“”Jair Bolsonaro mente, nega a ciência e coloca a vida dos brasileiros em risco. É preciso ter coragem de dar nome aos bois. Eu não poderia ter feito um serviço melhor para a nação nesse momento. É preciso ter coragem de dar nome aos bois”
Por Marcos do Amaral Jorge
Jornal da UNESP
As incertezas a respeito do novo coronavírus, da pandemia de Covid-19 e seus tratamentos e, mais recentemente, sobre as vacinas, trouxeram para o centro do debate público algumas figuras pouco conhecidas da população em geral. É o caso da microbiologista e divulgadora científica Natália Pasternak.
Fundadora, presidente e porta-voz do Instituto Questão de Ciência (IQC), Natália ganhou nos últimos meses lugar cativo nas páginas d’O Globo, na programação da rádio CBN e na bancada do Jornal da Cultura, da TV Cultura, trazendo o olhar da ciência para alguns dos principais temas em discussão na sociedade.
Na última sexta-feira, 11 de junho, a divulgadora científica esteve presente na Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga as ações e omissões do governo de Jair Bolsonaro durante a pandemia, a CPI da Covid.
Na sua avaliação, a presença em Brasília foi positiva e alcançou dois objetivos: o primeiro, explicar porque políticas públicas precisam ser baseadas em evidências científicas, que é um dos objetivos do IQC desde sua criação. E o segundo, denunciar o negacionismo do governo federal.
Nesta entrevista para o Jornal da Unesp realizada pelo telefone, Natália Pasternak fala um pouco sobre o papel do IQC, discute as qualidades de um divulgador de ciência e reflete sobre a sua relação – e do Instituto – com dois novos grupos, os comunicadores e os políticos.
Qual foi a motivação para criar o Instituto Questão de Ciência (IQC), em 2018?
Todos nós, fundadores do IQC, já atuávamos com algum tipo de comunicação da ciência e principalmente com comunicação de pensamentos críticos e racional e ceticismo, mas em trabalhos independentes.
Decidimos fundar o IQC muito porque não havia, no Brasil, nenhuma instituição organizada fazendo esse trabalho, que já em 2018 se mostrava extremamente necessário e urgente.
Isso foi na época da pílula do câncer, a fosfoetanolamina, que foi um gatilho para que a gente criasse o Instituto.
Nós, os fundadores, batalhamos muito na época da pílula do câncer, mas percebemos que essa atividade individual, informal, como era feita por nós, nunca iria ganhar força. Não ia ser um jornalista aqui, um comunicador de ciência ali, e um professor acolá que ia conseguir fazer esse trabalho.
Queríamos ter uma figura jurídica institucionalizada, com estatuto, com conselho fiscal e com conselho consultivo. Uma estrutura robusta e confiável que mostrasse para a sociedade que não éramos alguns aventureiros fazendo isso por hobby em nosso tempo livre.
Embora existam tantos por aí que realmente fazem isso na maior boa vontade, no seu tempo livre, e muitas vezes com dinheiro do próprio bolso.
O Instituto tem pouquíssimo tempo de existência. Olhando para trás você consegue fazer um balanço do que já foi alcançado?
É difícil. Quando criamos o IQC, a gente imaginou que ele ia ser um instituto de nicho, combativo em relação à algumas políticas públicas que não eram baseadas em ciência.
E que a gente poderia estabelecer uma ponte entre academia, governo e parlamento para levar a posição da ciência para as políticas públicas.
Nunca imaginamos que iria surgir uma pandemia e que o foco do nosso trabalho iria se tornar foco das políticas públicas do país.
Você, como porta-voz do IQC, tem ganhado bastante espaço na mídia tradicional. Como tem sido essa relação com jornalistas e comunicadores?
É muito interessante. Eu acho que o jornalismo brasileiro tem feito um trabalho excelente na pandemia. Se não fosse o consórcio de imprensa, a gente não teria nem acesso aos dados reais dessa pandemia.
