Além disso, a utilização de termos adaptados, com bibliografia direcionada para uma linha pseudocientífica, pode fazer os acadêmicos do curso incorrerem no erro de assumir posturas não científicas como científicas.
Atentamos para essa situação, não desmerecendo a oferta de uma disciplina que apresente as Práticas Integrativas e Complementares, mas chamando a atenção para seu caráter complementar, como a própria denominação demonstra.
Aqui, deixamos claro que nossa preocupação está em associar conteúdos tratados em nossa área de atuação com conceitos pseudocientíficos, e não discutimos aspectos técnicos da área da Enfermagem, a qual não estamos totalmente familiarizados.
O uso de um termo deslocado e de bibliografia pseudocientífica não pode ter lugar dentro da cultura acadêmica. A presença na bibliografia indicada na ementa de autores de reputação duvidosa, que utilizam indiscriminadamente associações entre ideias da Física Quântica e áreas com nenhuma correlação, como a espiritualidade, apresentam uma visão obscurantista da ciência, no lugar das perspectivas críticas esperadas a partir de um tratamento adequado da ciência.
Publicações deste tipo não deveriam constar como bibliografia básica de disciplina obrigatória oferecida por nossa universidade, ou qualquer outra universidade que preze a ciência e o conhecimento. Lembramos que a presente apresentação de nome e ementa carrega conteúdo pseudocientífico na formação dos estudantes de Enfermagem.
Reforçamos, ainda, que não existe associação entre a referida disciplina e a área da Física Quântica, e o caráter da ementa aponta diversos pontos pseudocientíficos, aos quais não tivemos acesso para avaliar e criticar quanto aos conceitos envolvidos.
Ainda, como docentes desta Universidade, nos preocupa que a adoção desta disciplina no Quadro de Sequência Lógica do curso de Enfermagem crie um rótulo negativo para a FURG, como a Universidade da “Terapia Quântica”. Mesmo que trabalhemos na direção contrária, buscando a divulgação científica e a promoção da ciência, este rótulo será mantido.
Este também será carregado pelos egressos da instituição, refletindo negativamente em suas vidas profissionais. Também estendemos nossa preocupação pelas manifestações de colaboradores, de outras universidades brasileiras, de indignação pela criação de tal disciplina pela FURG, gerando um mal-estar na comunidade científica nacional.
Finalmente, defendemos a livre manifestação do pensamento nesta universidade e em todos os espaços públicos, bem como reforçamos nosso compromisso com ensino, pesquisa e extensão de qualidade, mantendo os princípios da ciência como pilares na construção do conhecimento.
Como encaminhamento, solicitamos a revogação dos atos da reunião ordinária do Conselho da Escola de Enfermagem (Ata 11/2019), a respeito da Alteração Curricular, de extinguir a disciplina Terapias Integrativas e substituí-la pela disciplina “Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde”, bem como a revogação dos atos da Deliberação nº 08/2020 da 2ª Câmara do COEPEA, quanto à criação da referida disciplina.
Também solicitamos a rediscussão do nome e da ementa da disciplina que venha a ser criada, retirando toda e qualquer menção à Teoria Quântica ou conceitos associados, eliminando qualquer vinculação com a Física. Além disso, também endereçamos o questionamento quanto à cientificidade dos conteúdos tratados na ementa, com vários exemplos de pseudociências sendo tratados em disciplina oferecida por nossa Universidade.
Águeda Maria Turatti
Aline Guerra Dytz
André Ricardo Rocha da Silva
Antonio Gledson de Oliveira Goulart
Charles Guidotti
Cláudio Masumi Maekawa
Cristian Giovanny Bernal
Cristiano Brenner Mariotti
Eliane Cappelletto
Everaldo Arashiro
Fabrício Ferrari
Fernanda Sauzem Wesendonk
Fernando Kokubun
João Thiago de Santana Amaral
Jorge Luiz Pimentel Júnior
Juan Segundo Valverde Salvador
Luis Dias Almeida
Luiz Fernando Mackedanz
Matheus Jatkoske Lazo
Otavio Socolowski Junior
Pedro Ricardo del Santoro
Rafaele Rodrigues de Araujo
Rosângela Menegotto Costa
Tobias Espinosa de Oliveira
Valmir Heckler
*Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro “Ciência no Cotidiano” (Editora Contexto)
Originalmente publicado da revista Questão de Ciência com o título ‘Manifesto de professores de Física condena pseudociência “quântica” na FURG’
Livros de divulgação científica de Carlos Orsi
O Livro Dos Milagres
por Carlos Orsi
O objetivo deste livro é facilitar o acesso do público às conclusões científicas acerca de eventos tidos como milagrosos, com explicações e contextualização. Fontes são citadas e, sempre que possível, um pouco do ambiente histórico que cercou cada caso e investigação é descrito, para ajudar na compreensão e oferecer um pouco de cor e perspectiva.
A principal motivação da obra é o argumento feito no século XIX pelo matemático William Clifford em seu ensaio A Ética da Crença: aquilo que você acredita ser verdade influencia as decisões que você toma, e com isso, o efeito que você tem sobre as pessoas ao seu redor e a sociedade em geral. Para o autor, muitas pessoas tomam decisões importantes sobre suas vidas, e sobre as vidas dos que lhes são próximos, baseando-se em mitologia travestida de história, em metáforas levadas a sério demais, em superstição posando como dado concreto.
Pura picaretagem
por Daniel Bezerra e Carlos Orsi
O poder da mente pode mesmo fazer com que coisas se concretizem? Pode aliviar males ou até mesmo curar problemas de saúde? É possível enriquecer ou se tornar famoso pensando positivo? Você certamente já ouviu alguém dizer sim a alguma dessas perguntas.
Com as surpreendentes descobertas da Física Quântica, muitos “picaretas” passaram a afirmar que ela justificaria diversos pressupostos esotéricos ou religiosos.
Inúmeros livros começaram a circular com títulos como cura quântica, ativismo quântico, metafísica quântica ou coisas do tipo. Mas o que seria, realmente, a Física Quântica e que tipos de fenômenos ela poderia explicar?
Isso é o que Daniel Bezerra e Carlos Orsi buscam responder neste livro. Aqui você vai conhecer um pouco mais sobre a verdadeira Física Quântica e aprender a se proteger das mais criativas picaretagens!
O quantum nos concedeu maravilhas científico-tecnológicas, mas cada um desses avanços foi resultado dos esforços de cientistas e engenheiros trabalhando com os pés firmemente fincados no “paradigma científico-materialista”, e não do poder de seus pensamentos.
Ciência no cotidiano: Viva a razão. Abaixo a ignorância!
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O simples fato de vivermos no século XXI já nos faz beneficiários da ciência e dos seus frutos, mesmo que a gente não se dê conta dessa verdade. Os objetos que nos dão conforto, que nos dão prazer, que nos transportam, que nos emocionam, que nos informam (até este livro) só existem da forma como existem por conta dos conhecimentos científicos. O cidadão que ignora fatos científicos básicos pode se tornar presa fácil de curandeiros e charlatões, gente que mente para os outros e, não raro, para si mesma.