Por Leonardo Lichote
Minutos depois de Herbert Vianna entrar no estúdio e se acomodar na cadeira de couro, o produtor Chico Neves posiciona dois microfones em frente ao músico — um pra sua voz, outro pro seu violão. A partir daí, tudo que ele toca é gravado. E ele toca por horas, num fluxo guiado unicamente pelo prazer de fazer soarem as notas de canções que ama, suas e de seus ídolos.
Entre 2010 e 2011, essa rotina se repetiu por semanas no Estúdio304 (onde Chico gravou e produziu também artistas como Los Hermanos, Arnaldo Antunes, O Rappa, Lenine e Lucas Santtana e, nos últimos anos, nomes da nova geração, como Tamara Franklin, Julia Branco, Luiza Brina e Vovô Bebê). Dessas sessões com Herbert se originou “Victoria”, álbum lançado em 2012, no qual o músico relia 20 de suas composições. Agora, chega aos ouvidos do público mais um fragmento dessas tardes (não o último, há mais por vir, como indica o título): “hv sessions vol. 1”.
Se em “Victoria” Herbert revisitava canções suas, entre sucessos e lados B, em “hv sessions vol. 1” (que sai pelo ESTÚDIO304|selo), o artista lembra obras que o formaram — ou seja, que moveram nele o desejo de tocar, de compor, de existir também a partir da música. Há ali memórias das fitas gravadas por seu pai, das primeiras incursões ao violão, do impacto inaugural do rock, da descoberta do poder do casamento de letra e música (no qual ele se tornaria um dos mestres). Não por acaso, o repertório (apenas de canções em inglês) se concentra entre as décadas de 1960 e 1980 — período da infância, adolescência e primeiros ares da idade adulta de Herbert.
— Essas canções são fonte muito direta de inspiração e de motivação por abraçar a guitarra, aprender um pouco mais sobre a criação de imagens que são feitas ali através dos acordes e das letras — explica o músico. — Ao que aquilo te remete a sentir e a imaginar.
Essa perspectiva da celebração da arte da canção — acordes e versos que, combinados, despertam sentimentos e imagens — atravessa o álbum. Mais do que isso, dá pistas da origem do Herbert compositor e instrumentista — sobretudo do Herbert maduro, que se revela a partir de “Os grãos” (disco d´Os Paralamas do Sucesso de 1991) e que se vislumbra agora em suas leituras de “Tempted” (Squeeze), “Opportunity” (Elvis Costello) e “While my guitar gently weeps” (Beatles).
Chico sintetiza: — São músicas que Herbert gostaria de ter feito.
De certa forma, Herbert as refaz, na abordagem crua, direta, sincera, íntima que lança sobre essas canções/memórias que o constituem. Uma abordagem que tem sua sofisticação evidenciada pela sensibilidade da produção de Chico, que adiciona camadas (de instrumentos tocados por Herbert e por ele próprio), sem tirar a força original dessas gravações — um homem, um menino, tocando músicas que ama.
“Pinball wizard”, clássico do The Who lançado na ópera-rock “Tommy”, abre “hv sessions vol. 1”. Na introdução, em poucas notas do minimoog, ouvimos Daniel Jobim, único convidado do disco. Convidado-surpresa — para ele mesmo. Explica-se: Chico havia registrado o pianista brincando com o instrumento numa visita ao estúdio e, tempos depois, percebeu que aquilo encaixaria à perfeição no arranjo. O produtor revelou a Daniel o que havia feito só depois de a faixa estar finalizada.
Minimoog (tocado no resto da faixa por Chico) e harmonium (também pilotado pelo produtor) seguem costurando “Pinball wizard”, em meio aos violões de Herbert — nos quais se reconhece a influência da banda sobre sua mão.
— Cheguei ao extremo de aprender a imitar a rodada de braço de Pete Townshend, pela sonoridade, pela atitude e pela virilidade crua com a qual ele sempre escreve as canções — nota Herbert. — Isso é uma referência muito forte pra mim.