O jornalismo tem feito o papel que o governo não fez. Esse contato durante a pandemia permitiu ao ICQ fazer uma ponte entre a ciência e o jornalismo.
A ciência ganhou espaço dentro do jornalismo tradicional. Hoje eu tenho uma coluna no O Globo e dois programas na rádio na CBN. Essas interações são muito proveitosas e eu espero que venham a durar porque nosso trabalho vai continuar depois da pandemia.
E como você espera que vá ser a discussão em relação à ciência daqui a alguns anos?
Acho que a ciência ganhou um espaço dentro das políticas públicas, ganhou visibilidade dentro do Parlamento e do poder Poder Executivo. Nunca tivemos tantos políticos nos procurando para discutir políticas públicas e ciência. A pandemia acelerou o processo que o ICQ queria fazer, que é de construir essa ponte.
Depois da pandemia, a gente precisa manter a ponte de pé. É claro que a frequência vai diminuir, mas no que diz respeito à essência do IQC, acho que ganhamos relevância.
Espero que a gente continue conversando com as esferas de governo e parlamento para que essa relação seja perene e possamos discutir a ciência em outras políticas públicas.
A minha coluna do último sábado no O Globo, por exemplo, foi sobre transgênicos, por causa da polêmica do milho transgênico da Argentina.
Esse é o tipo de assunto que a gente precisa debater com governo e parlamento para que essas decisões sejam tomadas com base na ciência em e não em ideologias.
A classe política foi outro público com o qual vocês se aproximaram nestes últimos meses. Essa interação também foi positiva?
Foi muito positiva. Nunca tivemos tantos parlamentares nos procurando para esclarecer dúvidas como agora durante a pandemia. Isso criou um canal. Eles entendem o que que a gente faz, como funciona o IQC e como o Instituto pode assessorá-los em outras questões.
A gente já tinha tido algumas interações com políticos antes da pandemia sobre questões específicas. A senadora Mara Gabrilli, por exemplo, tinha nos chamado para produzir um parecer sobre o uso de células tronco embrionárias em pesquisas.
É exatamente esse tipo de trabalho que a gente procura fazer: esclarecer a ciência para o parlamentar. É importante salientar que o IQC é absolutamente suprapartidário. A gente atende qualquer parlamentar que venha nos procurar.
É importante salientar que o IQC é absolutamente suprapartidário. A gente atende qualquer parlamentar que venha nos procurar.
Durante a sua participação na CPI, você levantou uma questão sobre a prática de sempre ouvir o outro lado, que é uma prerrogativa do jornalismo. Você afirmou que ela não se aplica à ciência, necessariamente. O que você quis dizer quando fez esse comentário?
Eu sou casada com um jornalista então entendo perfeitamente a história dos dois lados. Mas os dois lados funcionam no jornalismo para assuntos de política, assuntos em que vão ter opiniões contrárias sobre um mesmo tema. Na ciência, opiniões não são relevantes para o resultado.
Não é que o cientista não tenha opinião. Ele pode até ter. Mas ele sabe que o resultado que ele está buscando não depende da opinião dele. Depende das evidências e da força dessas evidências. Do quanto elas realmente conseguem comprovar ou refutar aquela hipótese.
Na ciência, a gente não consegue falar em dois lados. A gente tem um processo de investigação da realidade. Esse processo vai nos apontar as melhores evidências que a gente tem naquele momento com as melhores ferramentas que a gente tem na mão.
Não quer dizer que é imutável. É um processo, e sendo um processo ela pode mudar. Mas ela só vai mudar se novas evidências forem muito robustas.
Você tem visto na cobertura jornalística da pandemia essa prática de ouvir o outro lado sendo aplicada de uma forma não apropriada?
Eu acho que melhorou muito. No começo do ano passado havia mais essa prática de ouvir um especialista a favor e outro contra a cloroquina, por exemplo. E muitas vezes eu ouvi o jornalista dizer que precisava ouvir alguém que falasse contra. Eu não sou contra medicamento, isso é ridículo.
