Por Rita Almeida
Psicóloga e psicanalista
ATENÇÃO! Contém spoilers do filme “Coringa”
Nos quadrinhos da DC Comic, a origem do Coringa está envolta em mistérios. A explicação mais veiculada (A Piada Mortal) é que o vilão surge quando um comediante fracassado, tentando assaltar uma fábrica na qual já havia trabalhado, se atrapalha e cai em um poço de produtos químicos, adquirindo assim a pele branca e os cabelos verdes característicos. Sob tal perspectiva mítica, a insanidade malvada do Coringa é resultante do trauma produzido pelo acidente bioquímico com a transformação de sua imagem. Pouco se fala em possíveis motivações psíquicas ou sociais para o nascimento do vilão.
Em todos os filmes nos quais o Coringa aparece, até então, nunca foi explorada a causa da mente perturbada do palhaço criminoso. Coringa é o vilão, Batman, o herói, cada um ocupando sua posição apenas por mérito ou demérito. O herói por mérito e o vilão por demérito. Sendo que a existência de um seria explicada pela existência do outro, no seguinte sentido: Batman se torna necessário, porque Coringa existe. E Coringa, por sua vez, é apenas um erro que precisa ser extirpado.
Entretanto, o Coringa de Todd Phillips – filme lançado no Brasil no último dia 3 – nos permite ver o personagem do palhaço malvado sob uma perspectiva totalmente diferente. Antes de assumir o nome “Joker” (Coringa) e encarnar o vilão, Arthur Fleck é retratado em sua luta diária para conseguir um lugar na sociedade. Conhecemos sua história marcada por abusos, mentiras, lacunas, abandonos, desde antes do seu nascimento.
Marcada ainda pela solidão da doença mental que lhe deixava em constante descompasso com o mundo em que vive, representado por seu riso totalmente fora de lugar e contexto. Devastado pela impossibilidade de encontrar uma identidade que o certificasse de que era alguém, Arthur tentou a vida de palhaço, a fim de seguir a missão que sua mãe lhe indicava: “Você nasceu para fazer as pessoas rirem” – ela dizia. Diante de tanta tragédia, Arthur tentava a saída pela comédia. E ninguém pode dizer que ele não tentou escapar do seu destino; ele tentou e muito.
O filme nos convida a enxergar Coringa sob uma nova perspectiva; como efeito, como sintoma da sociedade que o violentou, o renegou, o excluiu e, sobretudo, não o escutou. Arthur tentou inúmeras vezes avisar sobre Coringa, mas ninguém o ouviu. Tentou fazer sorrir e dançar, quando tudo desabava à sua volta, quando o passado o renegava e quando o mundo o violentava, mas tudo que recebeu para se proteger foi um diagnóstico psiquiátrico e uma arma. Quem mais ele poderia se tornar senão o Coringa?
Até então era muito cômodo, muito fácil pensar em um vilão que nasce após um banho de produtos químicos. Na perspectiva tradicional, Coringa seria apenas efeito de sua tentativa desastrada de burlar a lei, tornando Arthur o único culpado pelo seu infortúnio. Já a versão de Phillips é dolorosa e difícil de digerir, pois indica que o banho que transformou Arthur em Coringa foi outro, foi banho de uma sociedade violenta, excludente, injusta e surda, especialmente para os mais vulneráveis.
Sob a luz dessa versão extraordinária, Coringa não é um acidente, como nos fizeram crer, Coringa é uma invenção, único lugar a partir do qual Arthur conseguiu ser visto e ouvido como sujeito. “As pessoas estão começando a falar sobre mim” – ele dirá em meio a construção do personagem que ofereceram a ele num programa de TV de grande audiência.
Por fim, o modo como a trajetória da invenção do Coringa se enrosca com a dos milionários Wayne – pais de Bruce-Batman – nos faz entender que Batman não surge para dar conta do Coringa, ao contrário, Coringa é que é uma invenção do Batman. E Batman precisa do Coringa para se reafirmar no seu lugar de “cidadão de bem”, “defensor da justiça e da ordem”, desde que, é claro, seu privilégio econômico e influência política se mantenham intocados.
Escrevendo este texto me lembrei que, em junho deste ano, General Heleno afirmou que Moro é o Batman contra o Coringa. De fato, só agora percebo o quanto Heleno tinha razão.
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