Música

Prêmio UBC 2020: Herbert Vianna é o homenageado

“Ele [Herbert Vianna] é sempre muito ligado e muito antenado, tanto no que o cerca quanto no que veio das gerações anteriores. Tudo que ele faz me interessa.” Gilberto Gil

Por Eduardo Lemos
UBC

Um compositor é alguém que enxerga melodias, harmonias e poesias onde quase ninguém as vê. É sua função reunir estas partes separadas numa coisa só e fazer testes e mais testes, até que, ao final, temos o que se chama de música. O trabalho pode parar por aí, mas os grandes compositores costumam fazer mais: eles tocam o coração das pessoas, fazendo-as refletir sobre uma miríade de assuntos, ou em alguns casos, proporcionando a elas imensa diversão. Numa sociedade saudável, os compositores são como escolas ou parques, porque ensinam e aliviam, e nenhuma nação até hoje se arriscou a ficar sem eles.

Por exemplo, o que seria do Brasil sem as músicas de Herbert Vianna, Prêmio UBC 2020? Uma infinidade de jovens com astigmatismo sem uma canção com a qual se identificar? Milhares de casais sem uma música para chamar de sua? Um tanto de gente interessada nos rumos políticos e sociais do país sem as reflexões dele sobre democracia, violência urbana e religião? E quantos artistas não se inspiraram nestas canções para criarem as suas próprias?

A distinção dada pela UBC a Herbert pelo conjunto da sua obra como compositor é uma oportunidade para observar com atenção a criação do líder dos Paralamas, um autor essencial para quem se interessa pela cultura brasileira das últimas décadas.

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“Herbert nasceu pronto”, sentencia Gilberto Gil, em conversa com a UBC por telefone. O compositor baiano se encantou pelo então garoto de 22 anos logo quando os Paralamas surgiram, em 1983, com o disco “Cinema Mudo”.

“Não é alguém que tenha chegado e tenha sugerido uma presença e um vigor, concretizando-se ao longo do tempo… Não. O Herbert começou já muito robusto como instrumentista, compositor e intérprete. Isso tudo já apareceu logo na primeira configuração do trabalho dele. Sua evolução é toda em termos de depuração de uma coisa que já estava posta.”

Para Gil, o hit “Óculos” — do segundo disco dos Paralamas, “O Passo do Lui” — é um exemplo da força criativa de Herbert em seu início de carreira. “Eu fiquei impressionado com o vigor e a capacidade de tradução de uma situação da vida.”

Além de Herbert, outros compositores da sua geração se tornaram referências no pop-rock brasileiro. Mas, para a cantora e compositora Fernanda Abreu, parceira dele na música “Speed Racer”, o líder dos Paralamas tem a longevidade a seu favor. “Herbert é um gênio. Da minha geração, ele e Renato Russo são os maiores. Mas o Herbert mais ainda, porque a discografia dele é mais extensa”, observa.

“Ele consegue se comunicar com todas as classes sociais e todas as regiões do país.” Fernanda Abreu

Nessas quase quatro décadas, Herbert Lemos de Souza Vianna, nascido em João Pessoa, criado em Brasília e radicado no Rio de Janeiro, construiu uma carreira muito bem-sucedida com os Paralamas (são 14 discos de estúdio), lançou quatro álbuns solo e compôs músicas interpretadas por artistas de diferentes matizes, que vão de Ivete Sangalo a Zizi Possi, de Maria Bethânia a Biquini Cavadão, de Daniela Mercury a Rubel, de Cássia Eller a Gal Costa. A quantidade de músicas registradas por ele na UBC, da qual é associado há 31 anos, alcança as 245.

Uma chave para entender a importância da obra de Herbert está na sua capacidade de comunicação, seja na escrita, seja na criação musical. Dentro e fora dos Paralamas, é notável a sua habilidade de manejar temas profundos em linguagem democrática e, ao mesmo tempo, lírica, alcançando públicos de diferentes formações.

“É um extraordinário compositor, capaz de unir racionalidade e emoção em suas obras”, resume o compositor Paulo Sérgio Valle, presidente da UBC. Em parceria com Herbert, ele compôs dois estrondosos sucessos do começo dos anos 2000: “Aonde Quer Que Eu Vá”, gravada pelos Paralamas, e “Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim”, registrada por Ivete Sangalo e, anos depois, por ela, Gil e Caetano.

