SUS já realizou mais de 24 mil sessões de constelação familiar no país
Criticada pelo Conselho de Psicologia, constelação tem sido oferecida na saúde e em projetos de universidades
Por Texto: Jullia Gouveia, Karol Bernardi | Edição: Bruno Fonseca
Fonte: Agência Pública
Moradora de Laguna, no litoral de Santa Catarina, Cleide de Lima nunca tinha ouvido falar em constelação familiar quando procurou uma Unidade Básica de Saúde para tratar um problema no lado direito do quadril. Da fisioterapia, seguiu para a yoga e, depois, foi apresentada ao tratamento por uma enfermeira consteladora. Ela não sabia que estava em um dos municípios do país que mais realiza sessões pelo SUS.
Segundo levantamento da Agência Pública, desde 2018, foram realizadas mais de 24,2 mil sessões de constelação no SUS no Brasil. Os estados com maior quantidade foram Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina, Goiás e Bahia, nessa ordem. Já em relação ao tamanho da população, o estado campeão é o Rio Grande do Norte.
A constelação familiar é uma técnica alternativa que utiliza dinâmicas para resolução de conflitos familiares. Ela realiza dramatizações, muitas vezes em grupos, para recriar cenas e eventos familiares que podem envolver antepassados de várias gerações.
Os municípios que mais realizaram constelação são Tomazina (PR), Laguna (SC), Itumbiara (GO) e Rodolfo Fernandes (RN). Proporcionalmente, o município com mais sessões de constelação em relação à população é Rodolfo Fernandes. Das 10 cidades com mais sessões de constelação proporcionais à população, nove têm menos de cinco mil habitantes, segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — a exceção é Tomazina, com pouco mais de oito mil moradores.
O ano que mais registrou constelações pelo SUS no período foi 2022, com mais de 9,8 mil no país. Os dados são do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB).
A constelação familiar foi indicada pela portaria 702, do Ministério da Saúde, de 2018, “para qualquer pessoa doente, em qualquer nível e qualquer idade”. Contudo, nem o ensino, nem a prática profissional da constelação são regulamentados no Brasil.
Não existe um protocolo para sua aplicação no SUS e cada estado e município tem a autonomia para aderir e determinar as diretrizes de funcionamento do método, como ocorre com outras práticas integrativas e complementares, como a acupuntura, que exige que os profissionais de saúde tenham o título de especialista na técnica para aplicá-la.
O Ministério da Saúde não detalha nenhuma exigência específica de formação para trabalhar com as práticas no sistema público, apenas recomenda que sejam priorizados servidores que já atuem com esse serviço. Também aconselha, no caso de aplicação profissional da prática, “consultar o Conselho de Classe Profissional a que está vinculado, sobre as exigências definidas para o exercício da prática e, dessa forma, evitar o exercício irregular da profissão”.
Dos Conselhos Federais da Saúde, apenas o de Psicologia elaborou uma nota técnica de orientação aos profissionais sobre a constelação. No texto, o CFP conclui que a atividade é incompatível com o exercício profissional da Psicologia do ponto de vista ético, científico e epistemológico. O conselho cita a falta de pesquisas que atestem a cientificidade da prática e alega que os métodos utilizados reproduzem “conceitos patologizantes” de gênero, sexualidade, masculinidade e feminilidade.
A entidade destaca que a concepção de casal adotada pela constelação é “calcada na heterossexualidade compulsória”. A crítica se baseia no fato de que a constelação frequentemente tem como pilar a união entre um homem e uma mulher para formar uma família.
Também aponta passagens nas obras de Hellinger que atribuem às mulheres e aos homens “papéis naturalizados e desiguais”, onde frequentemente o poder dado ao marido ou pai é maior – numa relação, o homem teria precedência sobre a mulher, ou seja, estaria acima na hierarquia e precisaria ter sua posição respeitada.
O conselho de Psicologia critica ainda o viés conservador com o qual a infância e juventude é tratada, naturalizando a ausência de direito desses cidadãos. Esses fatores, segundo o CFP, vão na contramão da prerrogativa de promover a saúde de indivíduos e coletividades fundamentais para a Psicologia.
Em resposta ao CFP, a Associação Brasileira de Consteladores (ABC) divulgou uma declaração na qual argumenta que a constelação não está vinculada à Psicologia, “ainda que desperte interesse dos profissionais desta área”. Também defende que “a validação científica de algo que é novo sempre vem a posteriori” e que “quem conhece com propriedade a Constelação Sistêmica/Familiar sabe que esta é uma ferramenta útil para alavancar processos estagnados”.
