Ciência e saúde

Há algo de “quântico” na mente humana?

Só faz sentido prestarmos atenção em qualquer ideia sobre “mente quântica” se ela puder explicar a mente melhor do que qualquer outra hipótese e, principalmente, se puder ser testada

Por Rafael “Algures” Rodrigues*
Questão de Ciência

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Muitas vezes deixada de lado pelas Neurociências para ser objeto de estudo da Filosofia da Mente, nossa Consciência permanece em muitos sentidos um mistério. E os oportunistas adoram usar a Física Quântica para “explicar” mistérios (se ainda não existe uma falácia lógica chamada “quântica nas lacunas”, deveria). Então, dá pra levar a sério qualquer tentativa de usar a Física Quântica para explicar a mente/Consciência?

Teoria Quântica é uma área complexa, e existem muitas coisas fundamentais a serem compreendidas pelos físicos. Ainda assim, é necessário entender as ideias mais básicas para podermos seguir adiante. Não se preocupe, vamos deixar a matemática de lado (mas alguns termos difíceis podem ser usados, então aguente firme).

Entendendo (como possível) a Física Quântica

A Mecânica Quântica (ou Física Quântica) estuda sistemas quânticos. Um sistema na física é qualquer grupo de coisas que interagem entre si no tempo.

Qualquer coisa nessas condições pode ser um sistema: uma bicicleta de metal enferrujando com os anos, um pêndulo balançando, ou mesmo a atividade cerebral.  Esses sistemas obedecem às regras do jogo da física que denominamos clássica: se observamos uma bola percorrendo uma trajetória, podemos prever exatamente onde ela vai parar sabendo sua posição e velocidades iniciais. Na mecânica quântica, isso não é possível, dentre outros motivos, porque a natureza impõe uma limitação à determinação precisa dessas duas grandezas (posição e velocidade) simultaneamente. Uma medida infinitamente precisa da posição de um próton, nêutron ou elétron demandaria um desconhecimento completo da velocidade, e vice-versa.

O comportamento curioso descrito no parágrafo anterior é somente uma das características que torna a mecânica quântica tão fascinante. Outra coisa muito interessante acontece quando realizamos experimentos com partículas chamadas fundamentais (um elétron, por exemplo). Essas partículas apresentam um comportamento chamado de dual: elas se propagam como ondas, mas ao serem medidas se manifestam como partículas. Mais estranho ainda é que não é nem necessário que a medida se concretize, a simples possibilidade de medição já faz com que a partícula não mais se comporte como onda.

Embora existam fenômenos quânticos macroscópicos, os sistemas quânticos nos parecem estranhos porque não existe analogia na Física Clássica capaz de reproduzir a contento as propriedades quânticas. Então, se mecanismos quânticos podem de fato influenciar efeitos no mundo macroscópico, incluindo processos biológicos como a fotossíntese e nossa capacidade de detectar cheiros, poderiam também ser responsáveis por coisas como gerar a mente?

Abordagens pseudocientíficas

O maior problema quando se quer unir Neurociências e Física Quântica é que, embora essa possibilidade não seja, em essência, pseudocientífica, ela atrai pessoas que partem de ideias muito básicas sobre conceitos-chave da ciência para forçar interpretações que se encaixem com suas crenças (ou que as ajudem a ganhar mais dinheiro).

Muitas dessas pessoas se apoiam na noção (incorreta) de que a mecânica quântica ainda é uma ciência mal conhecida e isso basta para a falácia da “quântica nas lacunas”.  A mecânica quântica é uma das teorias mais testadas da história e não há dúvida de que ela funciona. Diversas tecnologias só existem por causa dela. Agradeça à Teoria Quântica pela Ressonância Magnética, o laser e até mesmo seu laptop e smartphone, apenas para citar alguns exemplos.

A ideia de que certas características de sistemas quânticos permanecem indefinidas até que sejam observadas é outro exemplo de confusão (intencional ou não). Usando “observação” como aplicamos no dia a dia, essas pessoas desenvolvem ideias de que é a mente humana que “determina” o resultado de um sistema quântico. Só que a “observação” não precisa de uma mente consciente, a não ser para preparar os instrumentos que farão o registro/medição. Você pode “mentalizar” o resultado que quiser, não vai fazer diferença. A noção de que a mente é capaz de influenciar o mundo físico é antiga e persistente, mas mesmo na teoria quântica ela não é consistente com as evidências. Uma das abordagens mais comuns realizadas por esses “místicos quânticos” é usar um fenômeno que ocorre apenas em escala quântica para explicar um suposto fenômeno na nossa escala.

