Ciência e saúde

Como meio ambiente, saúde e classe social influenciam o consumo de carne no Brasil?

Pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP e das Universidades Federais do Rio Grande do Norte e Paraíba lançam obra que explora os impactos do consumo de carne, abordando desde questões ambientais e de saúde pública até aspectos sociais e econômicos brasileiros

Por Denis Pacheco
Jornal da USP

O consumo de carne desempenhou um papel fundamental na evolução humana, sendo considerado crucial para nosso desenvolvimento cognitivo. No entanto, o que inicialmente era uma prática de sobrevivência hoje se transformou, para muitos, em uma escolha, especialmente diante da variedade de opções nutricionais que temos disponíveis.

Para investigar as diversas facetas da alimentação à base de carne no Brasil, pesquisadores do Sustentarea, um núcleo de pesquisa e extensão da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, disponibilizaram gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP a obra Complexidades da Carne. Organizado pelas especialistas Aline Martins de Carvalho (Sustentaria-FSP), Michelle Cristine Medeiros Jacob (Labnutrir – Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e Sávio Marcelino Gomes (Labnutrir – Universidade Federal da Paraíba), o texto explora as múltiplas dimensões do carnivorismo no Brasil, discutindo desde impactos ambientais até questões sociais e de saúde pública.

Segundo a professora Aline, a ideia surgiu em um grupo de trabalho do Sustentarea, que reuniu pesquisadores de diversas áreas para discutir o consumo sob diferentes perspectivas. “Falamos muito sobre o consumo de carne na academia numa perspectiva de impacto na saúde, mas não é só isso. Queremos tratar [o assunto] de uma maneira holística, não falar apenas da carne no sentido de saúde nutricional, mas também outros campos em que a carne pode ser usada como exemplo”, explica ela, ao esclarecer que o objetivo principal do livro é conversar com a população em geral.

Meio ambiente, saúde e desigualdade

Aline Martins de Carvalho, da Faculdade de Saúde Pública da USP – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Um dos temas debatidos pela publicação, que é dividida em cinco capítulos, é o impacto ambiental da produção de carne, particularmente, a produção de carne vermelha. Nesse contexto, a professora Aline reforça que “no Brasil, 70% das emissões de gases de efeito estufa são causadas pelo sistema alimentar”.

Não por acaso, o relatório semianual de Livestock and Products do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, sigla em inglês) para o Brasil, publicado em março de 2024, revelou que a produção de carne bovina no Brasil deve aumentar em 4% em 2024, alcançando 11,37 milhões de toneladas. O consumo interno de carne bovina também foi previsto para crescer 4%, atingindo 9,4 milhões de toneladas, devido à maior disponibilidade de carne no mercado doméstico e preços mais acessíveis aos consumidores.

Obra discute carnivorismo no Brasil e seus impactos ambientais – Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

De acordo com o mesmo relatório, o Brasil é o terceiro maior produtor de gado do mundo,o segundo maior produtor de carne bovina e o maior exportador do mundo, respondendo por um quarto de todas as exportações globais. “O gado, por exemplo, libera metano, um dos principais gases de efeito estufa. Além disso, a produção utiliza muita terra e água, o que reduz a biodiversidade local”, pontua Aline.
Páginas do livro do grupo Sustentarea – Foto: Divulgação/ FSP USP
Elementos que compõem os sistemas alimentares – Fonte: Sustentarea / FSP USP

Outro ponto abordado pelos pesquisadores envolve o consumo excessivo de carne, mais uma vez com destaque para a carne vermelha, que é apontado como um fator de risco para doenças crônicas. “Quando falamos sobre por que a carne aumenta o risco de doenças, colocamos alguns motivos baseados na literatura científica. O consumo elevado aumenta o risco de doenças cardiovasculares e câncer, principalmente câncer de intestino, que são as doenças que mais matam no Brasil e no mundo”, afirmou Aline.

Indo além de aspectos como saúde e meio ambiente, o material também explora de que forma fatores sociais, como gênero, raça e classe, influenciam os padrões de consumo de proteína animal no Brasil. Dados sugerem que “mulheres comem menos carne do que homens, e a carne é muitas vezes associada a poder econômico, como no caso do churrasco no Brasil”, menciona a professora.

No contexto brasileiro, salientam os pesquisadores, 64% das mulheres limitam a ingestão de carne bovina a, no máximo, três vezes por semana, enquanto apenas 51% dos homens adotam essa mesma restrição. Essa diferença pode ser influenciada por pressões sociais e estereótipos de gênero associados ao consumo de carne.

Mulheres têm maior limitação ao consumo de carne – Foto: Stockking/Freepik

Famílias de baixa renda gastam uma porcentagem significativamente maior de sua renda para adquirir carne. Por exemplo, famílias que recebem até meio salário mínimo por pessoa gastam cerca de 5% de sua renda para adquirir 1 kg de carne, enquanto aquelas com renda superior a quatro salários mínimos por pessoa gastam apenas 0,3% de sua renda para a mesma quantidade. “O brasileiro consome muita carne, mas essa relação com desejo e status não é muito divulgada”, pontua ela.

Por fim, o trabalho discute a alimentação carnívora em relação ao Direito Humano à Alimentação Adequada, reforçando a importância de garantir uma alimentação de qualidade para todos, notadamente para as populações mais vulneráveis. “Em locais onde a pessoa não tem o que comer, proibir o consumo de carne pode ferir o direito de uma alimentação adequada da população, que está na Constituição Brasileira”, completou Aline.

Acesso ao consumo de carne depende da renda – Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Importância do acesso gratuito

Uma das preocupações do Sustentarea, reflete a professora, é oferecer alternativas nutricionais para o grande público por meio de diversos livros de receitas elaborados por equipes multidisciplinares que são, ao mesmo tempo, materiais práticos e educativos. “Não adianta falar para reduzir o consumo de carne sem explicar como as pessoas podem fazer isso. Temos mais de 60 voluntários no Brasil e no exterior que colaboram com este material. Por isso, é justo disponibilizá-lo para que toda a população tenha acesso”, argumenta.

De acordo com a docente, disponibilizar os volumes gratuitamente faz parte de um esforço maior para democratizar o acesso ao conhecimento: “Ter uma obra em português com uma linguagem acessível e disponível gratuitamente é fundamental para colaborar e mostrar essas informações à população”.

O livro Complexidades da Carne está disponível para download neste link.

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