Misturar influências e influenciar outras gerações

Ao longo da sua discografia, os Paralamas conceberam um equilíbrio fino entre acabamento pop e experimentação, e parte do crédito está na capacidade de Herbert para criar canções cativantes e originais. De um lado, dezenas de criações suas tornaram-se trilha sonora do país: “Meu Erro”, “Romance Ideal”, “Alagados”, “O Beco”, “Perplexo”, “Lanterna dos Afogados”, “Caleidoscópio”, “Uma Brasileira”, “Saber Amar”, “La Bella Luna”, “Ela Disse Adeus”, “Cuide Bem do Seu Amor”… A lista é extensa. “O Herbert consegue compreender o que é ser brasileiro e se comunicar com todas as classes sociais e com todas as regiões do país”, descreve Fernanda Abreu.

“É um extraordinário compositor, capaz de unir racionalidade e emoção em suas obras.” Paulo Sérgio Valle

Ao mesmo tempo, a banda que ele lidera nunca se acomodou em fórmulas. Nas décadas de 80 e 90, foi uma sucessão de discos quase contrapostos uns aos outros. Esse espaço generoso para o risco artístico fez o grupo elevar a música brasileira um degrau adiante, em álbuns como “Selvagem?” (1986) e “Severino” (1994). “Ele é sempre muito ligado e muito antenado, tanto no que o cerca quanto no que veio das gerações anteriores. Tudo que ele faz me interessa”, diz Gil.

No aspecto sonoro, a competência em combinar gêneros — rock, samba, reggae, blues, sons latinos e africanos — é uma de suas marcas mais destacadas. “Herbert soube mixar superbem a herança pop anglo-saxã, que ele ouviu muito na vida, com outras culturas musicais, como a jamaicana, a africana e a caribenha. Os Paralamas me ensinaram que rock era uma maneira de tocar qualquer ritmo. Os discos ‘Selvagem?’ e ‘Bora Bora’ são bem isso. Eles abriram minha cabeça”, afirma o cantor e compositor Lucas Santtana, cuja carreira começou na virada dos anos 1990 aos 2000, duas gerações à frente do momento em que os Paralamas surgiram.

Observar Herbert sob o ângulo de seus trabalhos solo também traz um ponto de vista precioso sobre o seu processo criativo. Todos os discos sem os Paralamas foram exercícios de experimentação, ou uma autoprovocação a tirá-lo da zona de conforto. Além disso, apresentam com mais clareza sua aptidão para compor em outras línguas, como o inglês e o espanhol.

No primeiro, “Ê Batumaré” (1992), ele toca todos os instrumentos e grava as 11 faixas em sua própria casa, antevendo as possibilidades tecnológicas que, na década seguinte, transformaram para sempre a indústria musical. O sucessor, “Santorini Blues” (1998), é quase o oposto: apenas violão, piano e discretas guitarras guiam as 10 canções.

“Os Paralamas me ensinaram que rock era uma maneira de tocar qualquer ritmo. Abriram minha cabeça.” Lucas Santtana

Em “O Som do Sim” (2000), Herbert convida cinco produtores e duas dezenas de músicos da velha e da nova gerações para criarem junto com ele os arranjos das 11 faixas. Exatos 20 anos depois, esse espírito de invenção coletiva domina as produções atuais, mais uma mostra de sua capacidade de se antecipar aos movimentos da música. Em “Victoria” (2012), Herbert se dá ao luxo de interpretar canções que ele fez para outros artistas, como “Nada por Mim” (Marina Lima, Kid Abelha e Ney Matogrosso) e “A Lua Q Eu Te Dei” (Ivete Sangalo), num registro de voz e violão minimalista inédito em sua carreira.

Em 2021, Herbert completa 38 anos de carreira. Vinte deles estão na fase pós acidente de ultraleve que vitimou sua esposa, Lucy, e comoveu o país. É, portanto, uma trajetória de força dupla, que mantém-se ativa e contínua e que, a cada show, a cada disco, a cada nova música, devolve ao compositor os efeitos que ele produz no público há quase quatro décadas.

    AD Luna

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