A cloroquina é um bom medicamento, mas eu obviamente sou contra o mau uso da cloroquina. Eu sou contra o mal uso da ciência. Isso precisa ser um ponto mais bem compreendido pelo jornalismo. Não existe a favor ou contra um antibiótico. Ou ele funciona para aquela doença ou não funciona.
Eu não sou contra medicamento, isso é ridículo. A cloroquina é um bom medicamento, mas eu obviamente sou contra o mau uso da cloroquina.
Esse é um conceito do jornalismo que a gente viu mudar durante a pandemia. Ninguém me chama mais para falar contra um medicamento. Me chamam para esclarecer se o medicamento funciona ou não. Houve uma mudança muito positiva na maneira com que o jornalismo trata a ciência e eu espero que isso dure.
Na discussão do transgênico, a gente não pode procurar quem é contra ou a favor dos transgênicos. A transgenia é uma técnica.
Você não pode ser contra uma tecnologia. Ela pode ser bem utilizada ou mal utilizada, mas é uma técnica. Precisamos discutir como essa técnica funciona e quais os benefícios e malefícios que ela pode trazer.
No início da pandemia, a comunidade científica ainda estava aprendendo sobre o vírus e sobre a doença, e o jornalismo teve que correr atrás dessas informações também. Houve um período de consolidação de algumas certezas. Como você viu esse processo?
O jornalismo teve que se adaptar à ciência sendo feita em tempo real e isso realmente atrapalha quem não está acostumado com esses processos. A questão da máscara é uma ótima questão de como o acúmulo de novas evidências pode levar a uma mudança de política pública. No início da pandemia não havia evidências robustas de como era a transmissão.
À medida que as evidências foram se acumulando, ficou óbvio que a máscara era muito benéfica e a sua relação custo-benefício altíssima. O uso não causa malefício algum e ela protege a um baixo custo de produção.
A mídia teve que se adaptar e explicar para a população que a ciência é um processo em construção e durante essa construção a gente acumula novas evidências que nos faz mudar de ideia.
A população em geral, que não está acostumada ao processo científico, quer respostas prontas e fica frustrada quando essas respostas mudam.
Daí a necessidade de cada vez mais conseguir explicar como a ciência funciona para que não tenha mais esse tipo de frustração quando a ciência muda o caminho.
A boa atitude científica é justamente a capacidade de mudar de ideia diante de novas evidências, se elas forem robustas o suficiente. É um desafio grande para o jornalismo e acho natural que tenha sido complicado no começo.
Há um elemento fundamental no universo da divulgação científica que são as redes sociais. Surgiram muitos divulgadores científicos nas redes, especialmente durante a pandemia. Existe o risco de uma certa banalização?
O risco existe em qualquer atividade que vire “pop”. E a divulgação científica ficou “pop” na pandemia. Há o risco de atrair os picaretas, e isso é natural. Tem um lado muito bom que é o aumento do interese das pessoas pela ciência.
Por outro lado, você não tem como medir a qualidade de uma profusão enorme de novos divulgadores científicos nas mídias sociais, que é um espaço de ninguém. Não há filtro, conselho editorial ou revisão dos pares. Então teremos coisas boas e coisas ruins.
A gente pode orientar as pessoas com instituições sérias como o IQC, as sociedades médicas e científicas, agências de checagem, etc. O problema não está apenas nos divulgadores científicos.
Teremos que aprender a conviver com essa checagem dos fatos sempre. A melhor maneira de fazer isso é educando, inoculando em nossas crianças e jovens que eles criem um crivo do que leem nas redes sociais.
Quais características um bom divulgador de ciência precisa ter?
Ele precisa conhecer os limites da sua atuação. Ter muita honestidade e muita autocrítica sobre o que ele é capaz de falar. Lembrar que a divulgação científica é uma atividade multidisciplinar, mas isso não quer dizer que o divulgador seja interdisciplinar e vá falar de tudo.