Da energia de “Pinball wizard”, o disco se move para a calma de “While my guitar gently weeps”. Sobre a cama de harmonium e minimoog, Herbert toca uma guitarra arpejada e pontua com outra guitarra, emulando o diálogo entre os instrumentos de George Harrison e Eric Clapton na gravação original. “É algo raro nos Beatles”, diz o músico, referindo-se à participação especial.
“Tempted”, do Squeeze, vem a Herbert com a lembrança da Fluminense FM, onde conheceu a música no início dos anos 1980 — e marca sua atenção especial desde aquela época pela cena do pós-punk britânico. Acima de tudo, porém, o artista lapida ali uma canção primorosa e atemporal (letra e música de uma beleza simples e surpreendente), que canta lindamente.
O canto de Herbert, aliás, merece menção especial. Boa parte da serenidade que o disco sugere se deve à maneira como sua voz se coloca ali. “Eu pedia sempre a ele para cantar o mais suave possível”, conta Chico. O resultado materializa uma segurança e uma sabedoria que residem nos graves (como nos ensinam, no extremo, Leonard Cohen e Johnny Cash).
Sua versão de “Purple haze”, de Jimi Hendrix, torna isso mais claro. Após a introdução inconfundível — que ainda assim soa renovada pelos timbres (violão, guitarra e minimoog) e a forma como eles se cruzam —, quando se espera o ataque da voz (como em Hendrix), Herbert vem com firmeza tranquila, que valoriza a malícia sagaz da letra.
“And I love her”, outra dos Beatles, é escola de balada romântica pop — na qual Herbert mostra que se formou, à vontade na gravação, sozinho (voz, vocais, violão e guitarra), no domínio daquela gramática. Outra escola frequentada pelo artista aparece a seguir, em “Opportunity”. A essência da canção de Costello (o arranjo, o sentimento ou, nas palavras de Herbert, a “textura” original) é mantida em sua releitura enxuta, sem excessos ou faltas.
Seu fascínio pela sofisticação redonda que o pop pode alcançar se mostra em “There’s a kind of hush” temperado pelas memórias afetivas das tais fitas de seu pai, onde ouvia a canção. Sem efeitos desnecessários, Herbert dá a dignidade merecida a versos como “I love you/ For ever and ever”. Os Carpenters entenderiam.
“Wichita lineman”, na voz de Ray Charles, também aparece associada às fitas ouvidas na infância. Quando, anos depois, Herbert parou pra prestar atenção à letra (e à harmonia, afinal sua sensibilidade é da canção) ficou impressionado com a força daquele personagem, um trabalhador das estradas, cantado por um negro, cego. Essa força aparece impressa na sua voz e no vigor com que toca, em andamento mais rápido (e rocker) do que o da gravação original do americano.
Ouve-se então outro riff reconhecível à distância, “Sunshine of your love”, do Cream. Herbert toca com a pureza e a contundência da famosa pichação londrina: “Eric Clapton is god” (frase lembrada por ele ao comentar a escolha da canção, “uma ruptura de barreiras na minha sensibilidade”).
Por fim, Herbert presta tributo a outra ruptura, aquela que Santana promoveu a afirmar sua latinidade em meio à vanguarda do rock americano da década de 1960. Para isso, faz questão de fazer sua “Europa” em versão instrumental, sublinhando a melodia (“que podia ser vista como meio cafona”, ele avalia antes de completar, “mas que foi tocada com uma intensidade sobre-humana por um músico que estava rompendo barreiras de gosto, afirmando seu coração mexicano”). “Europa”, Herbert também lembra com carinho, era cultuada por ele e alguns amigos da faculdade.
As duas dimensões portanto, grandeza artística e marcas afetivas, entrelaçadas — um traço de “hv sessions vol. 1” como um todo. Não é disso que é feita a música popular, no fim das contas?
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