Aos poucos, constelação ganha espaço em universidades públicas
A constelação familiar já aparece em instituições públicas de nível superior no Brasil, mas ainda são compostos por iniciativas isoladas. A Universidade Federal de Uberlândia (UFU), por exemplo, ofereceu em 2015 duas oficinas com o tema “Direito Sistêmico: justiça curativa, soluções profundas”. Já o Núcleo de Práticas Jurídicas do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) pesquisou o Direito Sistêmico e suas aplicações em conflitos familiares em 2017 — Direito Sistêmico é como é chamada a utilização da constelação no Judiciário. O projeto foi encerrado e o curso não tem previsão de estudar a técnica novamente, segundo a docente que coordenou o estudo.
Das 68 universidades federais brasileiras, dez confirmaram à reportagem que oferecem ou já ofereceram projetos de extensão, cursos ou atividades de constelação. Além da UFSC, as seguintes universidades confirmaram ter projetos com a prática: Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A UFU, citada na matéria, realizou o último curso de Direito Sistêmico em 2022. A Universidade Federal do Acre (UFAC) e a Universidade Federal de Jataí (UFJ) também informaram terem encerrado as atividades.
É na área da saúde que a constelação ganha cada vez mais espaço em projetos de extensão nas universidades federais. Um exemplo é o Projeto Amanhecer da UFSC. Criado em 1996 “a fim de oferecer terapias complementares aos profissionais de enfermagem do Hospital Universitário”, o projeto recebeu esse nome em 2004, quando se expandiu para “oferecer terapias complementares em saúde também aos servidores e comunidade acadêmica”.
Coordenadora do Amanhecer e professora do Curso de Farmácia da UFSC, Liliete Souza conta que o projeto já chegou a oferecer 47 tipos de terapias alternativas, entre atividades contempladas nas PICs e iniciativas próprias, como astrologia vocacional e bambuterapia. A professora, que também ministra as oficinas de dança meditativa, explica que todas as atividades são desenvolvidas de forma voluntária por professores ou outros profissionais sem vínculo com a universidade.
Em uma das constelações, uma mulher teria descoberto que, de acordo com a prática, o seu sucesso profissional estaria relacionado a uma maior ligação ao lado paterno, mas seus problemas financeiros, à mãe. “Eu tenho um laço forte com meu pai, então meu lado profissional está bom, mas meu lado financeiro, que é o da mãe, não”, conclui.
Para a psicóloga Beatriz Coltro, psicoterapêutico é um termo que descreve as práticas profissionais dentro da Psicologia, enquanto terapêutico pode ter um sentido mais amplo no vocabulário do dia a dia. Ela explica que, em geral, é comum afirmarmos que algo é terapêutico quando aquilo nos faz bem: “Posso estar aqui tomando meu chá e dizer que chá é terapêutico para mim”.
Por isso, Beatriz acredita que se alguém passa por um processo de constelação e consegue ver a experiência como algo produtivo e que traz sentido a suas inquietações, pode entender a situação como terapêutica. O problema para ela é que, por conta das premissas da constelação, a prática acaba beneficiando algumas pessoas em prejuízo do reconhecimento da autonomia de outras e da possibilidade de livre expressão, “sustentando alguns preconceitos e concepções sobre o ser humano restritas e que já estão ultrapassadas, inclusive pela ciências humanas e sociais.
Para a Maria [em alusão a uma mulher que faça constelação] foi bom, mas porque a Maria está vivendo num sistema predominantemente machista em que a resolução de um conflito, de uma angústia, pode estar envolvida com algo muito superficial, como escutar um pedido de desculpas que ela acha que deve ouvir”, diz.
Além dos projetos em universidades, centenas de instituições e empresas oferecem os mais diversos tipos de cursos de constelação familiar, com temáticas que vão de Negócios e Administração à capacitação para atuar como terapeuta.
Uma busca no Google por “cursos de constelação familiar” oferece mais de um milhão de resultados, incluindo múltiplos links patrocinados. A promessa de retorno financeiro é uma estratégia frequente para cativar interessados, como anuncia um curso on-line que pode ser adquirido em 12 vezes de R$ 99: “Com apenas 6 sessões de trabalho, você já pagará todo o Curso!”
Reportagem originalmente publicada na Agência Pública
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