Isso quer dizer que você vai se consultar com outras pessoas, que o trabalho não vai ser feito sozinho. A gente precisa dessa interdisciplinaridade, mas ela é feita a partir da consulta a outros especialistas.
Depois, ele precisa ser muito honesto com a sua formação. Sempre faço questão de dizer que tenho uma carreira em ciência, mas não sou uma grande cientista. Sou uma comunicadora em ciência.
Já fui apresentada até como médica e infectologista. Entendo a confusão e não posso controlar como a mídia vai me apresentar, mas o importante é como eu me apresento para o público.
Eu tenho uma formação em ciência, sou microbiologista com doutorado em microbiologia, mas sou essencialmente uma comunicadora de ciência. Essa é minha atividade principal. Colocar isso com clareza é muito importante.
E principalmente não caçar cliques. Ter noção do tipo de trabalho que você está prestando para a sociedade. Você pode ser popular fazendo divulgação de ciência, tem gente que conseguiu fazer isso com muita propriedade.
Mas seu objetivo é ser popular ou prestar um serviço à sociedade? Acho que essa é a pergunta que os jovens divulgadores precisam se fazer e responder com muita honestidade.
Você pode ser popular fazendo divulgação de ciência, tem gente que conseguiu fazer isso com muita propriedade. Mas seu objetivo é ser popular ou prestar um serviço à sociedade?
Você compareceu à CPI na última sexta-feira (11/06). Qual a avaliação que você fez da sessão e da sua participação?
Foi uma honra poder participar dessa sessão. Foi a única sessão em que chamaram cientistas e divulgadores. Eu gostei muito de fazer par com o Cláudio Maierovitch porque nós dois temos trajetórias complementares. Nós temos uma carreira em ciência mas não somos acadêmicos. Ele foi para a Saúde Pública e eu fui para a comunicação de ciência, mas nosso background sólido em ciência nos permitiu fazer esse trabalho.
Fiquei grata ao senador Randolfe Rodrigues pelo convite porque fomos uma dupla muito feliz. Temos experiência nas áreas que eram pertinentes para fazer um trabalho de esclarecimento para a população, ele na saúde pública e eu na comunicação para a ciência.
E acho que como comunicadora de ciência, foi um privilégio levar esse trabalho para dentro do Senado Federal. Esse sempre foi um dos objetivos do ICQ: explicar porque as políticas públicas precisam ser baseadas em evidências científicas e deixar claro o risco que o país corre quando a ciência é ignorada.
Foi um privilégio de dentro desse governo negacionista, que nega educação, que nega ciência, que nega a saúde, que nega o nosso direito à vida, foi um privilégio ter chamado o presidente Jair Bolsonaro de negacionista dentro do Senado Federal. Foi algo que eu nunca vou esquecer.
Jair Bolsonaro mente , nega a ciência e coloca a vida dos brasileiros em risco. Eu não poderia ter feito um serviço melhor para a nação nesse momento. É preciso ter coragem de dar nome aos bois
O jornal O Estado de S. Paulo afirmou que você “lacrou” na participação da CPI. Eu acho que nunca tinha visto o Estadão usar esse termo em uma manchete.
Acho que o Estadão está tentando se aproximar do público mais jovem. Eu sei que foi um tom de brincadeira, mas eu acho que não é apropriado dizer que eu fui lá para lacrar.
Eu fui lá para explicar a ciência e para denunciar o negacionismo que vem sendo praticado pelo presidente Jair Bolsonaro, pelo Ministério da Saúde e pelo governo federal como um todo. E para denunciar que negacionismo mata.
Ao final da sessão eu tinha falado com todas as letras que o presidente Jair Bolsonaro mente, nega a ciência e coloca a vida dos brasileiros em risco. Eu não poderia ter feito um serviço melhor para a nação nesse momento. É preciso ter coragem de dar nome aos bois.
Entrevista originalmente publicada no Jornal da Unesp.
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