Em resumo, o que muitos adeptos de pseudociências e misticismos quânticos fazem é extrapolar características-chave da mecânica quântica tiradas completamente de contexto. Mas, quando realmente compreendemos como essas características emergem na teoria quântica, fica fácil perceber por que essas ideias, vendidas como ciência, não se sustentam.

Abordagens científicas?

Assim como acontece com a Física Quântica, por vezes enfatiza-se muito o quanto conhecemos pouco sobre o cérebro, para justificar preencher as lacunas com qualquer bobagem. Não sabemos tudo, mas já descobrimos muita coisa. Sabemos que o processamento de informações é feito a partir de impulsos elétricos enviados por neurônios que liberam moléculas (neurotransmissores) para excitar ou inibir outros neurônios. Descobertas recentes indicam que o cérebro pode transmitir informação também de outras maneiras, como a partir células não neuronais e até mesmo através de campos eletromagnéticos.

Sabemos também que a memória é armazenada no cérebro de forma fragmentada, e a conexão entre as informações se dá pela maneira como os neurônios “entendem” que essas informações estão associadas. Quando você lembra de alguma coisa, você não “resgata” memória nenhuma; você a reconstrói totalmente do zero. É por isso que é tão fácil nos enganarmos quanto a detalhes de nossas lembranças – pior; é absurdamente fácil implantar detalhes falsos em memórias reais, apenas por erros de associação de informação.

O cérebro tem ainda áreas relativamente especializadas – com ênfase no “relativamente”. Isso quer dizer que, apesar de temos regiões cuja função principal é, por exemplo, compreensão linguística, essa modularidade não é rígida, e algumas áreas podem executar mais de uma função, ou até mesmo “pegar para si” um pouco do trabalho de outra área. Isso é uma provável consequência de o cérebro ter evoluído ao longo de milhões de anos de tentativa e erro pela seleção natural e especialização ser uma “invenção” recente* da natureza.

Sabemos isso, e muito mais. Mas é claro que nosso conhecimento é limitado. Uma das principais questões reside em como o cérebro transforma informação bruta adquirida pelos órgãos do sentido em crenças, desejos e valores. Olhando o cérebro, nós conseguimos encontrar os mecanismos da atividade bruta, mas não onde (e se) está armazenada minha crença de que os filmes da Marvel são melhores que os da DC. Normalmente neurocientistas evocam a noção de representações mentais, mas essa explicação tem suas limitações.

Até agora, tudo o que descobrimos sobre o cérebro pode ser explicado sem evocar processos quânticos, mesmo os microscópicos neurônios e seus mecanismos internos. Mas a atividade neuronal é elétrica, ou seja, formada de partículas quânticas por natureza. Então, é possível pensar que processos quânticos sejam capazes de explicar aspectos mentais, ou talvez até a consciência como um todo? Alguns já tentaram – e ainda tentam.

O neurofisiologista John Eccles, que era um dualista (na verdade ele se autoproclamava um “trialista”, mas isso não vem ao caso), sugeriu que a mente/alma atuaria durante a liberação de neurotransmissores em operações probabilísticas geradas por processos quânticos. É uma versão atualizada de uma ideia de René Descartes, que tinha a glândula pineal como candidato a órgão “conector” entre alma e corpo. Conforme comentei em outro texto, há evidências científicas suficientes para sabermos que o cérebro gera a Consciência, sem necessidade de invocar a noção de uma mente separada do corpo.

Outras hipóteses envolvem principalmente processos quânticos como geradores de estados mentais ou mecanismos específicos. O físico Hiroomi Umezawa (e colaboradores) propôs um modelo para o armazenamento da memória que envolve um diálogo entre áreas maiores e menores do cérebro, num tipo de teoria quântica de campos para a mente (o que é Teoria Quântica de Campos vai além do escopo desse artigo).

O psicólogo Karl Pribram tentou explicar as funções superiores do cérebro através do que ficou conhecido como “teoria do cérebro holonômico”, que desenvolveu em parceria com o físico David Bohm. A hipótese básica é que os dendritos (extensões dos neurônios que recebem informação) seriam capazes de criar condensados de Bose-Einstein, estado da matéria capaz de manter processos quânticos. Esse condensado armazenaria informação da mesma forma que um holograma (onde informação tridimensional pode ser registrada numa superfície bidimensional sem perda).

David Pearce buscou explicar a noção de “unidade” do cérebro, ou seja, como os diversos tipos de informações assimiladas são capazes de criar uma experiência aparentemente unificada de Consciência. A hipótese, que ele chama de “Fisicalismo não-materialista”, é bem complicada para resumir aqui, mas a ideia se fundamenta na noção de que a unidade da Consciência emerge de superposições quânticas neuronais. Curiosamente, Pearce, um filósofo, é talvez o único da lista que descreve uma maneira de testar cientificamente sua hipótese.

