Sociedade

Covid-19: o jejum dos evangélicos funcionou?

Os pastores fizeram, sem querer, um experimento científico. O que estava em jogo era a eficácia do jejum enquanto instrumento para obter favores divinos. Claro como um cristal: o jejum vai fazer com que Deus elimine o vírus

Por Derley Menezes Alves
Doutor em Ciências das Religiões pela UFPB

Imagem de reenablack por Pixabay

Deus me livre de ser popperiano, mas o jejum realizado no início de abril de 2020 por certos grupos evangélicos neopentecostais, desses bem arrogantes que acreditam num Deus-Mordomo cujo único objetivo é satisfazer seus desejos mais mesquinhos, me fez lembrar do ensaio “Conjeturas e Refutações”, publicado em livro homônimo no Brasil pela UnB.

Neste ensaio, Karl Popper discute o que caracteriza uma teoria como científica e os exemplos são todos tirados do campo do saber científico-acadêmico: teoria marxista da história, psicanálise e psicologia individual.

Todas estas teorias possuem um poder explanatório, e este seria um fator de atração das mesmas, ou seja, com elas os seus praticantes se veem de posse de um aparato capaz de explicar praticamente tudo, mesmo que seja possível explicar fenômenos completamente opostos com o mesmo instrumental.

A mesma explicação pode funcionar para o caso da pessoa que mergulha para salvar a criança morrendo afogada e para a que não mergulha diante da mesma criança. Para estas teorias, tudo que caia diante dos olhos é uma confirmação, não existe problema na aplicação dos princípios, eles simplesmente funcionam sempre.

Vejam bem, não quero aqui entrar nos meandros da leitura popperiana das ciências humanas, este é um problema para outra oportunidade, o que quero aqui é apontar que esta postura de sempre ver confirmações para o que se acredita é um traço típico da mente humana e que vem desde antes das pretensões científicas da humanidade sequer existirem, notadamente na dimensão religiosa. É aqui que entra o jejum contra o corona vírus proposto pelo presidente da república.

Televangelismo e bravatas de cura e libertação

O televangelismo costuma ser muito bravateiro, todos os dias, em todos os cultos de cura e libertação de todos os matizes temos Deus curando dores de cabeça, câncer, AIDS, entre outros problemas humanos. Basta pedir com fé, se Deus não cura, faltou fé. Notem, há um modo de pensar aqui similar aquele que Popper atribui às ciências humanas, esteja ele errado ou não.

A ideia é que sempre é possível explicar a realidade com os mesmos princípios, mesmo que estejamos diante de fenômenos completamente diversos como a cura ou a manutenção das doenças.

Deus e a fé são os mesmos princípios que explicam ambas as situações, não há um momento de parar e analisar casos que contradigam as previsões. Tais casos nunca entram na contabilidade. Deus acerta em 100% dos casos sempre.

E como se trata de uma postura de antagonismo com a ciência e desconfiança nas capacidades desta para lidar com o vírus, proponho aqui um exercício tomando como base o único modelo que Popper entende como científico de verdade, aquele das ciências naturais, exemplificado no ensaio aqui citado por Albert Einstein.

A teoria gravitacional de Einstein

Popper aponta que a teoria gravitacional de Einstein trouxe como resultado a hipótese de que corpos pesados atrairiam a luz, corpos como estrelas, por exemplo. Em sendo assim, seria possível calcular que a luz de uma estrela distante num determinado ponto atingiria a terra de uma direção que sugeriria tal estrela estar um pouco mais distante do sol do que de fato estaria.

Tal fenômeno só seria observável em um eclipse solar, pois durante o dia o sol esconde as estrelas com seu brilho.

Vejam bem, eu sou de humanas, sequer entendo direito o que acabei de resumir, o ponto aqui é o seguinte: Einstein está dizendo que, se ele estiver certo o fenômeno seria visto em caso de eclipse e se não fosse visto ele estaria errado.

Ou seja, ao invés de ver confirmações em todos os lugares, ele imaginou um cenário onde ou ele estaria certo ou errado. A teoria que lute. Sabem o que aconteceu? O fenômeno foi observado.

Deus me livre de entrar nas tecnicalidades da física aqui, não sou youtuber sem formação para sair dando pitaco sem ter conhecimento básico sobre o assunto.

Volto a dizer, o ponto é que Einstein desafiou sua teoria e ela ganhou.

Se ela tivesse perdido ele a teria abandonado e feito outro modelo. Essa postura é o que Popper elogia em seu ensaio e dela ele pretende extrair o que caracteriza a cientificidade de uma teoria.

O jejum dos evangélicos funcionou? A covid-19 deixou de existir?

Os pastores que defenderam o jejum no início de abril fizeram, sem querer, um experimento científico. O que estava em jogo era a eficácia do jejum enquanto instrumento para obter favores divinos. Claro como um cristal: o jejum vai fazer com que Deus elimine o vírus.

Logo, o que podemos concluir caso o vírus ainda permaneça existindo depois do prazo estipulado para o jejum?

Se a teoria for remendada e frases do tipo: quem não teve fé atrapalhou etc., forem usadas, naturalmente não estamos diante de uma postura científica. Se for um momento de avaliar e propor outros caminhos, teremos uma postura científica.

Não quero me precipitar, mas acho que todos os argumentos seguirão o modelo do exemplo 1.

O mais curioso disso tudo é que esse tipo de postura religiosa é a mesma da astrologia, sendo que os cristãos desprezam a astrologia.

Desprezam, mas adotam o mesmo modo de pensar. Vai acontecer porque Deus (os astros) quer (determinaram). Quando não acontece é porque na verdade as pessoas não tiveram fé o suficiente ou os astros apenas apontam caminhos, não são deterministas.

Como não sou popperiano e acredito que não há um modelo único para o fazer científico, vou parar por aqui com uma pergunta: o covid-19 deixou de existir?

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