Mas provavelmente a hipótese mais conhecida vem do físico Roger Penrose, em colaboração com o anestesiologista Stuart Hameroff. Chamada de “Orchestrated Objective Reduction”, ou Orch OR, a hipótese tenta explicar o “problema difícil da consciência” (por que temos experiências subjetivas) e a noção de livre arbítrio através de processos quânticos dentro das células neuronais. Eles especulam que microtúbulos, estruturas proteicas responsáveis pela sustentação e transporte dentro das células, poderiam hospedar processos quânticos nos neurônios. Esses processos, segundo eles, gerariam a mente.

Vale ressaltar que essas hipóteses não foram desenvolvidas por pessoas deslumbradas com visões confusas sobre a Física Quântica. David Bohm e Roger Penrose estão entre os pesquisadores mais importantes da área (Penrose tem até um Nobel de Física). Mas, em ciência, isso significa apenas que vamos ouvi-los com atenção, não que eles estão necessariamente certos.

O primeiro problema de todas essas hipóteses é que elas não estão tão longe assim dos místicos quânticos, no sentido que são altamente especulativas. Também caem no pecado de tentar explicar a mente a partir de alguns processos quânticos que só ocorrem em circunstâncias muito específicas.  Alguns tentam contornar esse obstáculo evocando um processo teórico descrito pelo físico Herbert Fröhlich, uma espécie de “condensado biológico” semelhante ao condensado de Bose-Einstein (que só aparece em baixíssimas temperaturas). Mas ainda não há evidências de que esse tipo de condensado seja possível em sistemas biológicos.

Outro aspecto é usar termos quânticos de forma muito geral pra explicar a mente (alguns casos até beiram o alegórico). Nessas situações, não temos nenhuma explicação de fato, e sim apenas outra maneira de descrever estados mentais. Além disso, as diversas abordagens propõem explicações para o funcionamento de certos aspectos mentais, sem de fato explicar como o cérebro vai do processo quântico para a representação abstrata. Nesse sentido, algumas teorias da Filosofia da Mente, campo que por muitas vezes pode ser bastante especulativo, têm sido mais bem-sucedidas em propor mecanismos para a “tradução” de informação.

É claro que há também o que já sabemos sobre o funcionamento do próprio cérebro. A atividade neuronal é incrivelmente rápida para nossos padrões, mas não para manter processos quânticos numa célula nervosa por tempo suficiente para que tenham alguma influência em estados macroscópicos.

Por último, o ponto que talvez seja mais relevante: explicar a mente a partir de processos quânticos é simplesmente desnecessário. Por diversos motivos, dos quais destaco dois:

A neurociência tem sido muito bem-sucedida em explicar diversos aspectos do cérebro e da Consciência a partir da estrutura regida pela física clássica (interação entre neurônios, áreas do cérebro especializadas em determinadas funções, processos químicos, elétricos, etc). Até aspectos antes considerados insolúveis, como a noção do eu e a subjetividade, têm sido abordados com resultados promissores. Por enquanto, não há razão para evocar processos quânticos; e

É claro que a Física Quântica é “responsável” pelos processos do cérebro em algum nível. A teoria quântica é uma descrição do mundo físico, qualquer sistema pode ser descrito por ela (ao menos em princípio). Mas não há a menor necessidade de fazer isso quando a Mecânica Clássica é capaz de explicar de forma mais eficiente. O mesmo vale para o cérebro.

Só faz sentido prestarmos atenção em qualquer ideia sobre “mente quântica” se ela puder explicar a mente melhor do que qualquer outra hipótese e, principalmente, se puder ser testada. Até agora, tais hipóteses ocupam mais tempo tentando explicar como é possível um processo quântico ocorrer no cérebro do que demonstrando como eles realmente geram estados mentais. E isso, por si só, já deveria soar como um alerta.

Isso quer dizer que usar Física Quântica para explicar a mente é uma completa bobagem? Bom, eu não diria “completa”. Mas, por enquanto, ela é altamente especulativa e, mais importante, completamente desnecessária. Talvez chegue o dia em que algum processo mental (ou até mesmo a mente como um todo) só possa ser explicado a partir de processos quânticos. Mas até lá, o que temos é apenas quântica nas lacunas.

*Rafael “Algures” Rodrigues é Bacharel em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina e pós-graduado em Neurociências da Linguagem pela Universidade de Caxias do Sul. Escreve sobre divulgação científica, Filosofia da Ciência e Filosofia da Mente.

Originalmente publicado na Revista Questão de Ciência com o título “O que existe de ‘quântico’ na mente humana, afinal?”

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